O Brasil descobre a pesquisa científica: os museus e as ciências naturais do século XIX | Maria Margaret Lopes

Margaret Lopes apresenta uma importante contribuição para a história da ciência no Brasil, um livro indicado para o prêmio Jabuti em 1999, cujos méritos são muitos, a começar pela clareza de exposição. O livro divide-se em cinco capítulos, cada um deles subdividido, o que torna sua leitura mais fácil e agradável. Logo na introdução (pp. 11-24), expõe a sua tese essencial, em consonância com as novas posturas metodológicas de entendimento amplo da história das ciências, segundo a qual os museus brasileiros estiveram atuantes e institucionalizaram as ciências naturais e suas especializações, já no século XIX, em contraposição à historiografia corrente.

O primeiro capítulo trata dos antecedentes, constituição e primeiros anos do Museu Nacional do Rio de Janeiro (pp. 25-84). A partir da Casa de História Natural, ou Casa dos Pássaros, criada em 1784 para colecionar, armazenar e preparar produtos naturais e adornos indígenas para enviar a Lisboa, criou-se em 1818 o Museu Real do Rio de Janeiro. O museu inseria-se nos gabinetes-museus da época como um verdadeiro museu metropolitano, centro receptor de produtos das províncias e possessões do “ultramar”, mantenedor de intercâmbios internacionais e decidido a organizar coleções de caráter universal. Logo transformado em Museu Imperial, com a independência, o museu, em seguida, passou a contar com cinco divisões: produtos zoológicos, botânicos, orictognósticos, belas-artes e objetos relativos aos diversos povos. O museu teve uma atuação simbólica e concreta como centro de ciência e cultura na Corte, mantendo estreitos vínculos com as demais instituições culturais e científicas do país, em especial interagindo com o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, criado em 1838.

O segundo capítulo intitula-se, significativamente, `Com os olhos na Europa e os pés na América’ (pp. 85-149). A autora relata os questiona-mentos às atividades do Museu Imperial no Senado, em 1843, quando da discussão do orçamento do Ministério dos Negócios do Império, o que resultou na simples manutenção do status quo e na redução de salários dos diretores, em claro retrocesso, ante os avanços que se faziam no contexto internacional. Um novo período abre-se com a nomeação de diretores com carreira e reputação científicas consagradas, a partir de Leopoldo César Burlamaque (diretor de 1847 a 1866), seguido de Francisco Freire Alemão (1866-74) e Ladislau de Souza Melo Neto (1875-93), este último o grande organizador do museu segundo os padrões científicos vigentes nas décadas de 1860 e 1870, batalhador por verbas e reconhe-cimento científico da instituição.

O terceiro capítulo (pp. 151-222) trata da expansão dos museus para além da Corte no Rio de Janeiro, a partir da década de 1860 e do auge do Museu Imperial, sob o comando de Ladislau Neto. Este distanciou-se, aos poucos, da botânica e devotou-se à arqueologia e antropologia, criando a Quarta Seção de Antropologia, Etnologia e Arqueologia, desde 1876 sob sua responsabilidade e, em certo sentido, constituindo o cerne ideoló-gico da instituição. Ladislau Neto inseria, assim, o museu no panorama internacional por essa sua particularidade local e, ao mesmo tempo, dava conta dos anseios de brasilidade emergentes naquele período da história imperial. Criou os Arquivos, revista científica que inseria o museu no mundo acadêmico da época, tendo publicado oito volumes entre 1876 e 1893, compreendendo, em 1886, a distribuição de oitocentos exemplares enviados para museus e bibliotecas do exterior, com o recebimento de inúmeras permutas. Na década de 1890, contudo, divergências entre Ladislau Neto e dois cientistas estrangeiros do museu, Emílio Goeldi e Hermann von Ihering, fariam com que eles se transferissem para Belém e São Paulo, respectivamente. O fim da era Ladislau Neto, com as lutas intestinas e a transferência do museu para o antigo palácio da Quinta da Boa Vista, marcariam uma crise no caráter científico da instituição. Ainda neste capítulo, a autora trata dos museus Paraense, Paranaense e do Museu Botânico do Amazonas, os dois primeiros com cursos e conferências científicas.

O quarto capítulo volta-se para a inserção dos museus brasileiros no contexto internacional (pp. 223-322). Após a saída de Ladislau Neto, o Museu Nacional manteve seu caráter enciclopédico, metropolitano e universal, ainda almejando consagrar-se às investigações científicas. As pretensões universais, tão bem marcadas pelas peças egípcias, desde a época de d. Pedro I, continuaram a marcar as ambições do Museu Nacional, ainda que, desde a época de Ladislau Neto, procurasse especializar-se na antropologia e etnologia sul-americanas, assim como o Museu Britânico o havia feito com as antiguidades egípcias, assírias e indianas, e o Museu de La Plata se destacara na paleontologia. Em Belém, Goeldi, diretor de 1894 a 1907, tentaria, com êxito apenas relativo, transformar o museu em um centro de pesquisas em ciências naturais e etnologia da Amazônia, para tanto utilizando-se do Boletim do Museu Paraense, importante meio de inserção da instituição no contexto acadêmico internacional. O Museu Paulista foi marcado pela duradoura direção de von Ihering, de 1894 a 1915, estudioso particularmente interessado nos moluscos sul-americanos. Iniciou um grande programa de intercâmbios e contatos internacionais, tendo, também, adquirido numerosas coleções ornitológicas, zoológicas, mas ainda etnográficas e arqueológicas. Sua saída do museu e a entrada de Taunay viria a mudar o perfil do museu, voltado para a história de São Paulo.

O capítulo conclusivo aborda o papel dos museus na institucionalização das ciências naturais no Brasil (pp. 323-35) . De início, ressalta a importância das conjunturas políticas e sociais específicas do país para os rumos da institucionalização das ciências naturais e propõe que a emergente comunidade científica disputou, com relativo êxito, apoio político e mecenato imperial para cada uma de suas ações e de seus diferentes interesses. Relaciona a profissionalização ao crescente papel das personalidades individuais e, tal como ocorria alhures, “os diretores dos museus brasileiros em nada diferiam de seus pares no plano internacional” (p. 336). Lembra que, no caso brasileiro, foram os museus de história natural do século XIX que originaram a musealização e institucionalização da história oficial do país, nas primeiras décadas do século XX, como mostram o Museu Histórico Nacional, no Rio de Janeiro, ou o Museu Paulista. A falta de prestígio do museu evidencia que as ciências naturais sempre foram consideras acessórias pelas instâncias de poder e acadêmicas do Império, que apenas se voltavam para a prática médica e a construção de estradas e edificações.

O livro de Margaret Lopes constitui uma contribuição importante para o estudo dos museus como loci de desenvolvimento das ciências no Brasil. A autora insurge-se contra uma leitura historiográfica corrente que considera inexistente a produção científica, no Brasil, antes do século XX e seu mérito maior consiste, justamente, em mostrar como se produzia ciência e como a inserção internacional desses cientistas não era irrisória. Lopes considera que foi a mudança dos loci de pesquisa, que saem dos museus e vão para os assépticos laboratórios, que marcou, no século XX, a mudança no caráter dos museus. Isto teria contribuído para que os estudiosos olhassem o século XIX sob um prisma distorcido, surgido das transformações que se deram, na verdade, apenas no século XX. Algumas questões, não exploradas no livro, também poderiam contribuir para compreender tanto os êxitos, quanto as limitações dos museus como centros de pesquisa no século XIX. Assim, ao lado das ambições metro-politanas e universais, vivia-se um contexto pouco propício ao desenvolvimento das ciências. O mecenato imperial não pode ser dissociado de uma sociedade escravista, cuja estrutura social gerava contradições sociais profundas. Ao contrário do que se passava nos outros locais onde floresciam os museus, no Brasil não havia nenhuma universidade e os cursos superiores que se criaram foram sempre eminentemente pragmáticos (direito, medicina, engenharia). A estrutura social hierárquica e autoritária o era num grau que, em muito, superava qualquer outro país com museus, o que potencializava o autoritarismo, nepotismo e compadrio, todos pouco favoráveis ao desenvolvimento da ciência. A nomeação do filho de von Ihering, pelo próprio pai, para um cargo no Museu Paulista é apenas sintoma de um comportamento que surgia fora do ambiente científico, oriundo da própria sociedade.

Outro aspecto a ser lembrado é que a institucionalização das ciências ligava-se, tanto na Europa quanto nas Américas, à criação dos diversos campos de investigação científica, no interior das universidades. O Museu Britânico inseria-se no contexto das especializações em Oxford e Cambridge, enquanto os cientistas do Museu Imperial do Rio de Janeiro não podiam contar com esse essencial caldo de cultura. Novamente, o contexto brasileiro condicionava o desenvolvimento da ciência de forma clara. Considerando-se estas limitações estruturais, foi notável o desenvolvimento das ciências naturais no século XIX, o que demonstra a força da busca do conhecimento científico. A inserção desses primeiros estudiosos na ciência internacional de sua época permitia, em certo sentido, que fossem minoradas as limitações derivadas de uma sociedade tão iníqua e cujos dirigentes eram tão infensos à livre ciência. Se é verdade que os cientistas são, por definição, sempre livres e que é esta liberdade de pensamento que os caracteriza como cientistas, então se entende bem tanto os avanços como as limitações decorrentes da ligação umbilical entre a ciência nascente e o patrocínio e controle oficiais.


Resenhista

Pedro Paulo A. Funari – Departamento de História. Instituto de Filosofia e Ciências HumanasUniversidade Estadual de Campinas (Unicamp).


Referências desta Resenha

LOPES, Maria Margaret. O Brasil descobre a pesquisa científica: os museus e as ciências naturais do século XIX. São Paulo: Hucitec, 1997. Resenha de: FUNARI, Pedro Paulo A. Com os olhos na Europa e os pés na América: a pesquisa científica no Brasil do século XIX. História, Ciência, Saúde-Manguinhos. Rio de Janeiro, v.7, n.3, nov. 2000/fev. 2001. Acessar publicação original [DR]

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