Novos combates pela história: desafios, ensino | Carla Bassanezi Pinsky e Jaime Pinsky
[…] nossos adolescentes detestam a História. Votam-lhe ódio entranhado e dela se vingam como podem, ou decorando o mínimo de conhecimento que o “ponto” exige ou se valendo lestamente da “cola” para passar nos exames. Demos absolvição à juventude. A História que lhes é ensinada é, realmente, odiosa. (MENDES apud NADAI, 1992/1993, p. 143)
Ensinar História no Brasil é um ato desafiador. Perspectivas eurocêntricas e narrativas que se distanciam da realidade da maioria de nossos alunos pautam os conteúdos propostos nos currículos e materiais didáticos. Soma-se aos impasses mencionados, a desvalorização da carreira docente, os bombardeios negacionistas, relativistas e anticientíficos proferidos nas falas de tantas autoridades do meio político. A História, tida por muitos estudiosos como ciência das revoluções, hoje se encontra ferida no meio acadêmico, nas escolas e no cotidiano.
Membro da primeira geração da escola dos Annales, Lucien Febvre, em seu livro “Combates pela História”, publicado no ano de 1989, deixou um legado aos historiadores do presente ao apresentar novas metodologias para a área, bem como a proposta de interdisciplinaridade e a possibilidade da imersão da ciência histórica no campo da cultura. A História metódica, dita positivista, anedótica, meramente política e enaltecedora dos grandes heróis havia, para o autor, fracassado. Era preciso respirar novos ares. Na academia, as mudanças, ainda que lentas, foram mais ligeiras do que nas escolas e nos planos curriculares.
“Quem sabe faz a hora e não espera acontecer”: os trechos da canção de Geraldo Vandré, criados em contexto de ditadura civil-militar e turbulência política no Brasil, são inspiradores. Como historiadores e professores, não podemos ficar parados. Se somos retalhados, devemos revidar. No entanto, como mulheres e homens intelectuais, retrucamos com argumentos, pesquisas, publicações e experiências: a história não para, pois precisa assegurar seu lugar.
A Associação Nacional de História (ANPUH), mesmo antes desse contexto de crise que vivemos hoje, criou em 2012 a Revista História Hoje que possui a intenção de
[…] divulgar resultados de pesquisa, reflexões, projetos e experiências voltados para temas que privilegiem a articulação entre História, Ensino de História e Formação Docente e também criar um espaço institucional de debate sobre os diferentes lugares de atuação dos profissionais da área, especialmente nos âmbitos das escolas de Educação Básica e dos cursos superiores.
Assim, amparados em nossos métodos e ampliando as possibilidades de diálogo com o público dentro e fora das escolas, podemos treinar olhares, ouvidos e demais sentidos, além de proporcionar experiências narrativas que contradigam o viés tradicional, bem como os estereótipos socialmente construídos.
Em meio a tantas lutas, recentemente, ao visualizar a capa do livro “Novos combates pela história”, de Jaime Pinsky e Carla Pinsky, nos deparamos com um grande nariz de Pinóquio que se fragmenta em forma de aves libertárias. A atração e tentação em lê-lo é quase que inevitável. Pinóquio, nos contos clássicos, é sinônimo de mentira; os fragmentos de seu nariz, em forma de aves, parecem simbolizar o conhecimento que emancipa. Eis aí a proposta da obra: reunir historiadores, com formações e atuações diversas no campo da ciência histórica, para legitimá-la no mundo contemporâneo, onde opiniões carregadas de ódio, notícias falsas, revisionismos equivocados e discursos anticientíficos, como já dito anteriormente, tendem a torturar este campo do conhecimento, relativizando-o e negando-o. Trata-se de uma nova apologia pela História, um movimento que repensa o lugar do historiador, suas fontes e seu olhar para passado, como outrora fizera Febvre.
Publicado pela editora Contexto em março de 2021, o compêndio, organizado em nove capítulos, aborda inicialmente os principais combates enfrentados pelos profissionais da história. Um a um, os autores da obra escancaram os grandes problemas que o conhecimento histórico tem passado frente aos pronunciamentos políticos autoritários, omissos, degenerados e desumanos do atual governo brasileiro. Ora, não é necessário se afastar do presente para se escrever a História. Os “pais fundadores” dessa ciência, Heródoto e Tucídides, sabiam disso muito bem quando escreveram sobre as guerras gregas. O historiador é, segundo os autores, fruto de seu tempo. Ele olha para o passado e o interpreta à luz do presente e das metodologias prescritas. Ele faz ciência. Vive de revisionismos. Porém, conforme explicam Pinsky e Pinsky, não se tratam de revisionismos corruptos em que a verdade histórica, que é a verdade das fontes, é danificada. De acordo com os organizadores da obra, não trocamos exceções por regras, não generalizamos casos: olhamos para o homem e sua realidade material, cultural, social e política, sem anacronismos.
A História como mestra da vida, conforme evocavam os iluministas fazendo alusão ao poeta latino Cícero, na visão dos articulistas do livro, exige bons oradores. Estes, os profissionais da área, seriam capazes de defendê-la, para que realmente ela se constituísse como ciência capaz de fazer com que haja reconhecimento identitário por parte de minorias sociais (muitas vezes marginalizadas pela história oficial) e atuação cidadã, que emerja de pressupostos empáticos e sinérgicos entres os diferentes grupos que compõem as civilizações humanas.
Carlos Fico, ao dissertar no capítulo dois a respeito das (pre)ocupações e do historiador na atualidade, comenta que cabe aos acadêmicos de História e professores da disciplina ensinarem, mesmo que de forma adaptada, os procedimentos eruditos de análise de fontes históricas, com a intenção de estabelecer um hiato entre o que produzimos e como produzimos conhecimento sobre o passado. Trocando em miúdos: os jornalistas e psicólogos olham para o passado de um jeito. Historiadores, de outro. E o olhar do historiador é dirigido ao passado com base em procedimentos técnicos específicos de domínio das metodologias e epistemologias da História. Assim, se ensinamos História na educação básica, além de trazermos as narrativas à tona, é preciso treinar os olhares de estudantes para que eles observem o que está nas entrelinhas dos discursos midiáticos, políticos e publicitários, bem como a composição dos suportes desses discursos (suas materialidades e os lugares onde são veiculados).
“Eu vejo o futuro repetindo passado, eu vejo um museu de grandes novidades… o tempo não para”. Os versos de Cazuza vão ao encontro de importantes defesas direcionadas ao ensino de História nas escolas efetuadas pela historiadora Maria Lígia Prado no livro em análise. Para ela, lutar em favor da educação histórica nas instituições de ensino é crucial, principalmente em tempos como os nossos, em que alguns parlamentares conservadores da extrema direita expõem propostas retrógradas ligadas ao retorno do ensino domiciliar. Prado, de forma geral, atesta que as escolas (em especial as escolas públicas), desde que foram criadas, se constituem como importantes espaços de sociabilidade. Atualmente, segundo a estudiosa, nas e para as escolas existem propostas curriculares e espaços educativos que possibilitam que os estudantes aprendam com as diferenças. O ensino domiciliar, além de elitista e obsoleto, vai contra a LDB de 1996, contra a Constituição Brasileira e contra determinações de documentos como o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), conclui Prado.
Ademais, a autora argumenta que é incumbência dos professores de História dar atenção a alguns conceitos da área como “Golpe de Estado” e “democracia”, bem como a História da América Latina, enquanto parte integrante à nossa trajetória como brasileiros. Maria Lígia Prado aborda todos esses assuntos com muito respaldo histórico, fontes e domínio bibliográfico.
As pautas “negacionismo e revisionismo histórico”, por seu turno, foram abordadas de maneira mais profunda pelo historiador uspiano Marcos Napolitano. O estudioso tratou das questões argumentando que a existência de revisionismos e novos olhares para o trabalho de campo do historiador oxigena a ciência que tal categoria exerce. Contudo, o que percebemos na atualidade ser disseminado pelos discursos hegemônicos, é um revisionismo reles, em que pessoas de fora da área da História agem exprimindo sua visão, totalmente opinativa e partidária, sobre os eventos do passado de maneira completamente enviesada. O dito “Revisionismo de matriz ideológica”, que foge aos princípios éticos da historiografia, é objeto de repúdio de Napolitano: “trata-se daquele revisionismo calcado na manchete sensacionalista sobre um tema histórico, na apropriação descontextualizada de trabalhos historiográficos, no anacronismo, no uso acrítico de fontes primárias, sempre com o intuito de defender uma tese dada a priori sobre o passado incômodo e sensível” (2021, p. 99-100).
Pesquisador brasileiro de renome na área da História Antiga, Pedro Paulo Funari contribui no livro dos Pinsky dissertando sobre os “anacronismos”. O historiador aponta que dizeres anacrônicos geralmente tomam tempos distintos como iguais ou, simplesmente, tratam com valores contemporâneos épocas mais remotas do passado. Em suma, o anacronismo ocorre quando a situação histórica não é abordada em seu devido contexto. Valendo-se de teóricos da área, como François Hartog e Moses Finley, Funari argumenta que a importância que damos ao momento presente, supervalorizando-o, direciona intencionalmente nosso olhar para o que já ocorreu. Tal façanha é abusiva, porque não situa devidamente o “homem no tempo”. Fora isso, análises que procedem assim, suscitam uma série de equívocos, conforme apontou o estudioso a partir de temas abordados em livros didáticos e por produtos da indústria cultural, tais como “Racismo” e a condição das “Mulheres em Atenas”.
Historicizadas pelo acadêmico Bruno Leal, o que hoje denominamos “Fake News” foram analisadas de acordo com sua produção em nossa época. Que elas sempre existiram na história humana, segundo Leal, não resta dúvidas. Todavia, com o advento de aplicativos de mensagens instantâneas e novos veículos de comunicação, a difusão das falsas notícias tornou-se algo bastante corriqueiro. Com a contribuição de epistemologias da área da comunicação social, o autor problematiza a contradição existente na expressão “Fake News”. Para ele, o conceito de “notícia” passa pela ideia de “verdade”. Assim, invenções sobre a verdade são mentiras, sendo, portanto, “falses News”.
Outrossim, Leal recomenda que os professores de História realizem, cuidadosamente, trabalhos com estudantes, ensinando-os a confeccionar notícias falsas, de forma que eles possam aprender a detectá-las e questioná-las. Conforme um estudo realizado pela professora Helena Matute e reportado por Bruno Leal, essa metodologia demonstrou eficácia em salas de aula da Espanha.
Os últimos três capítulos do livro abordaram estratégias de ensino extremamente importantes para os professores de História que lecionam em todo Brasil. No capítulo “Internet”, o youtuber e historiador Icles Rodrigues aborda como as plataformas de vídeo (YouTube) e áudio (Spotify, Deezer, e outros) podem ser importantes aliadas do professores na exposição de um conteúdo, desde que sejam problematizadas e contextualizadas pelo docente.
Luana Jales, ao comentar sobre as “Minorias”, cita a importância de se narrar a “história que a História não conta”, parafraseando o samba enredo da Mangueira, campeã do Carnaval carioca de 2019. Para tal feita, os professores de história são amparados pela legislação (LDB, BNCC, Lei 10.639/03) e, portanto, não devem temer a realização de abordagens que tenham como intuito retomar a narrativas que priorizem grupos minoritários. A História, se vista de baixo, é, para a autora, força criadora de sujeitos históricos potentes e revolucionários.
A Ásia, sua história e importância nos dias de hoje foram elementos debatidos no capítulo escrito pelo historiador Alex Degan. Para ele, o continente asiático, sua historicidade e relevância, não devem passar como despercebidos, tendo em vista a contribuição valiosa da China para a economia-mundo e a interferência cultural dos Animes, Mangás e Kpop no universo adolescente. Nesse sentido, aproveitar-se de conceitos construídos intencionalmente pela geografia eurocêntrica, explorando suas tensões em aulas de História, torna-se tarefa relevante dos professores da área.
Desconstruir para reconstruir. Combater para transformar. Ensinar para solidificar. Numa época em que mentiras são espalhadas, a História ainda sobrevive. Os guardiões do passado e da memória social, os historiadores, são vanguarda no enfrentamento de muitas lutas. Os profissionais que trabalharam para construir essa obra incitam a reflexão. Porém, nossa tarefa não se encerra com um ponto final na página duzentos e cinquenta e quatro. A continuidade dos combates deve ser feita diariamente. Por isso, devemos reivindicar nosso lugar enquanto profissionais da História em toda sociedade. Poderemos, munidos de metodologias, ganhar muitas batalhas, mas só o futuro, incerto, poderá credibilizar nossa guerra.
Referências
NADAI, Elza. O ensino de história no Brasil: trajetória e perspectiva. Revista Brasileira de História. SP, 1992/1993. v.13, n° 25/26, p. 143-162.
FEBVRE, Lucien. Combates pela história. Lisboa: Editorial Presença, 1989.
Revista História Hoje. https://rhhj.anpuh.org/. Acesso em 18/04/2022. Recebido em 18 de abril de 2022 Aprovado em 23 de maio de 2022.
Resenhista
João Henrique Inácio Corrêa – Mestrando em Educação (UFSJ). Professor de História na Educação Básica.
Referências desta Resenha
PINSKY, Carla Bassanezi; PINSKY, Jaime. (Orgs.). Novos combates pela história: desafios, ensino. São Paulo: Contexto, 2021. Resenha de: CORRÊA, João Henrique Inácio. Combater e resistir: uma análise do livro “Novos combates pela história”. História & Ensino. Londrina, v. 27, n. 02, p. 267-273, jul./dez. 2021. Acessar publicação original [DR]