O 18 de Brumário de Luís Bonaparte | Karl Marx
O marxismo é geralmente associado e descrito, por muitos críticos, como determinismo econômico. Em que pese o assento dado por Marx à análise econômica da sociedade, tal interpretação não é capaz de apreender a relação dialética entre as bases materiais de existência, diretamente ligadas à atividade econômica, e o exercício do poder politico, bem como a dinâmica do desenvolvimento da luta de classes. Neste sentido, O 18 de Brumário de Luís Bonaparte, publicado em 1852, é uma demonstração da aplicação do método dialético materialista à análise e síntese dos acontecimentos que se desenrolaram no decorrer de quase quatro anos. O dinamismo da luta de classes e a relação dialética entre base e superestrutura, evidenciados no destaque dado aos aspectos políticos e às disputas decorrentes deles vão de encontro às acusações de determinismo econômico.
A onda revolucionária que tomou a Europa em 1848, teve início, na França, em 24 de fevereiro e desfecho final com o golpe dado por Luís Bonaparte, o Napoleão III, sobrinho de Napoleão Bonaparte, em 2 de dezembro de 1851. Diferenciando sua análise das interpretações de Proudhon e Vitor Hugo, Marx afirma: “[…] demonstro como a luta de classes na França, criou as circunstâncias e condições que possibilitaram a um personagem medíocre desempenhar o papel de herói.” (MARX, p. 18).
Partindo do enfoque na luta de classes, nesta obra de sete capítulos, os acontecimentos foram divididos em três períodos. O primeiro período foi de 24 de fevereiro a 4 de maio de 1848, denominado período de fevereiro, e teve como marca a atividade do proletariado como força política predominante. O segundo período, de 4 de maio de 1848 até 28 de maio de 1849, é o período da constituição da república ou da Assembleia Nacional Constituinte. O terceiro período de 28 de maio de 1849 até 2 de dezembro de 1851, período da república constitucional ou da Assembleia Nacional Legislativa.
Em relação ao primeiro período, o autor retrata uma polarização na disputa entre o proletariado e a burguesia nas suas diferentes frações, que se unem em bloco para combatê-lo. Quanto ao segundo e terceiro períodos, além da luta entre a burguesia e o proletariado, as disputas entre as frações da burguesia ganham contornos claros definindo a existência de fases distintas dentro de cada período.
Durante o mês junho de 1848, todas as classes e todos os partidos se uniram contra o proletariado, já desalojado do aparato estatal, considerado o partido da anarquia, do socialismo, do comunismo. Com esta derrota, o proletariado foi relegado ao segundo plano da cena revolucionária, chegando-se ao fim o primeiro período da revolução, classificado por Marx com prólogo da revolução.
A república burguesa triunfou. Ela teve o apoio da aristocracia financeira, da burguesia industrial, da classe média, dos pequeno-burgueses, do exército, do lupemproletariado […]. Do lado do proletariado parisiense não havia ninguém além dele mesmo. Mais de 3 mil insurgentes foram trucidados após a vitória, 15 mil foram deportados. (MARX, 2011, p. 34/35)
O segundo período, classificado como a história do domínio e da dissolução do poder da facção burguesa republicana, teria duas fases, a primeira que representou de fato o exercício do poder pelo referido grupo político, compreendida entre 4 de maio de e 20 dezembro de 1848, neste interim foi elaborada a constituição republicana e estabelecido o estado de sítio em Paris.
Para Marx, essa fração da burguesia era formada principalmente por profissionais liberais, cuja mentalidade republicana se baseava nas antipatias que nutriam contra Luís Felipe e na exaltação do nacionalismo francês. Combatia a aristocracia financeira e defendia o sistema alfandegário protecionista francês, agradando a burguesia industrial. Fazia denúncias raivosas contra o socialismo e o comunismo, agradando a burguesia em geral. Reivindicava a forma republicana do domínio burguês, exigindo a parte do leão na divisão do Poder. Tinha maioria na Assembleia Constituinte e excluiu imediatamente os socialistas do governo provisório. Valeu-se da insurreição de junho para destituir a comissão executiva.
A segunda fase, deste segundo período, de 20 de dezembro de 1848 – quando Bonaparte foi proclamado presidente da república – até a dissolução da constituinte em maio de 1849, nela estaria compreendido, o ocaso da burguesia republicana.
Depois de ter fundado uma república para a burguesia, escorraçado o proletariado revolucionário do campo e calado momentaneamente a pequena-burguesia democrata, eles próprios foram postos de lado pela massa da burguesia que com razão, confiscou esta república como sua propriedade. (MARX, 2011, p. 48).
O terceiro período, de 28 de maio de 1849 até 2 de dezembro de 1851, corresponde à vida da república constitucional ou parlamentar. Com a formação da Assembleia Nacional, o partido da ordem conquistou a maioria, os bonapartistas não foram capazes de formar um partido autônomo e, acabaram por se incorporar ao partido da ordem.
O partido da ordem reunia altos signatários das forças armadas, da academia e da imprensa, que se dividiam entre as facções legitimistas e orleanistas. Para Marx, as diferenças entre os legitimistas e orleanistas se davam em função de que cada um representa os interesses de uma facção da burguesia, a primeira facção representava os interesses da grande propriedade fundiária e a segunda o capital financeiro.
A reação à insurreição de junho unificou, no partido da ordem, legitimistas e orleanistas que teriam encontrado na república burguesa uma forma de governar conjuntamente. Como representantes da ordem burguesa contra as demais classes, eles executaram sua atividade na condição de partido da ordem. Somente na forma parlamentarista os dois segmentos da burguesia francesa puderam se unir. Ao mesmo tempo, isto elevou o nível da confrontação de classe sem o refúgio da mediação da coroa, o que os fez recuar no sentido da restauração.
Este período se subdivide em três fases. A primeira caracterizada pela disputa entre o partido da ordem contra uma coalizão formada por pequenos burgueses e trabalhadores (Partido Social democrata); a segunda teve como marca a luta que se abre entre Bonaparte e a burguesia unificada no partido da ordem, que é interrompida, devido a alguns acontecimentos que serão abordados adiante; e a terceira, quando a disputa entre o partido da ordem e Bonaparte assume contornos de uma disputa entre a Assembleia Nacional e o poder executivo.
Em relação à primeira fase, as manifestações de rua contra o bombardeio à cidade de Roma, por alegada inconstitucionalidade, e os levantes armados que se seguiram foram utilizados como justificativa para a decretação de um novo Estado de Sitio e, consequentemente, à derrota da pequena burguesia.
A segunda fase inicia-se com a destituição, por Bonaparte, de seu ministério composto por membros do partido da ordem, com o intuito de retirar seus postos no poder executivo e assim enfraquece-los, mas que é interrompida em função do resultado das eleições para preencher os cargos que haviam ficado vagos em consequência das prisões e exílios decorrentes da disputa da primeira fase deste período. Paris elegeu somente candidatos socialdemocratas. O medo fez com que Bonaparte recuasse.
Para Marx “[…] o sufrágio universal se declarou frontalmente contrário ao domínio da burguesia e esta respondeu com a proscrição do sufrágio universal”. (2011, p.86). O parlamento recorreu a medidas para esvaziar o processo eleitoral, destacadamente, a redução do número de eleitores de dez milhões para sete milhões, excluindo grande parte do povo da votação.
A terceira fase é marcada pelas ações de Bonaparte com o objetivo de promover a decomposição do partido da ordem. Inicialmente se utiliza de chantagem ameaçando denunciar o ato de violação da soberania popular cometido pela assembleia com as alterações promovidas na lei eleitoral. A briga constante entre o poder executivo e o parlamento, em episódios como a intriga entre o ministro da guerra e o chefe das forças armadas e da Guarda Nacional, promoveu o desgaste do partido da ordem, além da redução de seu poder que o levou a se aproximar de representantes da pequena burguesia radical – a Montanha – para manter seu poder em relação ao parlamento.
A aproximação com a Montanha, sua proposta de Anistia aos presos políticos e, novamente, a evocação do perigo da ameaça vermelha fizeram acirrar as divergências internas no partido da Ordem, principalmente, opondo seus membros de fora contra os de dentro do parlamento. Desde então, Bonaparte passou a estimular disputas entre as facções do partido da ordem, com sucessivas trocas ministeriais foi criando a instabilidade da qual necessitava para decretar o ato final do golpe de Estado.
No capítulo dedicado à conclusão, Marx, centralmente, analisa a influência decisiva que o campesinato teve nas eleições de 10 de dezembro de 1848, quando Luís Bonaparte se sagrou presidente. O autor procura identificar os motivos que teriam determinado a adesão do campesinato a Luís Bonaparte. A força política do campesinato foi retratada como o fiel da balança, pois foi nela que Luís Bonaparte se apoiou para chegar ao posto do presidente da França em meio a intrincada disputa entre as diversas classes e grupos que se confrontavam pela supremacia na estrutura do Aparato Estatal.
Como presidente, Luís Bonaparte pode explorar as contradições entre as forças políticas, bem como as limitações e debilidades decorrentes da composição de classes destas forças e dos respectivos interesses que representavam, no quadro da luta de classes que se apresentava na França. Quando nenhuma força política era capaz de aglutinar as demais e centralizar o poder político criaram-se as condições para o golpe final, tão anunciado por Luís Bonaparte, em suas ‘orgias e bebedeiras’, põe fim a Segunda República Francesa. Em referência ao primeiro Napoleão, o tio, que, no dia 9 de novembro 1799, ou, 18 de Brumário no calendário instituído pela Revolução Francesa, se autoproclamou Imperador, Marx denominou o golpe de Estado, dado pelo sobrinho, de 18 de Brumário de Luís Bonaparte.
Neste trabalho, evidencia-se como a concepção de Marx a respeito da luta de classes era dinâmica e dialética. Ao retratar a burguesia francesa, demonstra como uma mesma classe pode dividir-se em facções – proprietários de terra e burguesia financeira – que possuem convergências e divergências de interesses e que, condicionadas pelos acontecimentos, poderiam tomar caminhos diversos. A própria estrutura de Estado, ao centralizar a organização da atividade produtiva da sociedade pode dar origem a setores de classes e grupos que desempenhem papeis específicos – a imprensa, o funcionalismo público, a intelectualidade e os militares. Demonstra ainda como a composição destas últimas forças políticas pode provocar a interpenetração de interesses de diversas classes, o que se retrata no Partido da ordem.
A importância dada pelo autor ao papel que o campesinato teve na ascensão de Luís Bonaparte é elemento que merece destaque. O campesinato é analisado em detalhes, enfocando-o como classe social específica, cujos anseios e reivindicações teriam caráter anticapitalista. Marx recupera seu processo de formação desde a primeira república até o tratamento que este recebera por parte da segunda república, buscando as razões que pudessem explicar seu comportamento e estabelecer vinculações entre a luta camponesa e a luta proletária. Tais considerações não correspondem ao reducionismo de considerar em sua análise da sociedade capitalista apenas as classes burguesia e proletariado, por vezes atribuído ao autor, por alguns críticos.
Sobre o Estado, Marx o apresenta não como um comitê da burguesia, mas demonstra que o mesmo constitui um instrumento de dominação de classe, apontando sua inserção, sua ‘capilaridade’ no conjunto da sociedade e destacando também seu aspecto militar, que constitui o aparato central de dominação. A importância de Cavaignac na derrota do proletariado em junho de 1848 e o poder assumido por ele na Comissão executiva, o papel de Changarnier no cerco que forçou a destituição da Assembleia Constitucional e as manobras de Bonaparte para provocar fissuras nas forças armadas e submetê-las ao seu comando estão relacionados ao aspecto militar desta dominação. O autor apresenta a seguinte síntese sobre as características do aparato de estado francês:
o interesse material da burguesia está entretecido da maneira mais íntima possível com a manutenção da máquina estatal extensa e muito capilarizada. […] o seu interesse político obrigou-a a aumentar diariamente a repressão, ou seja, os recursos e o pessoal do poder estatal, enquanto era forçada a travar simultaneamente uma guerra ininterrupta contra a opinião pública e a desconfiadamente mutilar e paralisar os órgãos autônomos de movimento da sociedade, quando não a amputá-los completamente. (p. 77)
As relações entre base e superestrutura, tal como na análise apresentada por Marx, em nada se assemelha ao modelo segundo o qual a base econômica determina sempre a superestrutura, no qual a segunda consiste apenas num reflexo da primeira. Muito ao contrário, os aspectos políticos, bem como alguns acontecimentos imprevistos determinaram o curso dos acontecimentos, a superestrutura é dinâmica e age sobre a base, o que corresponde ao entendimento de uma relação dialética entre as duas, sem a qual a luta de classes se apresenta como um jogo previsível.
Os caminhos tomados pela luta de classes na França criaram as condições que possibilitaram o golpe de Bonaparte, entretanto, isto não se constituía a priori como algo inevitável. As ações dos sujeitos sociais, individuais e coletivos, concorreram para que a história tenha se concretizado numa determinada forma específica, resultado da concatenação de uma série de eventos nos quais os homens interviram de forma consciente ou não, condicionados por uma gama de fatores. “Os homens fazem sua própria história, contudo não a fazem de livre e espontânea vontade, pois não são eles que escolhem as circunstâncias sob as quais ela é feita, mas estas lhes foram transmitidas assim como se encontram” (p. 27).
Flávio Pereira – Mestrando no Programa de Pós-Graduação em História UFAL- Universidade Federal de Alagoas/ Bolsista CAPES – Coordenação de Aperfeiçoamento Profissional do Ensino Superior.
MARX, KARL. O 18 de Brumário de Luís Bonaparte. São Paulo. Boitempo, 2011. Resenha de: PEREIRA, Flávio. A dinâmica-dialética da luta de classes em o 18 de Brumário de Luís Bonaparte. Crítica Histórica. Maceió, v.5, n.10, p.327-332, dez., 2014. Acessar publicação original [DR]