Nova História das Mulheres no Paraná | Georgiane Garabely Heil Vázquez
Em um contexto de negação dos direitos das minorias, de aumento da violência contra mulheres, bem como de discursos que procuram negar as relações de gênero existentes na sociedade, ganha ainda mais importância e surge como sinônimo de coragem a obra coletiva Nova História das Mulheres no Paraná, organizada pela professora Georgiane Garabely Heil Vázquez. O livro, composto por 8 capítulos, foi escrito por pesquisadoras ligadas a diferentes instituições. O que estabelece a unidade da obra é a discussão da mulher a partir das discussões teóricas de gênero nas mais variadas perspectivas, bem como recortes temporais distintos e em diversos municípios do Paraná.
A publicação é voltada principalmente para as pessoas que se dedicam à pesquisa histórica. No entanto, não apenas historiadores e historiadoras poderão utilizar o livro como referência quando estiver em pauta a História das Mulheres ou discussões teóricas e metodológicas a respeito dos Estudos de Gênero. Pesquisadores (as) de áreas como Psicologia, Ciências Sociais, Direito, entre outras, que constantemente dialogam com a História e que discutem as implicações de gênero na sociedade, terão no livro uma contribuição importante.
Os capítulos 1 e 3 tratam da presença negra feminina no Paraná. No capítulo 1, “É preciso nomear a outra: a primeira engenheira negra do Brasil que ficou no rodapé da história – Enedina Alves Marques e a representatividade da mulher negra no Paraná”, Pérola de Paula Sanfelice e Juliana Fleig buscaram problematizar e evidenciar a história da primeira mulher no Estado a obter um diploma de Engenheira Civil. Enedina Alves Marques obteve o diploma em 1945. O grau obtido por Enedina traz uma dupla singularidade, pois ela além de ter sido a primeira mulher no Paraná a conseguir se formar nessa área, era negra. A dificuldade por ser mulher já era enorme em uma sociedade que limitava a ação feminina (BOSCHILIA, 2010). A cor da pele, em uma sociedade marcada por uma memória da escravidão ainda viva, faz do feito de Enedina Alves Marques algo carregado de simbologia. Mas, o fato dela ter sido engenheira e atuado em grandes obras, não a protegeu de ser assassinada como tantas mulheres pobres e negras. O capítulo das autoras é fundamental para pensar não apenas o anonimato de tantas mulheres na História do Paraná, mas também para refletir sobre a carreira feminina e as questões de gênero e de raça pelo estereótipo da cor da pele.
No capítulo 3, “Do badalo do sino ao batuque do atabaque: Mães de Santo em Irati/Paraná”, de autoria de Nadia Maria Guariza e Vania Vaz, há uma reflexão da presença de Mães de Santo em Irati. Interessante que a cidade está estreitamente ligada à colonização de origem europeia em que a presença negra e tradições africana e/ou afrodescendentes como a Umbanda e o Candomblé são negligenciadas. A partir da entrevista com três mães de Santo, as autoras objetivaram dar voz e visibilidade à presença de tradições muitas vezes negadas em contextos sociais como o do município, marcadamente tido como região de religião cristã, sobretudo católica, e de pessoas com ascendência europeia e branca.
Georgiane Garabely Heil Vázquez aborda no capítulo 2, “Mulheres sem filhos e suas narrativas sobre maternidade no Paraná do século XX”, os discursos das mulheres sem filhos sobre a maternidade. A autora utilizou a metodologia da História Oral e a divisão das entrevistadas em gerações. Georgiane apontou como no século XX a maternidade virou questão de Estado em alguns locais, pois havia campanhas governamentais de incentivo às mulheres para gestarem. No entanto, seja por impedimento estritamente biológico ou por questões sociais, tanto relacionadas ao celibato como à carreira profissional, existem mulheres que não tiveram filhos. O texto da pesquisadora demonstra que essas mulheres, mesmo não sendo mães, discutem a maternidade e não se sentem “menos mulher” por não terem engravidado e passado pelo parto.
Assim como ser mulher e não ser mãe muitas vezes é tido como algo inconcebível, deixar a privacidade doméstica para fazer carreira profissional não foi algo simples. Evidentemente, as mães pobres saem para trabalhar fora, mas continuam as responsáveis pelo cuidado doméstico e dos filhos. No texto de Claudia Priori, capítulo 4, “Da (in)visibilidade à profissionalização: mulheres e arte no cenário paranaense (fim do século XIX e começo do século XX)”, a autora procurou demonstrar como mulheres artistas se profissionalizaram no Paraná no final do século XIX e início do XX. A autora pondera que a falta de registros e a escassez de informações “se deve mais ao processo de exclusão feminina nas carreiras de formação artística, às interdições sociais e aos silenciamentos dos discursos da história da arte tanto no mundo, quanto especificamente no Paraná” (PRIORI, 2020, p. 99). Portanto, a arte paranaense também é marcada pelas implicações de gênero.
Os capítulos 5 e 7 trazem dois textos muito diferentes entre si, mas que permitem ampliar a visão sobre os papéis sociais da mulher e como tais papéis são construídos a partir do gênero.
No capítulo 5, “A construção da “Polícia Militar Feminina” no Paraná”, Andréa Mazurok Schactae e Rosimeri Moreira discutem a criação da Polícia Militar Feminina Paranaense. No Paraná as mulheres tiveram acesso à caserna na década de 1970, sendo a segunda unidade da Federação a admitir e contar com efetivo feminino. Apenas em São Paulo a policial mulher já atuava (MOREIRA, 2017). No entanto, essa inserção foi marcada pela exclusão, pois as mulheres policiais desde a década de 1970 até o ano 2000 atuaram como um quadro separado. Havia a PM masculina e a PM feminina.
Além disso, a legislação de criação da PM feminina, bem como diversos documentos, leis e normas internas, estabeleciam um modelo de mulher e um perfil a ser seguido. Criada no contexto da Ditadura Militar no Brasil tinha como objetivo passar para a sociedade uma visão mais humanizada das forças responsáveis pelo monopólio da violência. Novamente, a ideia da maternidade e do cuidado feminino.
No capítulo fica claro como as questões de gênero nortearam as condições de criação da PM feminina paranaense. Da mesma maneira, a visão dos políticos da década de 1970 – Executivo e Legislativo – e do comando da PM, deixa transparecer que tudo relacionado à PM mulher estava permeado pela compreensão dicotomizada de mundo a partir do gênero: masculino/feminino.
No capítulo 7, “Mulheres e meninas rurais: memória e gênero no Faxinal Barra Bonita – Prudentópolis/PR”, Claudete Maria Petriw e Rosemeri Moreira, buscaram problematizar como a percepção acerca dos papéis masculino e feminino está presente nos discursos de mulheres e meninas em uma comunidade rural no município de Prudentópolis. A própria maneira das entrevistadas externarem suas ideias é fruto da construção social que é marcada pelo gênero. As lembranças estão repletas de referências ao cuidado da casa e ao desempenho de atividades normalmente identificadas como femininas. Seja na área rural ou no espaço fabril (BOSCHILIA, 2010), as mulheres realizam tarefas em grande medida divididas de acordo com o sexo biológico.
No entanto, é preciso ressaltar que nas comunidades rurais, embora o trabalho doméstico seja quase exclusivamente feito pelas mulheres, estas também desempenham papel fundamental na subsistência da família trabalhando na plantação e colheita, entre outros afazeres que teoricamente seriam trabalho masculino. As narrativas das mulheres da comunidade rural de Linha Barra Bonita, zona rural de Prudentópolis, estão repletas de episódios ligados ao trabalho dentro e fora de casa. As autoras buscaram demonstrar como o modo de ser e estar na comunidade de Linha Barra Bonita mudo de acordo com o gênero da pessoa.
Em 2 capítulos, no capítulo 6 e no capítulo 8, as autoras tratam de um assunto recorrente nos estudos de gênero: os abusos sexuais cometidos contra mulheres. Violência que muitas vezes é precedida de espancamentos e violência verbal.
No capítulo 6, “Crimes sexuais, violência doméstica e suicídios de mulheres: uma análise de processos criminais e inquéritos policiais de Castro/Paraná (1890- 1940)”, Dulceli de Lurdes Tonet Estacheski analisa a violência física e sexual que em alguns casos culminaram em suicídio. As questões são analisadas a partir da consulta de processos criminais e inquéritos policiais referentes a pessoas de Castro – PR, entre os anos de 1890 a 1940.
O material policial e judiciário, bem como a legislação vigente na época, demonstram como havia uma hierarquização entre homem/mulher-masculino/feminino. Expressões como “mulher honesta”, contidas no código penal de 1890, demonstram, numa leitura a contrapelo, que se existia a mulher honesta que precisava ser protegida da violência, havia a desonesta. Essa merecia tal sorte? As fontes não revelam, mas trazem exemplos de uma mentalidade que não ficou restrita ao período estudado pela pesquisadora.
Nos estudos dedicados ao tema da violência sexual é recorrente verificar a tentativa de desqualificação da vítima, principalmente em relação ao comportamento e à roupa (GROSSI; WERBA, 2001). Na defesa de muitos criminosos sexuais está o ataque, uma roupa considerada mais curta ou um decote maior, para eles são sinônimos de provocação e de autorização ou mesmo pedido da mulher para ser violentada.
Além disso, Dulceli de Lurdes Tonet Estacheski destaca o contexto de naturalização da violência, tanto pela legislação como por indícios nos discursos de vítimas, autoridades e responsáveis, encontrados nos processos usados como fonte. Mas, a autora destaca também que muitas adolescentes, vítimas de violência física e sexual, não correspondiam estritamente ao ideal de passividade. Algumas, que apareceram nos processos-crime, demonstravam personalidade e que não se submetiam e faziam suas próprias escolhas.
No texto de Angela Ribeiro Ferreira, capítulo 8, “Violência sexual contra meninas em Ponta Grossa/Paraná (1920 a 1940)”, o estudo versa sobre a violência sexual em Ponta Grossa – PR, município limítrofe com Castro, entre as décadas de 1920 e 1940. Portanto, a legislação e mundo social e cultural são muito similares ao discutido anteriormente. A autora também se utilizou de processos judiciais para a sua análise, com ênfase nos processos de estupro contra meninas. De doze casos encontrados em que a vítima tinha menos de doze anos, apenas em dois, o agressor não era conhecido da vítima. Angela Ribeiro Ferreira também destaca a inexistência de registros a respeito de violência sexual contra meninos: “Isso não quer dizer que não acontecessem agressões contra meninos, mas demonstra que tais casos eram resolvidos em outras instâncias sociais, ou simplesmente silenciados” (FERREIRA, 2020, p. 233).
No capítulo é demonstrado como a questão relacionada à violência sexual contra meninas, que muitas vezes era tratada como algo de caráter privado, estava ligada à conjuntura social da época. A honra de uma mulher estava associada à sua virgindade e esta era fundamental para um matrimônio. Em alguns casos, não raros para o período, não ser virgem era sinônimo de falta de honra. Por tal razão é compreensível, ainda que com os olhos anacrônicos do presente seja algo questionável e/ou condenável, que tais casos não fossem levados à Justiça.
Portanto, o livro “Nova História das Mulheres no Paraná” permite uma reescrita da História do Estado, não no sentido de que a redigida até agora esteja incorreta: ela está incompleta. O livro organizado por Georgiane Garabely Heil Vázquez propicia a inclusão de personagens femininas até então invisibilizadas. A obra coletiva não possui uma perspectiva cronológica linear e mesmo as mulheres, objeto central do livro, não são tratadas sob um prisma único. As autoras, recorrendo a um sólido referencial teórico, demonstram que as mulheres não são iguais, cada uma possui uma história, cada região propicia determinados contatos que se desdobram em visões de mundo singulares. A problematização de como o gênero influencia a vida das pessoas, anônimas ou não, bem como a própria escrita da História, é o que há de comum em cada biografia analisada ou cada contexto considerado na obra.
A História do Paraná não é uníssona e evidentemente que não se completa sem levar em consideração as narrativas acerca dos faiscadores de ouro; da formação das cidades; o tropeirismo e a extração da erva mate; a imigração europeia e os grandes eventos políticos do Estado, entre outros aspectos constantemente revisitados da História paranaense (NADALIN, 2001). Nova História das Mulheres no Paraná acrescenta um “capítulo” ausente em muitos manuais imprescindíveis. Assim como é imprescindível dar voz para as mulheres e debater ininterruptamente as implicações que o gênero acarreta na vida social de todos e todas.
A publicação é uma contribuição importante para o estudo da História das Mulheres e para os Estudos de Gênero. Além de apresentar uma discussão atualizada das questões teóricas e metodológicas, os 8 capítulos foram escritos a partir de pesquisa empírica significativa. O resultado são textos que avançam na discussão de como o gênero é construído historicamente, bem como do papel social que as mulheres desempenham em diferentes espaços e em recortes temporais distintos.
Referências
BOSCHILIA, Roseli T. Entre fitas, bolachas e caixas de fósforo: a mulher no espaço fabril curitibano (1940-1960). Curitiba, PR: Artes & Textos, 2010.
GROSSI, Patrícia Krieger; WERBA, Graziela C (Orgs). Violências e gênero: coisas que a gente não gostaria de saber. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2001.
MOREIRA, Rosemeri. Sobre mulheres e polícias: Polícia feminina no Brasil – a invenção paulista (1955-1964). Guarapuava – PR: UNICENTRO, 2017.
NADALIN, Sergio Odilon. Paraná: Ocupação do território, população e migrações. Curitiba: SEED, 2001.
Resenhista
Lourenço Resende da Costa – Doutor em História pela UFPR; Mestre e Licenciado em História pela UNICENTRO. Professor pela Secretaria de Estado da Educação do Paraná. E-mail: resendedacosta@gmail.com
Referências desta Resenha
VÁZQUEZ, Georgiane Garabely Heil (Org). Nova História das Mulheres no Paraná. Porto Alegre, RS: Editora Fi, 2020. Resenha de: COSTA, Lourenço Resende da. Mulheres na história do Paraná. Veredas da História, v. 13, n. 1, p. 190-196, jul. 2020. Acessar publicação original [DR]