O Brasil e as novas dimensões da segurança internacional | Gilberto Dupas e Tullo Vigevani
O Brasil e as novas dimensões da segurança internacional, coletânea organizada por Gilberto Dupas e Tullo Vigevani, tem origem em um seminário realizado pelo Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo, em 1998. Trata-se de um sério esforço de estudiosos brasileiros no sentido de pensar sobre o lugar do Brasil no mundo pós-bipolar, em que a distribuição de poder, como adverte M.-C. Smouts, parece mais próxima dos relógios moles de Dali do que de qualquer fórmula geométrica. Tarefa difícil, pois, é esta de compreender o funcionamento da era pós-Guerra Fria e dos possíveis caminhos para a inserção do Brasil.
No primeiro capítulo, Gelson Fonseca Jr. situa o enfoque realista no espectro interpretativo sobre o sistema internacional, atualizando-o com vistas a definir o tipo de relações de poder que substituiu a bipolaridade. Das poucas certezas que temos, afirma o autor, provavelmente a mais indiscutível é a de que os Estados Unidos são pólo que se diferencia por seus recursos de poder, e questiona: “em uma ordem que combina concerto e multipolaridade, quais seriam as posições do Brasil?” Compartilhamos dos valores do concerto, como a democracia, os direitos humanos, etc, e, se persiste tal configuração de poder, a resposta estaria em “como aumentar a nossa capacidade de influência”.
Luciano Martins e José Augusto Guilhon Albuquerque discutem e enriquecem as reflexões de Fonseca Jr. Luciano Martins traz para a análise a indagação acerca das conseqüências da prevalência dos fatores geo-econômicos sobre os geopolíticos enquanto definidores da ordem mundial. Segundo Martins, essa transformação tem seu exemplo eloqüente nos riscos gerados pelo sistema financeiro transnacional. Guilhon Albuquerque sugere uma alternativa à interpretação do sistema internacional: ao invés de considerá-lo multipolar, entende que melhor modelo da distribuição de poder seria o da “corrida de bicicleta”, em que há dois pelotões: no pelotão que vai à frente estariam os Estados Unidos, e no segundo, vários países que se alternam. Saber se as potências que conquistaram um lugar no segundo pelotão por causa da Guerra Fria aí permaneceriam e qual o papel dos países desse segundo pelotão com relação à potência norte-americana (moderá-la ou reforçá-la?) seriam, então, as questões relevantes.
O capítulo de autoria de Tullo Vigevani, Priscila Correa e Rodrigo Cintra propõe um questionamento em torno da própria definição contemporânea do conceito de segurança, situando-o igualmente nos principais debates teóricos dos últimos séculos. Nesse sentido, lembra que os Estados, representantes formais da vontade coletiva, devem estar capacitados para buscar e modular sua inserção internacional, ou seja, têm que estar aptos a distinguir aquilo que tem de fato ressonância em valores universais e o corresponde unicamente a interesses particularistas. De fato, constata-se que no pós-Guerra Fria, mais do que nunca, a agenda internacional está configurada a partir de valores hegemônicos e que o consenso generaliza-se institucionalmente.
Importantes capítulos estão dedicados a uma avaliação crítica sobre a atuação da ONU. Celso Amorim analisa as dificuldades enfrentadas pelo Conselho de Segurança em um “período transitório de ajuste nas relações internacionais”, caracterizado pelas incertezas e a necessária cautela. Face aos diversos encaminhamentos possíveis de atuação do Conselho alguns, inclusive, já ensaiados não descarta as inovações, considerando, porém, que os princípios do sistema onusiano devem ser preservados, sob pena, por exemplo, de se correr o risco de transformar a via multilateral em mecanismo a serviço da unipolaridade. É nessa perspectiva que, segundo o autor, ganha particular interesse a atuação do Brasil no âmbito da ONU.
Também sobre a estrutura da ONU discutem Clóvis Brigagão, Ronaldo Sardenberg, Amaury P. de Oliveira e Ulisses L. P. Lannes. Brigagão aponta para a incorporação das novas dimensões da segurança internacional, ou seja, sua dimensão econômica, tecnológica, ambiental e social. Sardenberg revisa as vulnerabilidades passadas e indica as vulnerabilidades emergentes da era pós-bipolar, que em geral escapam do sistema de segurança internacional do Conselho e da Assembléia. Oliveira discute os próprios fundamentos que levaram à criação da organização internacional, ainda o sistema westphaliano, e a mudança radical, em curso, dos sistemas nacionais de produção. Finalmente, Lannes traça um balanço sobre as operações de manutenção de paz da ONU e a bem sucedida experiência brasileira de participação nessas missões.
Somente em 1998 o governo brasileiro decidiu-se por aderir ao Tratado de Não-Proliferação de Armas Nucleares (TNP), principal instrumento do regime de não-proliferação de armas nucleares. Mudou a diplomacia brasileira? Os tempos são outros e a os mecanismos multilaterais de controle passam a ser percebidos menos como instrumento de manobra para impedir que os países não-nucleares tenham acesso ao desenvolvimento e mais como via legítima para a não-proliferação. Esse é um dos argumentos de Celso Lafer, que escreve talvez as mais profícuas reflexões do livro no sentido de se compreender os elementos da ordem internacional que informaram a política externa brasileira nas últimas décadas e que sofreram substanciais transformações nos últimos anos. Ainda que o capítulo dê ênfase “às novas dimensões do desarmamento”, é leitura esclarecedora para um espectro mais abrangente de questões: por que o Brasil, por exemplo, também em 1998, reconheceu a competência obrigatória da Corte Interamericana de Diretos Humanos.
Ainda sobre o desarmamento discutem Mario Cesar Flores e Georges Lamazière. Mario Cesar Flores trata do desarmamento convencional e nuclear e explicita, sobretudo, um grande ceticismo com respeito às fórmulas coercitivas de controle. “Não existe mágica desarmamentista”, afirma o autor, que entende que os esforços no sentido de alcançar um efetivo controle da difusão de armas devem voltar-se, fundamentalmente, para a redução das tensões internacionais. Lamazière, por sua vez, aponta para a maior relevância que crescentemente adquirem os regimes internacionais e a concomitante necessidade de estudar-se aí o papel da hegemonia norte-americana.
Nos dois últimos capítulos, Marco Aurélio Garcia e Gilberto Dupas revêem criticamente o processo de adaptação do Brasil às mudanças globais. Garcia revisa a trajetória que vai do nacional-desenvolvimentismo às políticas que visam a inserção competitiva do Brasil na economia globalizada. Ao postulado da inexorável adequação das políticas macro-econômicas à lógica da globalização comercial contrapõe uma posição que invista na “potencialização dos fatores endógenos” e em alternativas que visem maior articulação do Brasil com a América Latina e outros parceiros não suficientemente valorizados pela política externa, a exemplo dos países africanos, da China e da Índia. Dupas, finalmente, centra-se nos aspectos relativos à distribuição de renda e à crescente exclusão e tensão social que são, com certeza, fatores decisivos em qualquer equação que vise alcançar padrões razoáveis de segurança local e internacional.
Pelo número, diversidade e qualidade das reflexões que constam de O Brasil e as novas dimensões da segurança internacional, há que se registrar que, de fato, contribui retomando as palavras de seus organizadores “para o preenchimento de uma importante lacuna existente no Brasil: a falta de um debate abrangente, que alcance toda a sociedade, envolvendo questões de Segurança Internacional”. Sem dúvida, cumpriu-se o intencionado. A obra coletiva demonstra a salutar preocupação de incluir no exercício de reflexão diversos interlocutores, estatais e da sociedade como um todo. Além disso, motiva a continuidade da reflexão e deixa indicados temas para o aprofundamento do debate. Sem dúvida, a redefinição dos rumos, desejáveis e factíveis, de inserção do Brasil com respeito ao complexo tema da segurança internacional é empreitada que requer estudos específicos e consistentes. A presente obra relança o desafio.
Resenhista
Norma Breda dos Santos
Referências desta Resenha
DUPAS, Gilberto; VIGEVANI, Tullo (Orgs.). O Brasil e as novas dimensões da segurança internacional. São Paulo: Alfa-Ômega, 1999. Coleção Relações Internacionais, v. 5. Resenha de: SANTOS, Norma Breda dos. Revista Brasileira de Política Internacional, v.43, n.1, 2000. Acessar publicação original [DR]