O capitalismo tardio. Contribuição à revisão crítica da formação e do desenvolvimento da economia brasileira | João Manuel Cardoso de Mello
A Editora Unesp, em parceria com a Facamp está relançando um conjunto de obras clássicas sobre a história econômica do Brasil. Uma destas, O Capitalismo Tardio, de João Manuel Cardoso de Mello, estava esgotada há doze anos. Trata-se de sua tese de doutorado, defendida no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp, um Instituto criado em 1967, tendo como núcleo a área de economia, em 1975. No prefácio da tese — excluído das edições em livro — João Manuel Cardoso de Mello explica que sua intenção inicial era “examinar o papel do capital estrangeiro em nosso desenvolvimento”. Entretanto, à medida que o trabalho avançava o autor foi percebendo as fragilidades da escola de economia política na qual se educara, a Cepal (Comissão econômica para a América Latina e Caribe). O propósito se deslocou, assim, para a ideia de que “era preciso pensar o desenvolvimento brasileiro como formação de um certo capitalismo, de um capitalismo que nascera tardiamente”.
A obra faz parte de um conjunto de trabalhos envolvendo outros pesquisadores da que ficou conhecida como Escola de Campinas. Do mesmo ano é Raízes da concentração industrial em São Paulo, de Wilson Cano e de 1973, Le cafe et l’industrie au Brésil 1880-1930, de Sérgio Silva, tese defendida em Paris e publicada no Brasil em 1976. Defendida na Faculdade de Economia e Administração da Universidade Federal do Rio de Janeiro, em 1975, outra obra com a qual O Capitalismo Tardio dialoga é a tese de livre docência de Maria da Conceição Tavares, Acumulação de Capital e industrialização no Brasil. Podemos dizer que O Capitalismo Tardio estabelece um elo de ligação entre esses trabalhos. Isso porque incorpora os resultados das pesquisas de Wilson Cano e Sérgio Silva sobre o que ficou conhecido como complexo cafeeiro, bem como a relação entre café e indústria. Por outro lado, agrega a periodização da industrialização formulada por Maria da Conceição Tavares, bem como sua crítica ao modelo de Industrialização por Substituição de Importações (ISI), de origem cepalina.
A estrutura do livro é desconcertante à primeira vista. Embora o forte do livro seja a proposta de análise metodológica cujo resultado mais importante seja uma periodização da formação do capitalismo no Brasil, o livro é montado de forma não-cronológica. A introdução é basicamente a colocação do problema da formação do capitalismo no Brasil como uma crítica à Cepal e à teoria da dependência. A primeira parte, As raízes do capitalismo retardatário, desenvolve essa crítica elaborando uma cronologia da passagem da economia colonial à economia exportadora capitalista no Brasil. A segunda parte, A industrialização retardatária, embora se inicie com a análise e a periodização do nascimento da capital industrial, termina, e aqui fica o elemento desconcertante, com a análise da relação entre o capital cafeerio e o industrial, relação no qual o segundo está subordinado ao primeiro, numa conjuntura cíclica que se estende de 1919 até 1932, exatamente o ciclo que irá, ao seu término, dar origem à industrialização restringida. Essa organização formal, talvez, seja fruto da marca pessoal do livro e do autor. Com efeito, se retomarmos o prefácio à tese de doutorado, João Manuel Cardoso de Mello afirma que escreveu a tese “antes de tudo como auto-esclarecimento”. Frase aparentemente coloquial. Mas, se atentarmos para o texto, veremos como as passagens significativas possuem um caráter de diálogo interior, com expressões como “entendamos”, “expliquemos” recheando o texto e delatando a dificuldade do autor em transmitir seu pensamento aos leitores. Essa dificuldade de leitura, entretanto, é compensada por uma reflexão precisa, de quem sabe que a boa formulação de um problema já é muita de sua resolução.
A introdução, portanto é uma crítica à Cepal, estendida para a teoria da dependência e se configura como uma espécie crítica da economia política latino-americana, como sugeriram Roberto Schwarz e Fernando Novais. Com efeito, é preciso atentar para o fato de que a reflexão marxista no Brasil tem um importante impulso, do ponto de vista acadêmico, ao fazer a crítica às interpretações sobre a formação e desenvolvimento do capitalismo no Brasil, assim como Marx fizera uma crítica à economia burguesa que explicava o capitalismo através da mão invisível do mercado.
No caso brasileiro, ou melhor, latino-americano, a mão invisível foi a que ocasionou a industrialização a partir da Crise de 1929. Como resultado de políticas anti-cíclicas avant la lettre, algumas nações periféricas conseguiram transformar sua dinâmica econômica, passando de um desenvolvimento voltado para fora, no setor exportador de produtos primários, para um desenvolvimento para dentro, com o processo de substituição de importações dinamizando o setor industrial e colocando em novas bases os obstáculos ao desenvolvimento econômico. A partir de 1933, para a Cepal, o problema deixava de ser a realização da produção no comércio internacional, para se alocar na capacidade de importação. À política econômica caberia encontrar uma sintonia fina nos investimentos que permitissem a implantação dos setores de bens de consumo duráveis e de bens de capital, sem sobrecarregar o balanço de pagamentos e criando, conjuntamente, uma agricultura moderna capaz de atender ao consumo dos assalariados.
A crítica de O Capitalismo Tardio consiste em alertar que a industrialização na América Latina não é qualquer industrialização, mas uma industrialização retardatária, que acontece num momento de capitalismo oligopolista internacional, o que impediu a constituição de um modelo clássico de industrialização, ritmado pela passagem manufatura/indústria/grande indústria. Nosso capitalismo, portanto, possui particularidades que devem ser buscadas não apenas numa divisão internacional do trabalho e na difusão desigual do progresso técnico, como queria a Cepal, nem, tampouco, na incorporação de fatores sociais políticos como condicionantes do desenvolvimento, como quis a teoria da dependência, a partir de uma crítica aos resultados da política econômica cepalina. Ao contrário, seria preciso que “se pensasse, até as últimas conseqüências, a História latino-americana como formação e desenvolvimento de um certo capitalismo”(26).
O desenvolvimento desse certo capitalismo é analisado através de uma nova periodização: economia colonial, economia mercantil-escravista cafeeira nacional, economia exportadora capitalista. Periodização diferente da Cepal porque o que determinante não é a formação da Nação e sua possibilidade de desenvolvimento numa divisão internacional do trabalho e de dinâmica de difusão do progresso técnico. Ao contrário, a instância primordial de O Capitalismo Tardio é a dinâmica da acumulação de capital, ou seja, a periodização do livro é a periodização dos momentos de formação do capitalismo no Brasil. Assim, a passagem da economia colonial para a economia mercantil escravista cafeeira nacional é feita sob o comando do capital mercantil gestado nos “poros da colônia”. Ou seja, embora a dinâmica da acumulação seja a mesma, com o fim do exclusivo metropolitano a reprodução da acumulação é decidida internamente. Daí a manutenção do escravismo, e a recolocação do Brasil nos fluxos do comércio internacional através da exportação do café. Portanto, muda o centro de decisão, que se nacionaliza, mas o comando do capital mercantil permanece, criando condições para seu desenvolvimento e, também para sua superação. A explicação dessa superação — a passagem da economia mercantil-escravista cafeeira nacional para a economia exportadora capitalista — tem como elemento determinante a constituição do trabalho assalariado. Dessa forma, a implantação do capitalismo no Brasil é também a constituição do trabalho assalariado. Nesse ponto, a análise retoma o Celso Furtado de Formação econômica do Brasil (1959), embora o movimento histórico se dê, em O Capitalismo Tardio sob a lógica da acumulação, como iremos demonstrar.
Em harmonia com Wilson Cano, é feita uma distinção entre as duas regiões cafeeiras. A região do vale do Paraíba fluminense, constituída a partir de 1830, atraindo escravos da região mineradora decadente e se aproveitando do capital mercantil formado “nos poros da colônia”, agora controlado pelos comissários do café. Essa agricultura encontrou limites insuperáveis para sua reprodução. O solo irregular e pouco fértil, aliado à mão-de-obra escrava, impediu a incorporação de progresso técnico na agricultura. Por outro lado, a lei de 1850 proibindo o tráfico de escravos impôs um marco irrevogável para o fim da escravidão, aumentando o preço dos mancípios existentes no Brasil. Finalmente, a expansão cafeeira não poderia continuar de forma extensiva, pois a distância dos portos colocava como impeditivo o custo crescente dos fretes. Assim, técnicas arcaicas, trabalho escravo e obstáculos à expansão impuseram limites ao capital mercantil — cujo lucro se dá na compra e na venda e que, portanto, pode mudar de atividade de acordo com sua taxa de lucro, — o qual acabou por abandonar a região à decadência, a partir dos anos 1870, provocando a falência de inúmeros fazendeiros da região.
Diversa foi a cultura cafeeira do Oeste Paulista. Tendo origem no mesmo capital mercantil, a plantação nessa área encontrou uma produtividade do solo inédita, além de terrenos planos. Com isso, uma porcentagem crescente dos lucros ficou residente nas fazendas. Isto permitiu a incorporarão de progresso técnico (máquinas de beneficiamento, despolpadoras, arado mecânico), a utilização menos intensiva da mão-de-obra escrava, bem como a adoção de trabalho assalariado. Como resultado, a partir dos anos 1860, o capital cafeeiro se diversificou e, aliado ao capital estrangeiro e ao Estado, implantou as ferrovias, resolvendo o problema da fronteira agrícola. Ao fazê-lo, no entanto, criou as condições para a transição ao trabalho assalariado e, efetivamente, comandou sua implantação, em parceria com o Estado, a partir de 1886. Finda a transição para uma economia exportadora capitalista, o problema passa a ser a formação do capitalismo no Brasil.
Aqui, a questão é respondida de forma original, marcando um dos momentos fortes da obra. Com efeito, para entendermos a formação do capitalismo no Brasil é preciso ter em conta que a despeito da implantação do trabalho assalariado, portanto, do modo de produção capitalista, “o fato decisivo é que não constituem, simultaneamente, forças produtivas capitalistas, o que somente foi possível porque a produção capitalista era exportada. Ou seja, a reprodução ampliada do capital não está assegurada endogenamente, isto é, dentro das economias latino-americanas, face à ausência das bases materiais de produção de bens de capital e outros meios de produção. Abre-se, portanto, um período de transição para o capitalismo” (78-79). Está colocada nessa afirmação uma nova forma de compreensão do capitalismo no Brasil. Ao estabelecer a distinção entre modo de produção capitalista e forças produtivas capitalistas, o autor se coloca em divergência com os outros modelos de explicação do capitalismo no Brasil. Para além da crítica à Cepal e à teoria da dependência, o autor também se distancia das interpretações do Seminário Marx, que explicaram a relação combinada entre capitalismo no centro e formas escravistas e arcaicas na periferia, mas não produziram uma explicação sobre a formação do capitalismo no Brasil. Difere também da explicação de Francisco de Oliveira em seu A economia brasileira. Crítica à razão dualista. Isso porque o sociólogo pernambucano explica a emergência do capitalismo no Brasil através de um padrão de acumulação baseado nos mecanismos extra-econômicos de expropriação da força de trabalho, ou seja, expropriação que se baseia em outros mecanismos que não apenas a mais-valia extraída do trabalho.
O Capitalismo Tardio, portanto, coloca o problema da implantação do capitalismo no Brasil como a formação das forças produtivas capitalistas, daí que a resposta apareça como uma periodização da industrialização brasileira. Assim, o nascimento do capital industrial, 1880-1933; industrialização restringida, 1933-1956 e, por fim, a implantação da indústria pesada, 1956-1961, configuram o cerne da análise da segunda parte da obra.
Já o título do primeiro período indica a crítica a Cepal, pois demonstra a diferença entre industrialização (centrada na dinâmica do capital industrial) e surgimento da indústria. Nesse período, a dinâmica é dada ainda pelo capital cafeeiro, que impõe limites à primeira, não só pela dependência do mercado consumidor, cuja renda advém do setor exportador, mas também da geração de divisas, a qual, em última instância, está subordinada à demanda internacional. Após a crise de 1929 e a resposta do Governo brasileiro de estímulo à demanda (retomando, nesse ponto, a análise de Celso Furtado), inicia-se um processo de industrialização restringida. Industrialização, porque a dinâmica da acumulação está agora assentada no setor industrial. Restringida, porque não existem bases técnicas e financeiras para a acumulação implantar o setor de bens de produção. Esta, por sua vez, será implantada entre 1956 e 1961. Essa expansão esteve apoiada no Estado e no capital estrangeiro, pois não haviam, internamente, os requisitos necessários para sua implantação a partir da estrutura industrial existente. Assim, ao Estado coube os investimentos em infraestrutura e em indústrias de base, gerando a demanda para o investimento privado nas indústrias já instaladas.
Uma consideração importante nessa interpretação é a relação entre os condicionantes exógenos e endógenos da formação do capitalismo no Brasil. Uma das críticas mais repetidas que o livro recebeu seria a demasiada ênfase nos condicionantes internos. Pensamos o contrário. Trata-se, como o próprio nome diz, de um capitalismo tardio: atrasado em relação à formação histórica deste nos países originários. Colocado em outra temporalidade e em outras bases técnicas, o desenvolvimento do capitalismo no Brasil foi condicionado história do capitalismo a nível internacional, daí as discussões sobre os momentos concorrencial e oligopolista na obra. Entretanto, a forma de relação estabelecida com esse, essas distintas temporalidades do mesmo sistema foi decida internamente e se resolveu de forma combinada quando o capitalismo internacional encontrou mecanismos de reprodução e taxa de lucros convenientes. Portanto, há condicionantes exógenos, os quais são processados internamente, gerando progresso das forças produtivas quando as condições para aliança são favoráveis, por exemplo, entre 1870-1890 e 1950-1960 e crises, quando as condições são adversas, como o foram nas décadas de 1930 e 1940.
Finalmente, essa periodização, desenvolvida também por Maria da Conceição Tavares indica como o instrumental marxista foi utilizado em concomitância com a macroeconomia de Keynes e Kalecki, emergindo um dos traços característicos da chamada Escola de Campinas. A fusão se dá porque o determinante da análise é a formação de forças produtivas capitalistas, as quais são analisadas através da divisão departamental de Kalecki. Uma vez assegurada a acumulação endógena do capital, a economia brasileira entra numa fase de ciclos industriais, ou seja, a dinâmica da economia não mais depende da realização externa, como acontecia sob a égide do capital mercantil, mas dada agora pelo investimento industrial, destacando-se o papel do Estado como promotor da expansão industrial à frente da demanda para assegurar a interdependência entre os setores produtivos. Esta junção de autores, cabe lembrar, não deriva de ecletismo, mas sobretudo, como o autor explica em entrevista publicada no Conversas com economistas brasileiros II, a reflexão sobre os clássicos sempre teve por objetivo “travar um diálogo entre os autores, ler a partir de problemas teóricos e práticos suscitados pela compreensão do presente, trazer o que disseram para uma problemática contemporânea, tornar vivo seu pensamento”.
Resenhista
Roberto Pereira Silva – Mestre em História Econômica pela Unicamp e Doutorando em História Econômica FFLCH-USP.
Referências desta Resenha
CARDOSO DE MELLO, João Manuel. O capitalismo tardio. Contribuição à revisão crítica da formação e do desenvolvimento da economia brasileira. São Paulo: Unesp; Campinas: Facamp, 2009. Resenha de: SILVA, Roberto Pereira. Revista de Economia política e História Econômica. São Paulo, ano 07, n. 23, p. 182-189, dezembro, 2010. Acessar publicação original [DR]