O ciclo do algodão e as vilas operárias é um livro bastante singular. Escrita por Douglas Apratto Tenório e Golbery Luiz Lessa, dois grandes historiadores, a obra resultou de um projeto de pesquisa financiado pela Fundação de Amparo à Pesquisa de Alagoas – FAPEAL. Apenas ao folheá-la, o leitor já dá de cara com dois índices, o primeiro fruto do texto escrito por Tenório e o outro por Lessa, este último até mesmo com subtítulo (ou seria na verdade um título?) diverso: Trama da memória, urdidura do tempo: ethos e lugar dos operários têxteis alagoanos (p. 97). Ao ler o escrito mais detidamente, percebemos que, na verdade, são dois livros lançados numa única edição que, apesar de tratarem do mesmo tema, cujo(s) título(s) já enuncia(m), abordam-no de perspectivas completamente distintas, inclusive com críticas diretas feitas de um autor ao outro.
O(s) livro(s) objetiva(m) preencher uma lacuna (das muitas) na historiografia de Alagoas, levantando documentos, textos, entrevistas com moradores remanescentes das antigas vilas dos operários das fábricas têxteis que se instalaram na província, depois estado, ao longo do final do século XIX e das seis primeiras décadas do século próximo passado (p. 9). Os autores criticam e tentam derrubar a tese segundo a qual a formação social, econômica, política, histórica de Alagoas explica-se exclusivamente pela história canavieira. Argumento que foi inaugurado, segundo Lessa, por Humberto Bastos, com Assúcar e Algodão, e Manuel Diégues Júnior, com O Banguê nas Alagoas, cujos textos foram escritos em 1938 e 1949, respectivamente (pp. 11; 101). Aqui apontamos uma das diferenças nos textos: para Lessa, a tese “exclusivista canavieira” legou mais uma restrição de temas abordados do que tentativas de prová-la (p. 102), Tenório acredita, no entanto, que são “poucos os analistas [que] têm passado incólumes” deste discurso (p. 11). Ele os chama, sem nomeá-los, de “apressados estudiosos contemporâneos” (p. 12) sobre a importância do açúcar e do algodão. Este último parece cair na própria armadilha por ele combatida quando, por exemplo, chama de “lavouras menores”, tudo que não é cana (p. 11). Além disso, ao tentar demonstrar que, no século XIX, os destinos do açúcar e do algodão “estavam unidos ‘na saúde e na doença, na riqueza e na pobreza’”, o autor cita apenas um relatório de presidente de província que ressalta a importância destas lavouras para as rendas do governo, o que torna o seu argumento inerme (p. 12). Ao enumerar uma série de obras de escritores locais que ressaltam a importância de produções que não a canavieira para a história de suas respectivas cidades, Tenório contradiz-se ao concluir que existe um “monopólio contemporâneo dos estudos históricos” que só veem a cana como objeto de análise (pp. 31-5). Se existe monopólio canavieiro dos estudos históricos, como o autor foi capaz de levantar diversas obras que destacam o valor de outras produções para a história de Alagoas?
No seu conjunto, o livro cumpre o desígnio proposto, qual seja, o de “dar visibilidade ao esquecido universo têxtil na história e na cultura alagoana” (p. 9). Para fazê-lo, Tenório e Lessa utilizam-se, cada um a seu modo, ressaltamos, de depoimentos de operários têxteis e seus descendentes, de dados estatísticos, de atas de reuniões de acionistas e de entidades sindicais, de periódicos, de relatórios anuais das fábricas, de relatórios de presidentes de província, da literatura da época concernente. Um corpo de fontes significativo, tanto do ponto qualitativo, pois são tipologias documentais diversas, quanto quantitativo. Lançando uma percepção mais acurada sobre como as fontes são utilizadas pelos autores podemos levantar algumas questões.
Analisando depoimentos dos ex-operários têxteis, principalmente das mulheres, Douglas A. Tenório ressalta o papel positivo que as fábricas de tecidos tiveram no processo de emancipação da mulher ao garantir que esta pudesse começar “a sentir o gosto saboroso da igualdade, da independência” (p. 78). Para fazer isso, no entanto, o autor toma os depoimentos dos operários como prova do que ele procura demonstrar. Não há, neste caso, crítica às fontes. Sendo assim, o autor conclui: “A mulheres operárias, mesmo com a barreira cultural e a predominância masculina, gozavam de um grau de autonomia [grifos meus] que as do campo ou as da cidade jamais sonharam.” (p. 81) Conclusão bem diversa do que chegou Sheila de Castro Faria, quando da sua análise do papel feminino na fronteira rural fluminense durante o século XVIII. Para esta, a “mulher presidia unidades domésticas e tinha certa liberdade de movimentos [grifos meus] no espaço público, teoricamente [grifo meu] reservados aos homens” (FARIA, 1998, p. 47). Fica a impressão, neste ponto e ao longo de todo o texto de Tenório, de que o autor parece não atentar para os possíveis aspectos negativos trazidos pela industrialização e que, falando da função desempenhada pelas mulheres em formações sociais não industrializadas, o mesmo parte para um exercício de história do “ideal” (IBIDEM, p. 48), quando o que merece atenção é o que deveria acontecer e não o que realmente se passa. Em O ciclo do algodão e as vilas operárias, cabe a Golbery L. Lessa contrabalancear o papel “progressista” das fábricas têxteis em Alagoas. Segundo ele, até a Revolução de 1930, o lucro capitalista teve como contrapartida a miséria do operariado têxtil, sua não participação política e a intervenção da Igreja Católica como justificadora da ordem estabelecida (p. 132).
Aqui os dois autores travam uma batalha intensa sobre o papel desempenhado pelas indústria têxtil em Alagoas. O exercício de leitura do livro torna-se bastante interessante, sendo a crítica recíproca entre ambos uma constante. Para Tenório, a “inovação no horizonte tradicional da terra das muitas lagoas” trazida pela indústria foi “altamente positiva” (p. 42). Inclusive, mais uma vez sem nomear, chama de “céticos” os que argumentam em contrário. Para ele, não importa que o fato de que o “patronato têxtil manipulava e fez assistencialismo com o trabalhador” (p. 42), pois, mesmo com isso, a positividade daquela indústria não tinha sido maculada, pois ela conseguiu colocar o operário num “patamar elevado, ao lado do capital” (p. 42), quase um socialismo. Sendo assim, para este
É de um simplismo que beira o ridículo a colocação que o patronato têxtil é igual ao do açúcar e que nunca houve uma situação de bem-estar social entre os operários das fábricas surgidas após 1864 e até o seu ocaso, nos anos setenta do século passado, que seus salários eram reduzidos até abaixo do mínimo. (p. 52)
Como mostrado mais a frente, a passagem anterior é uma avaliação que pode ser lida como uma crítica direta, mesmo que não assumida, a Golbery L. Lessa. Num exercício que tem ares de competição para decidir quem explora menos ou mais, Tenório, sem base e carecendo de maiores esclarecimentos, conclui que “Quem acompanhou essa época, a intimidade desse universo fabril, sabe que a situação desses trabalhadores era bem melhor do que a dos trabalhadores do setor canavieiro.” (p. 52) Para ele, os industriais têxteis “de longe ganhavam de seus colegas da atividade canavieira”, os do período colonial e os hodiernos (p. 52). Assim como já mostrado no parágrafo anterior, Lessa não comunga com Tenório do progresso trazido pela industrialização têxtil.
Num sugestivo capítulo intitulado Mito [grifo meu] do bem-estar social nas fábricas têxteis 1940/60, o argumento anterior de Tenório é veementemente combatido por seu parceiro de pena. Indagando-se da “existência ou não de um sistema de bem-estar social no cinturão têxtil alagoano”, Lessa conclui “que na verdade nunca houve uma situação de bem-estar social entre os trabalhadores têxteis alagoanos [grifos meus].” (p. 160) Utilizando-se dos mesmos depoimentos sobre os quais Tenório lançou seu olhar, o presente capítulo mostra que os operários realmente ressaltam os aspectos positivos, principalmente em relação ao nível de empregos e à qualidade das festas nas vilas operárias, porém o bem-estar social naquelas vilas não poderia existir, pois, nos mesmos depoimentos a precariedade da assistência médica, os salários baixos, a extrema pobreza dos trabalhadores e a insuficiente infraestrutura são aspectos observados (pp. 155-8). Para Lessa, no que, numa evidente crítica a Tenório, é “ilusão” considerar que os “operários têxteis viviam com o mínimo de segurança social” (p. 160).
Num aspecto os autores concordam, os operários têxteis participaram decisivamente da política em Alagoas, principalmente a partir de 1930 (não descartando a participação anterior com greves). Analisando estatísticas eleitorais, tanto Tenório quanto Lessa concluem que foram determinantes os votos dos operários têxteis nas “vitórias eleitorais de Silvestre Péricles, Arnon de Mello e Muniz Falcão” (p. 163). Tenório ultima, mais uma vez sem basear sua assertiva, que o eleitorado dos municípios que sediavam as vilas operárias era mais alforriado do que o eleitorado rural (p. 88), ligando este ao coronelismo (p. 85) e Lessa assevera que ocorreu uma diminuição da venda de voto e arrefeceu a subordinação pelo favor nas vilas operárias. Sua conclusão se baseia no fato de inexistir, no caso do algodão, entressafra e pelo de viger uma legislação trabalhista para os operários têxteis, sem levantar dados maiores (p. 165). A harmonia interpretativa cessa por aí.
Consultando dados estatísticos do final do século XIX e início do XX, Lessa demonstra que metade do capital disponível em Alagoas estava aplicada nas indústrias têxteis (p. 116), sendo que o mundo criado pelas indústrias têxteis era significativamente distinto do universo da produção canavieira, tendo aquele um papel modernizador. Neste período, inclusive, não “se sabia qual delas iria vingar e tornar-se o caminho essencial do desenvolvimento capitalista; era uma época de experimentação e risco.” (p. 117) Apesar desta diferenciação, a pesquisa desenvolvida pelo autor não encontrou indícios de conflitos significativos entre os dois polos (p. 117). Mesmo produzindo “metade do valor econômico do Estado”, os empresários industriais têxteis tinham problemas com mão-de-obra e energia, além disso, sua presença política não era forte o suficiente para resolver tais demandas (p.152). Para Lessa, nem estes nem os usineiros “estavam interessados em uma modernização coerente do sistema” capitalista de Alagoas (p. 177).
Enxerga-se melhor o papel desempenhado por Lessa de balancear o progresso trazido pelos industriais têxteis quando analisamos o capítulo Os novos capitães da indústria, escrito por Douglas A. Tenório. Todo o capítulo lembra mais um manual de administração e liderança do que um relato histórico. O papel de “homens persistentes e particularmente determinados” (p. 51) é ressaltado pelo autor, sempre comparando-os com seus “colegas” atrasados da indústria açucareira. Neste capítulo, o autor chega a um dos pontos mais problemáticos do livro. Ao enumerar uma série de medidas tomadas pelos donos das fábricas têxteis para controlar o comportamento de seus operários, como por exemplo, as multas por descumprimento de horários, Tenório desfecha:
Há um componente modernizador ao introduzir novos hábitos que fariam o país e o estado acertar o passo com a história [sic] [grifos meus] e ter a sua unidade industrial como um artífice desses novos tempos – ter lucratividade associada à produtividade e esta agregada ao conforto do empregado.” (p. 52)
Não explicitando o que entende por “acertar o passo com a história” (sic), o autor deixa margem a interpretações. Significa “acertar o passo com a história” (sic) da Europa? Com a teoria da eugenia? Com o fascismo? Com as duas guerras mundiais? Ou significa “acertar o passo com a história” (sic) dos Estados Unidos? Com a crise de 1929? Com a grande depressão? Com a segregação dos negros? Com as bombas atômicas? O que transparece da afirmação acima é que a história tem uma única direção e todos devem caminhar nela. Quem ficar para traz ou pegar desvios será considerado a-histórico [2].
Concluindo nossa resenha, falemos um pouco dos problemas que levaram, segundo os autores, ao ocaso do setor industrial têxtil de Alagoas. Para Golbery L. Lessa sua desagregação foi resultado de problemas estruturais do setor no Estado, estre estes problemas estavam: o fato de seus concorrentes no Sudeste passarem a receber grandes benefícios; São Paulo passa a produzir algodão de ótima qualidade e em grande quantidade; a limitação da jornada de trabalho e uma série de outros mecanismos legais que diminuíram a margem de mais-valia absoluta trazidos pela Revolução de 1930; problemas relacionados à energia elétrica; e, finalmente, a maior distância do mercado consumidor em relação a São Paulo (p. 179). Tais problemas foram sopesados com “um verdadeiro boom nas fábricas de tecidos” entre 1941 e 1945, quando a “produção aumentou significativamente” devido ao impacto da Segunda Guerra Mundial, que se estendeu até o final da década seguinte, “quando começa a decadência do setor” (p. 154). Lessa cai, porém, no campo da especulação quando tenta enumerar uma série de medidas que deveriam ser tomados para salvar o sistema industrial têxtil de Alagoas. Todos os verbos dessa passagem dão a ideia de possibilidade, de sugestão: “seria necessário”; “era preciso”; “beneficiariam”; “tivessem”; “precisavam”; “requeria”; “podia”. Não podendo cumprir o que o autor considera que seria a resolução dos problemas das fábricas têxteis, a burguesia industrial têxtil alagoana encontrou saída: “sua irresolução histórica congênita lhe foi fatal” (p. 179).
Diversos outros temas poderiam ser discutidos, pois a obra em análise dá margem a isto. Porém, cremos ser o exposto suficiente para dar uma ideia do papel por ela desempenhado na escrita da história. É praxe introduzir qualquer texto sobre historiografia de Alagoas ressaltando seu caráter lacunar [3]. Apesar de algumas observações críticas acima apontadas, cremos, no entanto, que, O ciclo do algodão e as vilas operárias, de Douglas Apratto Tenório e Golbery Luiz Lessa, preenche uma destas lacunas.
Notas
2 Para uma crítica da teoria eurocêntrica, ver: BLAUT, James Morris. The colonizer’s model of the world: geografical diffusionismo and eurocentric history. New York: The Guiford Press, 1993. Especialmente o capítulo 1, History Inside Out, onde o autor faz um balanço do argumento eurocentrista; e LANDER, Edgardo (org.). A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais. Buenos Aires: Consejo Latinoamericano de Ciencias Sociales (CLACSO), 2005. Nesta publicação, conferir também a apresentação da edição em português do geografo Carlos Walter Porto-Gonçalves.
3 Sobre os problemas referentes à produção de estudos históricos em Alagoas, ver a apresentação de Osvaldo Maciel ao seu: MACIEL, Osvaldo (org.). Pesquisando (n)a província: economia, trabalho e cultura numa sociedade escravista (Alagoas, século XIX). Maceió: Q Gráfica, 2011.
Referências
BLAUT, James Morris. The colonizer’s model of the world: geografical diffusionismo and eurocentric history. New York: The Guiford Press, 1993.
FARIA, Sheila de Castro. A colônia em movimento: fortuna e família no cotidiano colonial. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998.
LANDER, Edgardo (org.). A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais. Buenos Aires: Consejo Latinoamericano de Ciencias Sociales (CLACSO), 2005.
MACIEL, Osvaldo. Pesquisando (n)a província: economia, trabalho e cultura numa sociedade escravista (Alagoas, século XIX). Maceió: Q Gráfica, 2011.
Hélder Silva de Melo – Formado em História pela Universidade Estadual de Alagoas. Atualmente é mestrando pelo Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Pernambuco. Trabalha como professor da Educação Básica na Secretária Municipal de Educação de Arapiraca desde 2010.
TENÓRIO, Douglas Apratto; LESSA, Golbery Luiz. O ciclo do algodão e as vilas operárias. Maceió: Sebrae, 2013. Resenha de: MELO, Hélder Silva de. Crítica Histórica. Maceió, v.5, n.9, p.271-277, jul., 2014. Acessar publicação original [DR]
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