TOCQUEVILLE, A. de. O Antigo Regime e a Revolução. São Paulo: Martins Fontes, 2009. Resenha de: REIS, Helena Esser dos. Filosofia Unisinos, São Leopoldo, v.10, n.3, p.348-349, set./dez., 2009.
Em meio a tantas análises acerca da Revolução Francesa, qual o interesse que O Antigo Regime e a Revolução de Alexis de Tocqueville, escrito em 1856, pode ainda despertar nos leitores contemporâneos? Ilumina, de modo original, nossa compreensão daquele evento e das ideias que ali foram forjadas? As respostas não são evidentes, requerem ler o texto e seu contexto, a letra e a intenção do autor.
No início do prefácio onde apresenta seu livro aos leitores, Tocqueville descarta o propósito de escrever uma história da Revolução Francesa. Tendo despendido mais de cinco anos em uma ampla pesquisa nos arquivos da administração pública, nos cadernos de queixas escritos pelas três ordens em 1798, nos textos dos filósofos consagrados e até na leitura de inúmeras correspondências íntimas e confidenciais que estavam arquivadas no Ministério do Interior, seu propósito, afirma, é desvendar as causas pelas quais a revolução social e política contra o Antigo Regime – que estava em curso em toda Europa – eclodiu na França. Trata-se, portanto, de um texto que busca, por meio da narrativa e da análise dos acontecimentos, conhecer os sentimentos, os costumes, as ideias que prepararam a grande revolução.
Focando a capacidade de inovar do povo francês (de romper com seu passado de submissão para construir uma nova forma social e política baseada na igualdade e na liberdade entre os homens) nos primeiros anos da revolução, Tocqueville aponta cuidadosamente as circunstâncias, os erros e as decepções que fi zeram os revolucionários abandonarem seu objetivo inicial e esquecerem-se da liberdade. Ao comparar a sociedade do Antigo Regime com a sociedade democrática originada pela Revolução, argumenta que a perda da liberdade não decorre de um problema inerente aos homens deste tempo, nem de um problema característico do novo regime, mas do individualismo e da apatia política que já encontram suas raízes nas instituições políticas e na sociedade francesa do Antigo Regime.
As críticas precisas e vigorosas que Tocqueville dirige à nobreza não contêm excessos ou compromissos com os propósitos revolucionários. Ele mesmo, descendente da antiga aristocracia francesa, não adere à democracia espontaneamente, mas tão só porque reconhece que apenas sob este regime a liberdade (entendida como capacidade de cada um pensar e agir por si mesmo e, ao mesmo tempo, participar junto com cada um dos demais no exercício do poder) pode estender-se a todos os homens. Considerando-se independente, Tocqueville traz à luz o longo processo de esfacelamento dos corpos administrativos secundários e de centralização do poder nas mãos do rei. Ele denuncia, em primeiro lugar, que o exercício independente e participativo da liberdade, pouco a pouco, é substituído por privilégios privados que isolam os nobres e os afastam de seus deveres públicos. Em segundo lugar, destaca que a contrapartida dos privilégios de uns é a opressão e a exploração desmedida de quase todos os demais, o surgimento de ódios, rancores e rupturas no tecido social.
A análise tocquevilleana acerca das causas profundas que engendraram a Revolução permite-nos compreender que os desdobramentos despóticos da Revolução Francesa não se deram ao acaso, pelo calor do momento, mas se enraízam em uma longa cadeia de benefícios e violências que favoreceram o despotismo do rei e prepararam o despotismo democrático. Por mais que as palavras despotismo e democracia pareçam estar em campos opostos, Tocqueville – já em A Democracia na América – mostrou que instituições democráticas podem ser coniventes com formas opressivas do exercício do poder político, sempre que a busca por condições sociais igualitárias se sobrepuser à participação política.
O Antigo Regime e a Revolução, publicado vinte anos após A democracia na América, renova o esforço tocquevilleano de conhecer os problemas e buscar remédios adequados ao processo de democratização do estado francês. Se nessa obra ele destacou a grandeza do estado democrático constituído pelos anglo-americanos, foi também extremamente severo, criticando, de um lado, a desigualdade a que estavam sujeitados negros e índios, assim como todo aquele que divergia da maioria por qualquer razão; e, de outro lado, a opressão consentida que surgia do individualismo e da apatia política em vista da qual voluntariamente os homens abriam mãos de seus direitos políticos. É o mesmo espírito de investigação ampla e de crítica certeira que norteia a escrita de O Antigo Regime e a Revolução.
Reconhecendo semelhanças entre as formas despóticas que ocorreram na França e os germes de despotismo que viu nos Estados Unidos, Tocqueville contribui para uma concepção madura e crítica da democracia. Pois, se apenas sob este regime a igual liberdade pode estender-se a todos os cidadãos, suas análises evidenciam que liberdade e igualdade não estão garantidas por qualquer procedimento ou instituição. A sorte da democracia não está dada a priori, posto que a mesma condição social de igualdade entre os homens pode ter como consequência ou um estado político despótico, no qual pouco importa se o déspota é apenas um ou a maioria de um povo, ou um estado político de liberdade, no qual cada cidadão reconhece a si e aos demais como membro do poder soberano.
Ainda que a igualdade social e a liberdade política sejam inseparáveis como qualificativos do Estado democrático, Tocqueville incita-nos a pensar que as diferentes expressões políticas da forma social são consequências que derivam da vontade, da sabedoria e da ação dos homens. Assim, o esforço tocquevilleano para buscar as causas profundas da Revolução assemelha-se, como ele mesmo afirma, ao esforço dos médicos que buscam descobrir, nos órgãos de um corpo já morto, as leis da vida. Ainda acreditando no ideal que inspirou os revolucionários de 1798, por meio da análise dos fatos descritos em O Antigo Regime e a Revolução, Tocqueville busca, mais uma vez, instigar os homens a participarem do processo de construção de um estado social e político democrático, no qual liberdade e igualdade estendam-se a todos.
Esta obra, publicada em 1856, foi, no mesmo ano, traduzida e publicada na Inglaterra, nos Estados Unidos e na Alemanha e, ainda antes da morte de Tocqueville, em 1859, alcançou sua quarta edição na França. Desde então, inúmeras são as publicações desse livro. No Brasil, duas edições anteriores encontram-se esgotadas há alguns anos. A edição da Martins Fontes valoriza o texto tocquevilleano, ao incluí-lo em sua coleção de clássicos, assim como pela tradução cuidada do texto. Lastimo apenas que não tenha incluído a totalidade das notas feitas pelo autor, que apresentam aos leitores situações particulares de países da Europa e discutem seus costumes.
Helena Esser dos Reis – Universidade Federal de Goiás. Goiânia, GO, Brasil. E-mail: helenaesser@uol.com.br
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