O cravo no Rio de Janeiro do século XX | Marcelo Fagerlande, Mayra Pereira, Maria Ainda Barroso

A música como fato urbano pode não ser uma exclusividade da cidade do Rio de Janeiro, mas não há dúvida de que se consagrou como um tema importante para a história da cidade e para a consideração de sua singularidade. Por outro lado, essa perspectiva enriquece igualmente a história da música como construção histórica. Esse entrelaçamento entre a história da música e a história da cidade tem sido um campo fértil de pesquisa e que ganha uma nova contribuição com o lançamento do livro O cravo no Rio de Janeiro no século XX, escrito por Marcelo Fagerlande, Mayra Pereira e Maria Aída Barroso.

O livro surpreende, em primeiro lugar, por chamar atenção para a importância do cravo no meio carioca e brasileiro. Valoriza, assim, a abordagem da história musical a partir dos instrumentos musicais. No caso do Rio de Janeiro, a historiografia já evidenciou a popularidade do violão como instrumento musical no cotidiano da cidade, acompanhando a crônica dos viajantes do século XIX e as descrições literárias do ambiente urbano. Ao lado disso, é consagrada a imagem de que Rio de Janeiro se caracterizou como “cidade dos pianos”, conforme expressão de Manuel de Araújo Porto-alegre, em meados do século XIX. Enquanto o primeiro instrumento musical levou tempo para ser consagrado pela crítica musical, o segundo tendeu a deixar a cena dos recitais para conquistar o gosto popular e se difundir na sociedade. Certo é que o livro não tem qualquer intenção de instalar o cravo num quadro de disputa de popularidade com o piano ou o violão, apenas ressaltar que o cravo tem seu lugar na história da cidade.

A leitura do livro apresenta como o cravo, mesmo sendo um instrumento europeu antigo e tradicional, contribuiu para a renovação da atividade musical no Rio de Janeiro no século XX, para retomar o conceito proposto por Renato Aurélio Mainente para pensar a música no Rio de Janeiro no século anterior. A partir de um quadro geral organizado por décadas, os autores elaboraram um quadro histórico que se inicia com a aquisição de um cravo pelo maestro e compositor brasileiro Leopoldo Miguez, na Casa Pleyel, na França, no ano de 1900. No mesmo ano, às vésperas da inauguração do novo século, tem-se notícia que o maestro e pianista brasileiro Carlos de Mesquita, residente em Paris, publicou na França uma peça para cravo de sua autoria. Naquele tempo, porém, o musicista se viu ainda obrigado a interpretar a peça musical num piano. A cidade teve que aguardar até o ano de 1904 para assistir o primeiro recital de cravo no novo século, quando a belga Elodie Lelong realizou os primeiros concertos de cravo no Rio de Janeiro do século XX, durante turnê de companhia estrangeira que era integrada por um quarteto de instrumentos antigos.

Com base no levantamento de notícias na imprensa carioca, o leitor acompanha de perto a crônica de como o cravo se tornou assunto na cidade e passou a conquistar o seu público. Decisiva foi a popularização proporcionada pela indústria fonográfica em desenvolvimento a partir da década de 1920 no mundo e que criou condições para sua difusão pelo rádio. O cravo conquistou, assim, um espaço importante na programação de rádio, a partir de 1957, com a criação do Conjunto de Música Antiga da Rádio MEC, em que se destacava a participação da cravista ucraniana Violetta Kundert. O Conjunto realizou provavelmente a primeira apresentação musical na televisão brasileira, em 1958, na antiga TV Rio. Na programação televisiva dos anos de 1970, o cravo encontraria ainda espaço em programas focados, como Concertos para a Juventude, da TV Globo, e Programa Opus, da TV Educativa, participando do contexto da comunicação de massa contemporânea.

De todo modo, o argumento geral conduz o leitor a reconhecer como o cravo ganhou a cidade e contribuiu para afirmar a música de câmara no Rio de Janeiro. Depois de uma época de concertos frustrados na década de 1920, a presença do cravo na cultura da cidade se afirmou, nos anos de 1930, com apresentações no Salão Pro Arte, Theatro Municipal e Casa d´Itália. O primeiro concerto, ocorrido em 1933, teve caráter passageiro associado à turnê internacional dos músicos austríacos do Trio Schneider, que chamou atenção justamente pela participação inusual do cravo tocado por Anatol Vietinghoff-Scheel. Foi, porém, em 1936, com a apresentação no Theatro Municipal do Rio de Janeiro da argentina Lucila Machuca de Garcia, discípula da internacionalmente conhecida Wanda Landowska, que o cravo alcançou a consagração na cidade, fazendo com que a cravista estabelecesse uma longa relação com o público carioca. Três anos depois, em 1939, a brasileira Gabriela Ballarin, aluna do maestro Hans Joachim Koellreuter, se apresentou acompanhando ao cravo uma conferência do prof. Vicenzo Spinelli, difusor do instrumento antigo na cidade, que habitualmente, na falta de um cravista, contava com a participação de um pianista. Iniciava-se, então, uma presença recorrente nos palcos da cidade do cravo de Gabriela Ballarin.

A análise histórica elaborada indica que esse circuito de salas seria totalmente alterado com o contexto da Segunda Guerra Mundial. De fato, apenas com a inauguração da Sala Cecília Meireles, em 1965, a cidade institucionalizou um espaço especialmente dedicado à música de câmara capaz de valorizar o som do cravo. A Sala vai projetar a criação artística de Roberto de Regina como protagonista de uma época e precursor de uma geração de cravistas que consagraram o cravo como expressão carioca, em que despontam vários nomes, como Rosana Lanzelotte e Marcelo Fagerlande, aliás, um dos autores do livro. A partir da década de 1970, a música de câmara vai ampliar sua programação na cidade ao encontrar vários auditórios na cidade, como a sala do IBAM, Salão Leopoldo Miguez, Teatro da ABI, Casa de Rui Barbosa, Museu Nacional de Belas Artes e Museu da Chácara do Céu, e ainda vai encontrar lugar em espaços populares como a Concha Verde do Morro da Urca.

A pesquisa evidencia que a atividade musical não depende apenas de espaços, mas igualmente de um calendário de eventos musicais, como as diferentes edições do Ciclo Bach, que atraia concertistas brasileiros e estrangeiros, que faziam do Rio de Janeiro um ponto de referência no cenário internacional do cravo. O argumento dos autores conclui que a arte do cravo se favoreceu na década de 1990 pela profissionalização dos artistas do cravo como produtores culturais. Assim, não seria exagero considerar que a inauguração, em 1990, da Capela Madalena, instalada, por Roberto de Regina, em sítio na Zona Oeste do Rio de Janeiro, serve para demarcar esse contexto de fim do século XX.

Ao final da leitura, a angústia diante da interrogação final dos autores sobre o futuro do cravo na cidade do Rio de Janeiro, considerando os desafios do século XXI, só pode ser arrefecida pelo desejo de assistir um belo concerto de cravo com plateia cheia e atenta, preparada para aplaudir com entusiasmo o espetáculo.


Resenhista

Paulo Knauss – Professor da Universidade Federal Fluminense e sócio efetivo do Instituto Histórico do Rio de Janeiro.


Referências desta Resenha

FAGERLANDE, Marcelo; PEREIRA, Mayra; BARROSO, Maria Aida. O cravo no Rio de Janeiro do século XX. Rio de Janeiro: Rio Books, 2020. Resenha de: KNAUSS, Paulo. Revista do Instituto Histórico e Geográfico do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, n.29, p. 171-173, 2022. Acessar publicação original [DR/JF]

 

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