Notas sobre o luto | Chimamanda Adichie
Chimamanda Ngozi Adichie | Imagem: Divulgação/Diário da Região
Chimamanda Ngozi Adichie é uma escrita nigeriana contemporânea que honra todo seu sucesso. Os livros da autora extrapolam o conhecimento da leitura de um romance, ficção e/ou autobiografia. Chimamanda insere seu conhecimento sobre ancestralidades e dilemas contemporâneos em narrativas simples e, ao mesmo tempo, complexas. A autora cresceu no sudoeste da Nigéria em uma cidade universitária e hoje em dia é conhecida por obras como “Sejamos todos feministas” (2014), “Para educar crianças feministas: Um manifesto” (2017), “Meio Sol Amarelo” (2017) e “O perigo da história única” (2019).
“Notas sobre o luto” é uma reflexão profunda a partir da subjetividade da autora. O livro foi publicado pela primeira vez em 11 de maio de 2021 pela Editora Knopf Publishing Group em inglês com o título de “Notes on grief”. Não tardou para a publicação chegar ao Brasil: em 14 de maio já era possível fazer a leitura através da tradução realizada por Fernanda Abreu e publicado pela Editora Companhia das Letras.
A contemporaneidade do livro se relaciona aos hábitos adquiridos por várias pessoas em decorrência da pandemia de Covid-19, além de explorar a dura e triste realidade do luto inerente a esse momento. Logo no início, por exemplo, a autora conta sobre os rituais dominicais de chamadas no Zoom – aplicativo de videochamadas – com seus irmãos, que estavam nos Estados Unidos e na Inglaterra, e seus pais, que estavam no Sudoeste da Nigéria. Em outro momento, Chimamanda relembra uma situação que é comum à maioria das famílias brasileiras. Ela e seus irmãos precisavam alertar o pai sobre a posição do telefone, já que às vezes aparecia só a testa dele. Porém, com o falecimento do seu pai, Chimamanda produziu esse livro em uma tentativa de lidar com o complexo processo da perda, o reconhecimento da falta e as reconfigurações da sua família nesse momento pandêmico. Dia 7 de junho de 2020 foi o último dia em que a família se encontrou para um encontro amoroso e divertido, como de costume. No dia 9 conversaram um pouco, porque James Nwoye Adichie se sentia cansado. Infelizmente, no dia seguinte veio à óbito.
A autora inicia o livro buscando uma tentativa de compreensão da realidade. Nesse sentido, um dos primeiros movimentos de Chimamanda é contar sobre a sensação de quando ouviu a notícia do falecimento do seu pai. Com o relato da sua filha – de que a menina relatou que sua mãe estava irreconhecível –, Chimamanda reconhece que viveu um “desenraizamento cruel”. A situação tornou-se mais difícil de ser encarada, principalmente, pela obrigatoriedade de despedir por uma chamada no aplicativo Zoom de seu pai.
A temática do luto é tangenciada pela primeira vez no terceiro capítulo. Não de forma tão filosófica, o luto aparece como sintomas no corpo da autora, como um “gosto ruim na língua”2. No momento, cada parte do seu corpo parecia se diluir para “um nada”. O medo era uma constante e toda ligação telefônica era um gatilho para pensar que outro ou outra familiar poderia ter falecido.
A primeira reflexão sobre o luto da autora é em relação ao riso. Ao relembrar algumas histórias do pai, Chimamanda e seus irmãos trocam risadas durante uma chamada virtual. O riso, paradoxalmente, é considerado por ela como uma parte do luto e de todo esse processo doloroso. É rindo que seu processo de choro, tristeza e raiva se inicia.
No sexto capítulo, Chimamanda compartilha sobre uma sensação que, acredito, ser conhecida apenas por aquelas e aqueles que tenham vivido a perda de alguém importante na vida. Em uma tentativa de organizar seus pensamentos, assimilar as mudanças e voltar à rotina, a autora compartilha certos devaneios sobre como os discursos acerca do luto são vazios. Ela relembra que, por vezes, já disse algo como “é preciso vivenciar realmente o luto”, mas, ao viver esse momento, reconhece que não sabia o que aquilo significava. Nesse capítulo ela divide, também, a sensação de estar sendo tocada em sua mais pura essência através do sentimento do luto.
No que tange às reflexões sobre esse processo, Chimamanda pontua sobre a negação. Ela explica que, mesmo que a ação envolva negar um olhar direto e objetivo para a perda, a negação é uma maneira de vivenciar o luto e de criar um refúgio, algo necessário para enfrentar a perda. Assim como outros pensamentos, a autora se reconhece nos movimentos que descreveu, paralisada para lidar de frente com o luto. O medo aparece novamente como um sentimento que contribui para o fortalecimento da negação. Decorrente disso, o hábito de tomar remédios para dormir é a única possibilidade que a autora enxergou como possibilidade de retorno à vida normal – dentro do possível de “normal” que uma pandemia permite.
Entre os sentimentos de culpa e remorso, Chimamanda pensa sobre o que poderia ter evitado o falecimento de James e conta sobre o motivo do ocorrido. Arrependida das vezes que poderia ter ligado e não ligou, comenta sobre uma das últimas conversas online com seus pais, em que seu pai estava mais preocupado com o acidente que a filha tinha sofrido dias anteriores do que em compartilhar sobre como estava se sentindo. No dia 10 de junho de 2020, James é hospitalizado em decorrência de complicações de uma infecção no fígado. O principal sintoma era desidratação. Infelizmente ele não resistiu e faleceu um dia antes da sua consulta com o nefrologista.
Acredito que o ponto central e singular dessa obra seja a capacidade da autora em coletivizar nas palavras, sensações – que infelizmente – tornaram recorrentes em nossa sociedade pandêmica. Além de todo o sentimento de impotência próprio do momento, a situação de Chimamanda a tornava mais vulnerável pelo fato de não poder estar presencialmente com seus familiares na Nigéria, uma vez que os aeroportos do país estavam fechados por conta da Covid-19. Mais um fator que soma ao conjunto de frustações, decepções e mágoas decorrente do luto da autora.
O décimo capítulo é uma espécie de convite as/aos leitoras/leitores para repensarem o acolhimento às pessoas em luto. Durante a leitura, Chimamanda fala sobre sua raiva e decepção com as mensagens que recebeu como acalento nos dias seguintes à morte do seu pai. Junto aos processos anteriores já comentados, a necessidade de lidar com as condolências conectou Chimamanda com toda aquela situação na qual estava evitando olhar de frente. Ela salienta, com sua revolta, o quanto se lembrava que os momentos com seu querido pai haviam se encerrado. Comenta que algumas lembranças abrem sorrisos no seu rosto, mas que servem “como carvões em brasa que logo voltam a se transformar nas chamas da dor” 3. Como sugestão indireta, a autora diz que a expressão “sinto muito” é uma mensagem de poucas palavras, mas com muitos significados.
Ao caminhar com a leitura, é possível perceber que Chimamanda tangencia, aos poucos, quais são os contornos da sua dor. Mesmo que não seja objetiva ao que essa perda significa ainda, Chimamanda entende que seu jeito de sentir o luto se diferencia da cultura igbo. Ela comenta que:
esse jeito africano de lidar com o luto tem seu valor; o luto exteriorizado, performático e expressivo, no qual se atende a todos os telefonemas e se conta e reconta o que aconteceu, no qual o isolamento é um anátema e “pare de chorar um refrão”. 4
Ao demostrar a vontade de entrar em contato com a dor, pela primeira vez, a autora explica que ficou fechada em relação às trocas a respeito do assunto porque se sentia protegida pela negação. Esse processo, de falar e verbalizar completamente sobre, significava para ela entrar em um ciclo de choro e tristeza no qual já se sentia exausta.
O enfrentamento dessa situação dolorosa e o contato com o luto permitem que vestígios da relação com o pai sejam encontrados no presente. No décimo terceiro capítulo, a autora comenta sobre três momentos em que ela preencheu o vazio que vinha sentindo em decorrência da perda do pai. O primeiro foi a com a leitura de um livro em homenagem a James, publicada pela Universidade da Nigéria, em que fora homenageado como professor emérito. Em seguida, com cartas que ele enviou a Chimamanda quando ela se mudou para os Estados Unidos para cursar a Universidade. A autora descreve a sensação que surgia após ler as cartas. Comenta que a caligrafia é uma forma de presença do pai, que é possível ler além dos significados e perceber, por exemplo, como o tipo de caligrafia reflete o processo educacional africano. Para encerrar a capítulo, Chimamanda compartilha sobre as memórias que invadiram suas ideias após ver uma foto do seu pai em uma das visitas à sua casa.
É no décimo quarto capítulo, que os relatos de Chimamanda aparecem como o início de um novo reconhecimento de si, após um longo período sendo esvaziada pela dor. Numa tentativa de análise de si própria, a autora percebe como seu pai se mantém presente. O desenrolar dessa situação permitiu que a autora encontrasse respostas nos ensinamentos de James na criação da neta, filha de Chimamanda. Com essas respostas, a autora reconhece o quanto os ensinamentos igbo sobre amor e acolhimento são vívidos na sua vida e de sua família.
No decorrer de seu envolvimento com as tradições dos igbo, Chimamanda detalha como as cerimônias fúnebres acontecem segundo essa tradição. Ela conta que durante, mais uma, reunião de Zoom com seus familiares, eles decidiram seguir o planejamento segundo seu pai sempre desejou. Diz que, ainda que seja difícil seguir essa perspectiva, entende que fazer isso é uma forma de honrar o legado e os entrelaços das memórias sobre seu pai. Porém, lidar com as exigências da cerimônia qual tal foi planejado trouxe mais consequências para o processo do luto de Chimamanda. Ela compartilha sobre como, em coletivo com sua família, vivenciou o luto. Para cada um significava algo. Por causa disso, as decisões que envolviam discussões de pontos de vistas diferentes e, por vezes, debates de pontos de vistas opostos, tornou ainda mais difícil para a autora o processo de compreender a nova organização de sua família a partir da perda do seu pai.
Chimamanda dedica o vigésimo terceiro capítulo a explicar como a pandemia interferiu diretamente nas resoluções das pendências do funeral do seu pai. Por conta do instável cenário decorrente do aumento de casos de infectados pela Covid-19, os aeroportos da Nigéria foram fechados momentos seguintes depois de escolher a data para a celebração. A autora, a partir do sentimento de ira, relembra, em outros momentos, que o Estado nigeriano provocou essa sensação. É a partir disso que Chimamanda conta sobre o sequestro do seu pai em 2015.
O luto o qual Chimamanda relata no livro, apesar de ter se aprofundado com o falecimento de seu pai, também é provocado pela morte de duas tias. Uma, por parte de mãe e outra por parte de pai. As reflexões sobre vida e morte muito se dão por conta das novas configurações que sua família tem durante a pandemia. Nenhuma delas morreu em decorrência de Covid-19.
O fim do livro acontece sem um desfecho. Chimamanda relata em poucas páginas como seus sonhos mudaram a partir das transformações que ela viveu e reflete sobre o inconsciente de forma simples. Relata memórias do seu pai e o envolvimento dele com a Universidade e compartilha a vontade que tinha em documentar e registrar melhor a história de seus ancestrais. Ela planejou fazer isso durante a última vez que viu seu pai, mas não houve tempo. Assim como muitos de nós, Chimamanda talvez possa estar aprendendo a lidar com todas as transformações em nossas vidas decorrentes da pandemia da Covid-19.
Notas
2 ADICHIE, Chimamanda Ngozi. Notas sobre o luto. Editora Companhia das Letras, 2021, p. 9.
3 ADICHIE, Chimamanda Ngozi. Notas sobre o luto. Editora Companhia das Letras, 2021, p. 23.
4 ADICHIE, Chimamanda Ngozi. Notas sobre o luto. Editora Companhia das Letras, 2021, p. 24.
Referências
ADICHIE, Chimamanda Ngozi. Sejamos todos feministas. Editora Companhia das Letras, 2014.
ADICHIE, Chimamanda Ngozi. Para educar crianças feministas: um manifesto. Editora Companhia das Letras, 2017.
ADICHIE, Chimamanda Ngozi. Meio sol amarelo. Leya, 2017.
ADICHIE, Chimamanda Ngozi. O perigo de uma história única. Companhia das Letras, 2019.
ADICHIE, Chimamanda Ngozi. Notas sobre o luto. Editora Companhia das Letras, 2021
Resenhista
Juliana Campos Gomides – Historiadora pela Universidade Federal de Ouro Preto e mestranda do Programa de Pós – Graduação em História da Universidade Federal de Ouro Preto.
Referências desta Resenha
ADICHIE, Chimamanda Ngozi. Notas sobre o luto. São Paulo: Companhia das Letras, 2021. Resenha de: GOMIDES, Juliana Campos. Experiência em análise: reflexões de Chimamanda Adichie sobre os processos de luto durante a pandemia. Faces de Clio. Juiz de Fora, v.8, n.15, p. 202- 207, 2022. Acessar publicação original [DR]