O cordel e o migrante nordestino: companheiros de viagem | Júlia Constança Pereira

O cordel e o migrante nordestino: companheiros de viagem é um livro de Júlia Constança Pereira Camelo, professora do curso de História da Universidade Estadual do Maranhão (UEMA) e doutora em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Pará (UFPA). A obra é uma versão da dissertação de mestrado em História defendida pela autora na Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (UNESP-Assis), no ano de 2000. O livro se relaciona à trajetória de vida da autora, “nordestina, pernambucana, de origem rural, após trilhar um longo caminho permeado por algumas migrações”.[1]

O objetivo da obra é analisar como os poetas migrantes do Nordeste, radicados no Rio de Janeiro, desenvolveram a produção de cordel no período entre 1960 e 1990, em função do público.[2] O recorte é explicado da seguinte maneira: parte-se da década de 60, “que apresentou uma crise [na produção de folhetos de cordel] observada por todos aqueles que compararam 60 com 50” [3] ; e estende-se até as décadas de 80 e 90, porque nesse período “encontra-se a principal tendência do cordel urbano”: produção de folhetos e biografias de personagens ilustres, políticos, escritores, cientistas, pensadores e até pesquisadores voltados para a cultura popular.[4]

A autora utiliza como fontes folhetos [5] de catorze poetas que vivem, trabalham e produzem cordéis no Rio de Janeiro.[6] A maioria dos poetas é oriunda do interior da Paraíba, Pernambuco, Ceará e Rio Grande do Norte.

A obra é dividida em quatro capítulos: o primeiro, intitulado “Caminhos percorridos”, trata da trajetória da literatura de cordel da Europa até o Brasil, e por fim, ao Nordeste; além de descrever algumas características dos folhetos, e suas classificações; o segundo capítulo, “Estudos sobre migrantes e poesia popular”, faz uma breve revisão de estudos que abordam o tema da migração, e outras temáticas, destacando que “a adaptação, o sonho, a esperança, a aculturação e a capacidade criadora estão presentes em toda a produção desses poetas nordestinos.”[7]

No terceiro capítulo, “Passado e presente: dois tempos verbais sempre presentes”, a autora destaca que mesmo que o poeta migrante nordestino tenha partido para a cidade grande, no caso estudado, o Rio de Janeiro, o Nordeste permanece como fonte de inspiração. Apesar dos migrantes terem saído de sua terra natal por causa das dificuldades de sobrevivência, “o Nordeste é descrito como lugar de fartura, de alegria, de festas, etc.”, se referindo à região como “um lugar bom, onde eram felizes” [8], se contrapondo às dificuldades vivenciadas na “cidade grande”.

Interessante notar que nos folhetos analisados por Camelo, vários poetas utilizam palavras e expressões muito comuns no Nordeste, como arrenegar (significa zanga, revolta); cabra ruim da molesta (quer dizer que o indivíduo é pior do que uma doença); bolsa lisa (corresponde a bolso liso); pisa (surra ou sova bem marcante); fugiu em continente (indica que a fuga foi logo em seguida).[9] O que indica que grande parte do público visado pelos poetas era de migrantes nordestinos como eles, ou seja, que conheciam aquelas expressões.

O quarto capítulo, “Abordagens e estilos do Cordel Urbano”, é dividido em quatro tópicos, que representam temas comuns nos folhetos dos poetas nordestinos residentes no Rio de Janeiro entre os anos 1960 e 1990: cotidiano, biografias, discussões e pelejas, e histórias de amor. A autora procura demonstrar que os poetas de cordel estão “sempre exercendo seu papel de porta-voz do povo, fazendo denúncias, sugerindo soluções, apontando culpados, mas, principalmente, clamando por justiça para com os pobres, operários, ou seja, trabalhadores mal remunerados.”[10]

Percebe-se assim uma influência na obra de Camelo de pesquisadores como Joseph Luyten e Mark Curran. Para Luyten, o cordel é uma espécie de “jornalismo popular”, pois o poeta transforma as notícias do jornal em uma linguagem popular. Segundo Luyten, o público confia no poeta, no que ele escreve, pois o poeta convive com as camadas populares, partilha da mesma realidade.[11] Já Mark Curran aponta que o poeta de cordel também é “historiador popular”. Para o autor, “o cordel como crônica poética e história popular é a narração em versos do ‘poeta do povo’ no seu meio, ‘o jornal do povo’”. [12]

Algumas críticas podem ser feitas a obra de Júlia Camelo. Por exemplo, o longo tempo entre a defesa da dissertação (2000) e a publicação da obra (2014) traz alguns problemas. A produção historiográfica sobre o cordel neste intervalo de tempo cresceu bastante, em várias áreas, o que é deixado de lado pela autora, que deveria ter atualizado algumas discussões. Por exemplo, quando trata dos “caminhos percorridos” pelo cordel, Júlia Camelo se baseia em autores dos anos 1960-1980, muitos deles folcloristas, como Joseph Luyten, Roberto Câmara Benjamin, Manuel Diégues Júnior, Amadeu Amaral, Mário Souto Maior, etc. Não negamos a importância desses autores, no entanto, muitas ideias sobre a literatura de cordel foram reformuladas a partir dos anos 2000, principalmente a de que é um objeto que pertence ao folclore.[13] Júlia Camelo se baseia em Joseph Luyten para tratar da “origem” do cordel, como um fruto da literatura popular da época da Idade Média, além de associá-lo a fortemente à oralidade: “acredita-se que, desde o século XVI, o cordel já cumpriu esse papel de mensageiro no sertão, ainda de forma oral”.[14] Tais considerações são questionáveis hoje, a partir de pesquisas não citadas pela autora, como as de Márcia Abreu [15], Vilma Mota Quintela [16], Rosilene Melo [17], etc. O cordel recebe influências da tradição oral, mas o fato de ser impresso, com regras próprias de rima e métrica, faz com que tenha características específicas.

A própria ideia de Nordeste é vista hoje como uma construção imagético-discursiva. Segundo Durval Albuquerque Júnior, o Nordeste é uma “cristalização de estereótipos que são subjetivados como característicos do ser nordestino e do Nordeste.” [18] Ou seja, o Nordeste é uma invenção em relação a um espaço Outro, que é o centro-sul do país, uma invenção que tende a caracterizar o Nordeste como atrasado. Júlia Camelo, em sua obra, poderia dialogar com as ideias de Albuquerque Júnior sobre a invenção do Nordeste, bastante influentes hoje.

A obra poderia ser mais rica se a autora fizesse uma apresentação dos poetas. A autora apenas cita os nomes e os locais de origem deles. A obra agrupa os folhetos por temas, o que tira a individualidade do poeta. Na página 20, Camelo diz que “dois são moradores de favela”, “três vivem da atividade de cordelista”, outros como “pedreiro, cobrador, motorista”.[19] Ou seja, há uma descrição muito genérica de qual poeta está se falando. Uma pequena biografia, mesmo num anexo, poderia ajudar o leitor a identificar melhor os poetas.

Por outro lado, o livro demonstra como a literatura de cordel pode ser utilizada como fonte para se entender as impressões dos poetas sobre suas próprias trajetórias de vida, enquanto migrantes na “cidade grande”. Uma fonte que aborda as dificuldades vivenciadas pela população mais pobre, uma “visão de baixo”, poderíamos dizer, com muito potencial ainda a ser explorado por historiadores e demais especialistas. Portanto, apesar de algumas ressalvas, a obra de Júlia Camelo contribui e estimula novos estudos sobre a literatura de cordel no Brasil.

Notas

1. CAMELO, Júlia Constança Pereira. O cordel e o migrante nordestino: companheiros de viagem. São Luís: Café & Lápis; Editora UEMA, 2014, p.15.

2. ______. O cordel e o migrante nordestino, p.15.

3. ______. O cordel e o migrante nordestino, p.15.

4. ______. O cordel e o migrante nordestino, p.17.

5. Júlia Camelo buscou folhetos em arquivos como os da Biblioteca da Universidade Estadual de Londrina; Fundação Casa de Ruy Barbosa; Biblioteca Amadeu Amaral, Divisão Nacional do Folclore, da Casa de Cultura São Saruê; além de comprar folhetos na feira nordestina de São Cristóvão, no Rio de Janeiro.

6. Até o ano de 2000, quando foi publicada a dissertação de mestrado da autora.

7. CAMELO. O cordel e o migrante nordestino, p.48.

8. ______. O cordel e o migrante nordestino, p.56. Isso é comum na literatura de cordel em vários períodos, a exemplo da migração de nordestinos para a Amazônia no início do século XX no chamado boom da economia da borracha, no qual vários trabalharam como seringueiros. Sobre as representações do Nordeste nos folhetos do poeta piauiense Firmino Teixeira do Amaral, ver MENEZES NETO, Geraldo Magella de. História ambiental e literatura: o seringal nas obras de Ferreira de Castro e Firmino Teixeira do Amaral. Tempos Históricos. vol. 15, 2º Semestre, 2011, p.155- 178.

9. CAMELO. O cordel e o migrante nordestino, pp. 59-60.

10. CAMELO. O cordel e o migrante nordestino, p.67.

11. LUYTEN, Joseph Maria. A notícia na literatura de cordel. São Paulo: Estação Liberdade, 1992.

12. CURRAN, Mark. História do Brasil em cordel. 2 ed. São Paulo: EDUSP, 2001, p.20.

13. Fizemos crítica semelhante à obra Apontamentos para uma história crítica do cordel brasileiro, de Aderaldo Luciano, no qual o autor dialoga com autores dos anos 1960-1980 e esquece vários estudos que mudaram as concepções sobre o cordel. Ver: MENEZES NETO, Geraldo Magella de. Questionamentos à historiografia do cordel brasileiro. História da historiografia. Ouro Preto, n. 13, dez. 2013, p.220-225.

14. CAMELO. O cordel e o migrante nordestino, p.26.

15. ABREU, Márcia. História de cordéis e folhetos. Campinas: Mercado de Letras; Associação de Leitura do Brasil, 1999.

16. QUINTELA, Vilma Mota. O cordel no fogo cruzado da cultura. Tese (Doutorado em Letras) – Universidade Federal da Bahia – UFBA, Salvador, 2005.

17. MELO, Rosilene Alves de. Arcanos do verso: trajetórias da literatura de cordel. Rio de Janeiro: 7Letras, 2010.

18. ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. A invenção do Nordeste e outras artes. 4 ed. Recife: FJN; Ed. Massangana; São Paulo: Cortez, 2009, p.307.

19. CAMELO. O cordel e o migrante nordestino, p.20.


Resenhista

Geraldo Magella de Menezes Neto – Mestre em História Social da Amazônia Faculdade Integrada Brasil Amazônia (FIBRA) Secretaria Municipal de Educação de Belém (SEMEC). E-mail: geraldoneto53@hotmail.com


Referências desta resenha

CAMELO, Júlia Constança Pereira. O cordel e o migrante nordestino: companheiros de viagem. São Luís: Café & Lápis; Editora UEMA, 2014. Resenha de: MENEZES NETO, Geraldo Magella de. Os poetas nordestinos no Rio de Janeiro: impressões sobre a “cidade grande” em folhetos de cordel (1960- 1990). Temporalidades. Belo Horizonte, v.7, n.3, p.317-320, set./dez. 2015. Acessar publicação original [DR]

Itamar Freitas

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