Formado em Literatura, Hans Ulrich Gumbrecht vem, nos últimos anos, sendo cada vez mais estudado por pesquisadores interessados pelas linguagens e, especificamente na história, pela estética e pela história do tempo presente. Autor de inúmeros textos e obras, possui traduzidos e publicados no Brasil algumas grandes obras, entre estas Elogio da Beleza Atlética [1], Produção de Presença – o que o sentido não consegue transmitir [2] e Depois de 1945 [3]. No tocando a suas obras, a problemática da presença foi corriqueiramente debatido, sendo a obra do Elogio da Beleza Atlética o primeiro ensaio publicado no país onde o autor exprime algumas reflexões a respeito do conceito.
De acordo com o autor, esta presença, poderia ser pensada em uma dimensão especial, e não temporal. Na obra Produção de Presença – o que o sentido não consegue transmitir (2010), Gumbrecht busca conceituar presença enquanto algo que só é possível de se percebida através dos sentidos. Nas palavras do próprio – “por “presença” pretendi dizer – e ainda pretendo- que as coisas estão a uma distancia de ou em proximidade aos nossos corpos; quer nos “toquem” diretamente ou não, têm uma substância”[4] .
Atuando especialmente no campo das linguagens, o autor busca nas obras citadas acima realizar uma narrativa descritiva dos eventos, colocando suas impressões e através dela refletindo acerca de suas problemáticas. Na obra escolhida para esta resenha, intitulada Nosso amplo presente – o tempo e a cultura contemporânea, publicada no Brasil em 2015 pela editora universitária Unesp, o autor se propõe a analisar, em curtos ensaios, nossa sociedade atual através de suas próprias experiências e de temas já trabalhados por ele em ocasiões anteriores.
Divida em 6 capítulos, considerações iniciais, introdução, considerações finais, referências bibliográficas e índice remissivo, a obra em questão se constitui enquanto um compilado brasileiro de textos publicados pelo autor inicialmente em outras ocasiões fora do país. Os capítulos em si, escritos em períodos e situações diferentes, tendo destinos diferentes originalmente, se unem em torno ao eixo central de um “diagnóstico complexo e de contos definidos do presente.”[5].
Na introdução, intitulada Na sonda de uma hipótese, o autor busca realizar uma autoreflexão acerca de sua trajetória académica e de pensamento, buscando refletir de que maneiras alguns pensadores, especialmente Reinhart Koselleck, o influenciaram em suas produções. Dialogando com Koselleck, e mesmo que não cite com François Hartog [6] , o autor nos coloca nesta parte alguns dos debates já desenvolvidos acerca de uma cultura do presente hiperalargado, em contra partida a um futuro interpretado enquanto uma dimensão fechada a prognósticos, aproximando-se de uma ameaça e da incerteza, diferente ao cronótopo moderno estudado na obra Futuro Passado de Koselleck [7] . Assim o autor em sua obra considera que “Entre os passados que nos engolem e o futuro ameaçador, o presente transformou-se numa dimensão de simultaneidades que se expandem.” [8] .
Em Presença na linguagem ou presença adquirida contra a linguagem, primeiro capítulo da obra, o autor se propõe a através da linguagem buscar atingir algo que não seja a “linguagem”, compreendida então como presença. O texto, que fora originalmente uma palestra proferida na abertura do Congresso de Hegel de 2005, encontra-se dividido em três partes. Na primeira o autor se detém em quatro premissas que conduzem a linguagem à presença, focando em criticas a hermenêutica, a metafísica, as noções que fundamento seu conceito de presença e a distinção de cultura de presença e cultura do sentido. A segunda parte do texto o autor reflete acerca de um caminho de retorna da presença à linguagem, dividida em seis modos, e, na parte final do texto, é realizada uma retrospectiva dos seis modos citados investigando se estes haveriam conduzidos ao horizonte de questionamentos e problemas aproximados aos de Heidegger.
O capítulo dois, intitulado Uma antropologia negativa da globalização, pode ser analisado em com o capítulo seis Disponibilidade infinita: Da hipercomunicação (e da terceira idade). Enquanto no segundo texto o autor busca refletir acerca dos problemas que este observa na globalização, a partir de exemplos vividos por ele quando encontrou um taxista brasileiro que não conhecia futebol, mas sim todos os detalhes sobre a vida de Michael Jackson, uma extensão da modernidade e de que maneira ambas rompem com as dimensões espaciais.
Retomando casos com a expansão da Disneylândia pelo mundo, não sendo apenas um parque exclusivo, Gumbrecht considera que ao mesmo tempo que a globalização possibilita um rompimento na territorialidade e nas dimensões físicas do espaço, esta mesma atua sob os corpos tornando-os em certa medida “completamente irrelevante para a atividade de suas mentes” [9] , porém é preciso destacar que o autor coloca que a necessidade de separação de corpo e mente existente na globalização remonta a formula de Descartes da autorefêrencia humana: “penso, logo existo”. Aliado a isso o capítulo seis se constituem enquanto outra reflexão de experiência viciada pelo autor, porém esta diretamente envolvendo seu trabalho. Gumbrecht relata que inicialmente na universidade onde leciona possui uma sala na biblioteca, direito este de poucos pesquisadores da instituição, para além de seu escritório na instituição.
Neste ambiente ele não possui acesso a internet e nem pode ser interrompido, deste modo era o espaço que mais aproveitava para a escrita e produção de pesquisas, deixando os demais tempos fora do espaço para resposta de e-mails e vida pessoal, além das atividades de docência. O eixo inteiro de reflexão do texto está justamente quando a universidade resolve instalar internet nestes espaços. De certa maneira o autor busca em ambos os capítulos aqui relacionados refletir a cerca da sua visão sobre os meios digitais e a internet, e, especialmente, como nossas sociedades no presente encontram-se mergulhadas nestas lógicas e as naturalização. Isso pode ser pensando inclusive enquanto criador de conflitos geracionais entra as nascidas diretamente nesses meios e as que, como a que Gumbrecht se auto-insere, vem sendo inseridas forçadamente nestes meios.
Os capítulos três, Estagnação: Temporal, Intelectual, Celestial; e cinco, “Admiração constante num presente em expansão: Da nossa nova relação com os clássicos”, podem igualmente serem relacionados. Em ambos o autor busca refletir acerca de nossas relações com produções passadas, sejam elas de propostas ideológicas e ideias de progressos, sejam estas de gêneros literários e obras. Especificamente no capítulo cinco, o autor se presente a, seguindo alguns pensamentos esboçados nos demais textos, refletir da relação com os clássicos no presente, afirmando que em nossa sociedade atual, com este presente hipervalorizado, a “relação com a autoridade, e não apenas a autoridade cultural, sofreu uma transformação combinada com nossa construção predominante. Pois nossa nova relação com os clássicos parece mais irônica do que era na época do historicismo” [10]. Neste sentido, o autor coloca sua impressão que no presente as leituras dos considerados clássicos ocorreria em um sentido menos político do que os realizados a um quarto de século antes. Estas leituras estariam agora primeiramente muito mais relacionadas com os desafios típicos da vida do que com a própria vida dos sujeitos.
Em “’Perdidos na intensidade focalizada’: Esportes de espetáculo e estratégias de reencantamento”, quarto capítulo do livro, Gumbrecht retoma aos seus estudos iniciados em Elogia da Beleza Atlética refletindo acerca dos sentimentos e da cultura do espetáculos que envolvem os esportes, especialmente aqueles que os assistem, e a dimensão da presença e dos sentimentos existentes nesses meios. É interessantes destacarmos que estes estudos do autor, que se detém ao esporte, especialmente ao futebol, por afinidades pessoais, podem ser aplicados aos estudos de cultura pop e da música também guardadas as suas devidas relativizações. Em suas perspectiva o autor defende a existência de laços e de dimensões da presenças entre os envolvidos durante a realização de partidas de jogos, laços criados entre jogadores e espectadores.
Já na conclusão, Nosso amplo presente, o autor retoma as principais argumentações de seus textos, destacando especialmente que os modos pelos quais vivenciamos os horizontes de futuro e de passado em um presente ampliado constantemente ainda estão em fase de estudo. Com isso o autor destaca especialmente as relações com os corpos, retomando as suas ideias defendidas no capítulo quatro, dois e seis especialmente, e no experimento de certa maneira de uma violência sobre os corpos para adaptações a própria sociedade, como as cirurgias plásticas e as práticas virtuais de socialização, envolvendo inclusive o aumento da taxa de suicídio.
As questões tocadas pelo livro, e que busquei pontuar brevemente nesta resenha, serviriam igualmente para alertar, e talvez esta seja uma das principais contribuições desta obra de Gumbrecht, sobre uma certa positivação existente na sociedade ao nosso presente onde a globalização, por exemplo, é narrada enquanto um elemento encantador do século XXI e responsável por maravilhas e revoluções. A leitura de Nosso amplo presente – o tempo e a cultura contemporânea contribui então para refletirmos acerca do tempo em que vivemos, e estimula um olhar de questionamento e, inclusive, de autoreflexão.
Notas
1. GUMBRECHT, Hans Ulrich. Elogio da beleza atlética. Trad. Fernanda Ravagnani. Sáo Paulo: Companhia das Letras, 2007.
2. GUMBRECHT, Hans Ulrich. Produção de presença – o que o sentido não consegue transmitir. Tradução de Ana Isabel Soares. Rio de Janeiro: Contraponto e PUC-Rio, 2010.
3. GUMBRECHT, Hans Ulrich. Depois de 1945: latência como origem do presente. Trad. Ana Isabel Soares. São Paulo, Editora da Unesp, 2014.
Vale destacar que o autor utilizou-se de lembrança e bens tanto de pesquisa quanto acumulados pelo tempo, assim como sua experiência própria para a escritura da obra, uma vez que o mesmo nascerá no pós-segunda guerra mundial, deste modo, a obra se constitui enquanto uma livro fascinante para os interessados tanto pela Segunda Guerra Mundial, quanto pelo contexto do pós conflito e pelos debates em torno da memória.
4. GUMBRECHT, Hans Ulrich. Nosso amplo presente – o tempo e a cultura contemporânea. Trad. Ana Isabel Soares. São Paulo: Editora da UNESP, 2015. p. 9.
5. GUMBRECHT, Hans Ulrich. Nosso amplo presente – o tempo e a cultura contemporânea. Trad. Ana Isabel Soares. São Paulo: Editora da UNESP, 2015. p. 12
6. Não pretendendo realizar esta discussão aqui, gostaria apenas de destacar que mesmo sendo possível dialogar Hartog e Gumbrecht ambos não dialogam nesta obra em questão, especialmente no que se refere aos instrumentos para compreensão das experiências no tempo que o primeiro chama de “regime de historicidade” e o segundo nomeia de “Cronótopo”.
7. KOSELLECK, Reinhart. Futuro passado: contribuição à semântica dos tempos históricos. Trad. Wilma Patricia Mass e Carlos Almeira. Rio de Janeiro: Ed. PUC-Rio, Contraponto 2006.
8. _______. Nosso amplo presente p. 16.
9. GUMBRECHT. Nosso amplo presente, p.43.
10. GUMBRECHT. Nosso amplo presente, p.96.
Resenhista
Igor Lemos Moreira – Graduado em História UDESC. E-mail: igorlemoreira@gmail.com
Referências desta resenha
GUMBRECHT, Hans Ulrich. Nosso amplo presente – o tempo e a cultura contemporânea. Trad. Ana Isabel Soares. São Paulo: Editora da UNESP, 2015. Resenha de: MOREIRA, Igor Lemos. Temporalidades. Belo Horizonte, v.9, n.1, p.419-423, jan./abr. 2017. Acessar publicação original [DR]
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