“Quem pretende se aproximar do próprio passado soterrado deve agir como um homem que escava.” É precisamente esse movimento de escavação extraído da proposição benjaminiana que a escrita de Fernando Sá empreende, ao configurar o recorte de passado do nordeste brasileiro, conhecido metonimicamente pelo termo cangaço. (BENJAMIN, 1997, p. 239). A familiaridade, aludida por Benjamin, entre explorador do meio de memória e o passado que busca, pela palavra, configurar, se depreende já na leitura do prefácio da obra, quando sua genealogia entre adjuvantes do cangaço é exposta. É, pois, no terreno do próprio passado que esse herdeiro de memórias, por assim dizer, escava. Legado que confere ao texto de Sá certa licenciosidade na escolha dos objetos de pesquisa, bem como no tratamento dos dados coletados e na (des) crença em relação às fontes.
O cangaço aparece, pois, como meio privilegiado de vivências da cultura brasileira: o “palimpsesto” como retrato figurado, desfigurado e transfigurado da história; a superfície em que a história se inscreve e se oculta. Em um texto preliminar, Sá discorre sobre “o desafio de investigar a história da memória do cangaço.” Circunscreve sua área de trabalho, invocando, para tanto, seus parceiros no trato com a memória e os respectivos desdobramentos na escrita da história: Meyer, Duby, como fomentadores de um discurso histórico em que a subjetividade do historiador desempenha importante papel. Expressões indicadoras do lugar da memória na sociedade contemporânea contextualizam a pesquisa nos diferentes espaços de produção acadêmico-cientifica: “momento memorioso, indústria da memória, mercado das memórias”. Delimita a área do extenso território da memória nas representações da sociedade contemporânea que pretende, preferencialmente, palmilhar: o “lugar político” das práticas da memória. Huyssen, Gordon e, principalmente, Nora comparecem ao debate, quando reafirmam os usos da memória nas suas múltiplas funções culturais, políticas, sociais na narração do passado.
Apresenta a possibilidade de “estudo crítico da memória histórica” como saldo positivo da distensão de seu conceito. Cita a ascensão do “multiculturalismo” como base da emergência da memória na virada do século XXI. Justamente na descrição do que seria o fim da história, Sá encontra motivos para saudar o crescimento da nascente história cultural.
Defende memória como fonte privilegiada do trabalho do historiador, o discurso da memória como re-encantamento, como o quer uma concepção pós-moderna do registro do passado. Nesse sentido, é certo que a memória deixa o explorador do passado em posição menos confortável que a história. No entanto, é clara a opção do memorialista do cangaço em assumir o desconforto. Aparenta-se ao leitor, conforme retratado por Barthes, diante de dois textos diversos: o de “prazer” e o de “fruição”. O texto da história, pelo relato coerente ordenado e verídico: o de prazer – no dizer de Barthes, “aquele que contenta, enche, dá euforia, aquele que vem da cultura, não rompe com ela, está ligado a uma prática confortável de leitura” – um texto a ser lido pelo leitor-historiador e que corresponde a seus “gostos, valores, lembranças”. O texto da memória: o de fruição, com tudo o que traz de inesperado, de surpreendente, “ora distraindo-o, ou mesmo desviando-o” (SÁ, 2011, p. 28) – o mesmo que Barthes apresenta como “aquele que põe em estado de perda, aquele que desconforta.” (BARTHES, 1993, p. 21 e 22).
Chartier contribui ao debate ao trazer à atenção a necessária distância a se guardar em relação à história-memória produzida por identidades, no mundo contemporâneo. No momento em que dela prescinde, o especialista cede a vez (e a voz) a um leitor de outra instância e corre o risco de se deixar levar pela fruição na leitura de um texto-memória, cheio do “excesso”, do “sublime”, do “enigmático”.
No conjunto dos textos de memória, o estudo eleva as comemorações a uma categoria especial de objeto de leitura: a “metanarrativa”, o “culto encenado”, “o passado revivido que se torna mais atual que o passado em si”. Evoca o conceito de “nação como narrativa”, de Bhabha, coloca-o em diálogo com seu teórico de base, Nora, e chega ao poderoso argumento da “politização da comemoração”. Chega, então, às “celebrações em torno do centenário de nascimento de Lampião, Virgulino Ferreira da Silva”, guiado pelo calendário comemorativo de Lampião, bem como pelo roteiro cartográfico de suas andanças. Dá espaço ao discurso dissonante, com a menção à entrevista com David Jurubeba (SÁ, 2011, p. 36) e quando cita o artigo assinado por Ariano Suassuna (SÁ, 2011, p. 37) sobre a não procedência das homenagens ao personagem Lampião. Embora, pela proporção, demonstre tomar o partido dos que celebram o cangaço como texto significativo da cultura brasileira – o que sua escrita testemunha. Em Poço Redondo, confessa experimentar sensação similar à ideia formulada por Eco, em seus Seis passeios pelos bosques da ficção, (embora o teórico italiano trate especificamente da construção ficcional): “Quando se põem a migrar de um texto para o outro, as personagens ficcionais já adquiriram cidadania no mundo real e se libertaram da história que as criou.” (ECO, 1994 p.131-132), Tal cidadania faz, por extensão, dos personagens de narrativas orais, à força do compartilhamento (emprestando o termo essencial à argumentação de Benjamin), elementos de uma memória coletiva que prescinde das respectivas vivências, o que acaba por lhe atribuir certas propriedades da ficção.
Em nada tal atitude dos informantes de Sá compromete a verossimilhança do relato, tampouco induz, necessariamente, à desconfiança quanto ao potencial de veracidade de cada história. Já situada no terreno da pós-modernidade, a memória como discurso se beneficia da formulação de Bauman sobre lacunas (ou ocultamento) que as fontes impressas produzem e as orais solucionam – fenômeno do qual o texto das Batalhas dá conta (p.39). É esta, ao que parece, a opção metodológica do pesquisador, ao dar espaço às vozes, por vezes destoantes, sobre seu recorte de história: “É a própria realidade que agora necessita da “suspensão da descrença”, outrora a prerrogativa da arte, a fim de ser apreendida, encarada e vivida como realidade. A própria realidade é agora “arremedo”,…” (BAUMAN, 1998, p. 158).
Segue a leitura do cangaço, trazendo para si a polêmica gerada em torno dos temas da “politização da memória”: assume os embates relacionados à constituição de identidades emergentes na luta política e ideológica que tem lugar no sertão. Os discursos que evidenciam a contenda emprestam ao texto uma feição multifacetada, que se explicita na própria organização do corpus. E a leitura da leitura de Sá segue provocadora, porquanto sua escrita desencadeia, no estudioso da narrativa, reverberações polifônicas entre a historiografia e a teoria literária.
Investe na leitura do romance, na leitura dos quadrinhos, na leitura do cinema, transformando os motivos do cangaço em um grande e multilíngue texto, que lhe permite empreender a “leitura de mundo”, tal qual queria Paulo Freire, e tal qual o leitor do sertão (e esse produto o confirma) se dispôs e se habilitou a realizar.
Instiga ainda o leitor descomprometido com questões teórico-metodológicas sobre memória, porque suas batalhas – também, metadiscursivas – são narradas como tais, em suas idas e vindas, nos avanços e recuos das diversas narrativas que lhes dão corpo. Tal qual a encenação do cangaço lida nos passos do xaxado, a escrita historiográfica encena a disputa, corporifica o embate dos discursos e transforma o sujeito leitor e colecionador de memórias em criador da história como “arremedo” da arte e vice-versa.
Referências
BARTHES, Roland. O prazer do texto. São Paulo: Perspectiva, 1993.
BENJAMIN, Obras escolhidas II. Rua de mão única. São Paulo: Brasiliense, 1997.
BAUMAN, Zygmunt. O mal-estar da Pós-Modernidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998.
SÁ, Fernando. O cangaço nas batalhas da memória. Recife: Ed. Da UFPE, 2011.
ECO, Umberto. Seis passeios pelos bosques da ficção. São Paulo: Companhia das Letras, 1994.
Maria Aparecida Silva Ribeiro – Doutora em Letras pela PUC-RIO. Professora Adjunta do Departamento de Letras Vernáculas e do Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal de Sergipe. Membro do Grupo de Pesquisa Linguagem e Ensino. E-mail: masribeiro97@gmail.com
SÁ, Antônio Fernando de Araújo. O cangaço nas batalhas da memória. Recife: Editora da UFPE, 2011. Resenha de: RIBEIRO, Maria Aparecida Silva. Entre discurso histórico e registro de memória: lampejos de leitura. Ponta de Lança, São Cristóvão, v. 5, n.10, p. 115-118, abr./out., 2012. Acessar publicação original [DR]
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