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O artista em representação: imagens de artistas através da História da Arte | MODOS. Revista de História da Arte | 2019

De que modo as transformações da percepção sobre os artistas e suas significações (sociais, culturais, simbólicas e políticas) marcam as escritas da história da arte? Foi essa indagação que nos motivou a propor para a revista Modos o dossiê O Artista em Representação: Imagens de artistas através da História da Arte.

Tomando de empréstimo o título “o artista em representação” da exemplar exposição e publicação organizadas por Alain Bonnet (L’artiste en représentation: images des artistes dans l’art du XIXe siècle, 2012), interessou-nos pensar as construções históricas da imagem do artista e sua inscrição específica nos contextos brasileiro e latino-americano.

Quais são as representações da figura do artista e como se transformaram ao longo do tempo? A célebre exposição Rebels and Martyrs e seu catálogo (2006), organizados por Alexander Sturgis, contribuíram para mapear, investigar e demonstrar a pluralidade de significados dessas representações ao longo de diferentes épocas e contextos. De fato, as imagens dos artistas indicam várias camadas de interpretação do lugar social dessa figura. Nelas coexistem e se misturam visões antagônicas: intelectuais ou artesãos, mártires ou devassos, ingênuos ou revolucionários, loucos ou sábios. As imagens dos artistas personificam concepções diversas acerca da criação e da criatividade, da inspiração e do talento, da fama e do reconhecimento. Se a imagem mítica do artista como herói rebelde, outsider e mártir é uma criação do Romantismo, ela seguiu ecoando nos modos como se pensou ou escreveu acerca dos artistas, e também na maneira como os próprios artistas representaram a si mesmos ou a seus pares. As variações dessas imagens são eloquentes, tanto a respeito das representações dos artistas quanto da sociedade que as produziu.

Tal eloquência está presente nas representações visuais das figuras de artistas que Maraliz Christo e Fabio D’Almeida abordam em seus textos. Os retratos de grupo pintados por Arthur Timótheo da Costa e Angelo Bigi e o retrato historiado de Aleijadinho por Henrique Bernardelli propiciam a Christo e a D’Almeida a oportunidade de investigar como os artistas representaram a si próprios e a seus pares, construindo seu pertencimento a um círculo artístico e à história.

Christo enfatiza, nos dois retratos que aborda, a necessidade dos artistas de criarem uma memória coletiva que afirmasse a importância de seu grupo, ambicionando reconhecimento profissional, tanto por sua produção artística, quanto pela participação atuante na sociedade. D’Almeida demonstra como Bernardelli, ao retratar Aleijadinho, escreve por meio da imagem uma história da arte no Brasil, comentando ao mesmo tempo as condições de formação dessa história e do meio de arte brasileiro de sua época.

A construção da imagem do artista e de sua condição social também são objeto de análise de Alberto Chillón. O pesquisador traz à baila a problemática do estatuto social do artista-artífice, condição em profunda alteração no século XIX brasileiro. O desejo dos estucadores de serem reconhecidos como artistas, e não meros artesãos, é exemplificado pela história do frontão realizado pelo escultor Chaves Pinheiro para a casa da família Meira no Rio de Janeiro no século XIX. Os modos como compreendemos a figura do artista na história da arte resultam dos discursos visuais sobre ela, mas também dos textuais. Elaine Dias e Camila Dazzi abordam exemplos de autopromoção de artistas que criaram uma imagem de si próprios veiculada nos jornais, seja por meio de anúncios publicitários, seja por meio de artigos críticos em que essa imagem era exaltada.

Dias examina a autopromoção de artistas fotógrafos, litógrafos e pintores retratistas franceses atuantes no Rio de Janeiro. Dazzi desenvolve hipóteses sobre os modelos de modernidade adotados por Henrique e Rodolpho Bernardelli como imagens de si próprios. As duas autoras vinculam os discursos publicitário e crítico à mudança no estatuto dos artistas no século XIX que leva à necessidade da propaganda e da veiculação de uma imagem ao mesmo tempo atraente e confiável junto ao público.

O tema da representação do artista adquire pertinência especial no universo geográfico latino-americano, marcado pelas distinções sociais relativas ao trabalho manual no contexto do trabalho compulsório e à formação tardia do meio de arte no sentido moderno, o que se dá após a formação das academias, de um sistema de exposições e do mercado de arte.

Sandra Accatino, Josefina de la Maza e Catalina Valdés trazem aportes importantes para a reflexão acerca dessa especificidade. A partir da análise de três casos – a recepção de um álbum de desenhos de artistas das escolas italianas no Chile, a narrativa de histórias da arte chilena baseadas na biografia de artistas, e a pintura Giotto Pastor, de Pedro Lira – as autoras demonstram que as representações do profissional da arte no contexto latino-americano correspondem às demandas da construção de uma tradição local e, simultaneamente, à reivindicação de pertencimento à história da arte ocidental. Tal vontade de inscrição numa tradição ao mesmo tempo local e internacional resulta do anseio de pertencimento àquilo que Natalia Majluf identificou como “cosmopolitismo marginal”, característico das artes e da cultura em muitos contextos da América Latina, especialmente no momento de formação das nações independentes no continente, ao longo do século XIX. A iconografia do Giotto pastor, cara à narrativa ocidental da arte, representando uma de suas lendas fundacionais – aquela que representa tanto a retomada de um saber “esquecido”, a observação da natureza, quanto o princípio de uma nova tradição, a italiana, – ganha contornos específicos no contexto latino-americano, em que se busca ao mesmo tempo reivindicar a herança ocidental e inventar uma escola local, a partir da emulação de jovens talentos, tão “selvagens” e inatos como Giotto, por profissionais treinados na tradição europeia.

Os modos como compreendemos a figura do artista na história da arte também são construídos nos textos que circulavam em jornais e revistas. Laurens Dhaenens e João Brancato enfocam esse aspecto da formação da imagem de artistas.

Dhaenens analisa a representação de artistas latino-americanos por parte da crítica de arte no Chile, na Argentina e na Colômbia, nas décadas de 1870 e 1880. Estudando os casos do chileno Pedro Lira (1845-1912), do argentino Santiago Vaca Guzmán (1847-1896), e do colombiano Alberto Urdaneta (1845-1887), afirma que o trabalho desses artistas revela uma crença positiva no papel civilizatório da arte. Também demonstra que um pensamento sobre a arte latino-americana, mais do que nacional, aparece nessa crítica.

Brancato enfoca a série de reportagens de Adalberto Mattos, “Os nossos artistas e os seus ateliers”, publicadas na Revista illustração Brasileira na década de 1920. Acompanhadas de fotografias dos ateliês (e residências) dos artistas entrevistados, seus artigos reforçam uma identificação do temperamento do artista com seu espaço de trabalho e sua obra. Identifica um traço em comum entre várias dessas imagens, a do artista ordenado e trabalhador, cujas características estariam espelhadas na organização e beleza de seu ateliê, aspecto que liga seu estudo ao de Alain Bonnet, sobre as imagens dos artistas acadêmicos franceses.

Fechando o dossiê, o historiador francês apresenta um panorama sobre a representação dos artistas no século XIX na Europa, que ora se apresentam como geniais, incompreendidos e malditos, ora como profissionais dedicados, dignos e bem-sucedidos. Analisando retratos e autorretratos de artistas oficiais ou independentes, mas também retratos coletivos realizados por pintores das duas categorias, ou ainda gravuras e caricaturas veiculadas na imprensa, Alain Bonnet complexifica a cena artística do século XIX embaralhando as cartas do pensamento que situou, de um lado, os “verdadeiros” artistas, que seriam comercialmente mal sucedidos em vida, e, do outro, os “falsos” artistas que por se renderem às convenções foram aplaudidos por seus contemporâneos.

Assim, temos a satisfação de partilhar com os leitores da Revista Modos os artigos aqui reunidos em torno da representação do artista, tema ao qual nos dedicamos ao longo de 2018 ao preparar a exposição Trabalho de artista: imagem e autoimagem (1826-1929), realizada na Pinacoteca do Estado de São Paulo em parceria com o Museu Nacional de Belas Artes. O tema também deu ensejo ao X Seminário do Museu D. João VI que reuniu em maio de 2019, no MNBA, pesquisadores do Brasil, da América Latina e Europa. Desta maneira, esse dossiê integra um conjunto de ações que procuraram estimular o debate sobre a imagem do artista.


Organizadores

Ana Maria Tavares Cavalcanti – Docente e pesquisadora da Escola de Belas Artes da Universidade Federal do Rio de Janeiro. E-mail: ana.canti@eba.ufrj.br ORCID: https://orcid.org/0000-0002-1445-720X

Fernanda Pitta – Curadora da Pinacoteca de São Paulo. E-mail: fpitta@pinacoteca.org.br  ORCID: https://orcid.org/0000-0002-9892-5380


Referências desta apresentação

CAVALCANTI, Ana Maria Tavares; PITTA, Fernanda. Apresentação. MODOS. Revista de História da Arte. Campinas, v. 3, n.2, p. 96-101, maio/ago. 2019. Acessar publicação original [DR]

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Itamar Freitas

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