Noites Festivas de Junho: História e Representações do São João no Recife (1910- 1970) é fruto da tese de doutorado apresentada em 2015, na Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) do Doutor Mário Ribeiro dos Santos. Em 2018, com apoio do Fundo Pernambucano de Incentivo à Cultura (FUNCULTURA) foi publicado em formato de livro pela Editora da UFPE.
Ao realizar sua pesquisa voltada as festas das agremiações carnavalescas nas ruas de Recife durante sua dissertação, o autor identificou como o Estado atuava organizando tais festividades sobretudo ao instituir medidas normatizantes e punições. Entretanto, o mesmo não acontecia quando se observava as festividades juninas no mesmo período. Além dessa observação, dois outros detalhes ajudaram na construção do problema do livro. O primeiro foi a sua coordenação no projeto “Nos Arraiais da Memória: as quadrilhas juninas escrevem diferentes histórias” que foi financiada pela Fundação de Cultura da cidade de Recife e que tinha como premissa o registro das expressões culturais da quadrilha junina vivenciado na cidade, ao se utilizar da história oral e de documentação do Diário Oficial do Município (1970- 1980). A busca seria para encontrar registros e memórias que expressassem as relações sociais daquele período, e é neste momento que o autor descobre um contraste que coloca em pauta o silencio intelectual acerca da temática. O segundo detalhe foi um comercial veiculado pela Globo Nordeste em junho de 2013 que representavam os festejos de São João em diversos estados nordestinos.
Assim, em uma perspectiva voltada a história cultural, Mário Ribeiro (2018), investiga o objeto “festa de São João” na cidade de Recife, tentando problematizar como construíramse as representações dos festejos a partir dos diversos registros documentais, focando desde os debates dos letrados que discutiam o folclore e suas associações com o nacionalismo, até os discursos nos periódicos do Estado que transformou a festa em produto cultural vendável ao mercado turístico.
A industrialização do simbólico promovida pelo Estado teria o interesse de proporcionar o aumento do consumo do entretenimento e do turismo que não apenas possibilitaria o enriquecimento dos valores autênticos das expressões culturais mas colocaria seus interesses camuflados nesta valorização do folclore brasileiro.
Em decorrência do objetivo geral da obra é compreensivo que o uso do conceito de representação esteja em destaque em suas reflexões. Desta forma, para Mário Ribeiro (2018), o ponto de partida para a reflexão das representações seriam os discursos, já que se utilizando das ponderações de Roger Chartier em “À Beira da falésia: a história entre certezas e inquietudes”, esses traduziriam o que os grupos e indivíduos constroem para dar sentido ao seu mundo.
Assim, para o autor, seria necessário buscar o que teria acontecido no passado desses indivíduos e grupos que se relacionam com a festa para compreender as camadas de representação que se cristalizaram intergeracionalmente. As representações em sua pesquisa são analisadas a partir das práticas protagonizadas pelos sujeitos e por grupos sociais para a construção dos sentidos das festas de São João na cidade
O conceito de representação tem em seu seio a compreensão de que não existiria prática que não fosse produzida pelas expressões operadas nas interações entre sujeitos na sociedade. Ou seja, não haveria uma única realidade estabelecida, nem muito menos, apenas um único sentido. Portanto, realizar-se diversas possibilidades de ações, escritas, de assimilar e interpretar as formas de representar o São João de Recife. Essas representações se moveriam de acordo com o tempo e com as necessidades dos grupos de criar significados, valores e organizar seu cotidiano.
Ainda se utilizando das mesmas referências em Chartier (2002), o autor compreende o conceito de apropriação como uma história social das interpretações e dos usos, associando-as às suas determinações fundamentais e gravados nas práticas especificas de quem a produzem. Tal compreensão ampliaria o foco acerca da celebração, se apartando da leitura que fabrica uma ideia, uma memória e apenas uma versão para a história do São João.
No título do livro encontramos outra noção que o autor também aborda em sua discussão, que é a noite. Bebendo das reflexões de Maria Izilda Santos de Matos, em “A cidade, a noite e o cronista: São Paulo e Adoniran Barbosa”, Mário Ribeiro (2018) abrange a noite em sua discussão como um importante campo de análise, principalmente a partir das relações que se tecem no seu interior, para as associações da vida cotidiana; para as reflexões das diferentes possibilidades de comportamento, sentimentos e valores e a compreensão da abundância de signos emitidos que são responsáveis por nos levar a outros tempos e lugares. Entretanto, o autor não se “fecha nas práticas da noite”, pois acredita que seria homogeneizar algo que pode ser estudado de maneira relacional e complementar a vivencia ocorrida no dia, não sendo, de fato, um confronto, mas uma construção.
Neste sentido, a obra se distancia de uma percepção original do festejo, como também de uma compreensão evolutiva da festa junina ou de uma homogeneização das suas representações. Na verdade, esse é um dos seus principais focos do livro: o combate da representação homogeneizadora de tradição do festejo e a enunciação da diversidade. Ainda sobre a temática, o autor se embasa em diversas obras que refletem acerca da noção de festa como as de Nestor Garcia Canclini em “As culturas populares no capitalismo” e Ordep Serra em “A festa de largo e seus horizontes: uma breve reflexão”, para demonstrar a relevância dos estudos para a sociedade como construção social do tempo e produção de sentido de comunidade e consequentemente de valores compartilhados. Ainda se tem um espaço lacunar para os estudos voltados as festividades e como apenas na década de 1980 a historiografia começa a se dedicar a este objeto na academia. Mário Ribeiro (2018) defende a importância de compreender os novos sentidos e possibilidades que as festas adquirem em cada temporalidade, mesmo no caso dos festejos como o de São João que dá a impressão de serem mais genuínas do que outras. Portanto, a festa seria uma espécie de vitrine social, onde os grupos exibem os símbolos que lhes representam, produzindo novos sentidos a partir da temporalidade em que a festa está inserida, ressignificando o que veio antes e instituindo uma nova memória, o que Chartier (2002) chamará de apropriação.
A apropriação aparece no momento em que, mesmo sem comemorarmos o festejo nas fazendas, iremos representa-los com balões, fogueiras, comidas e danças, nos salões dos clubes sociais, organizados luxuosamente para as elites se divertirem nas datas comemorativas. Assim, cria-se, de acordo com Eni Orlandi, em “O discurso fundador: a formação do país e a construção da identidade nacional” uma tradição de sentidos, onde alguns sentidos serão reproduzidos por meio das apropriações e representações.
Além de revisão bibliográfica abordando importantes discussões para se refletir acerca das festas como “A festa do interior: São João, migração e nostalgia em Natal no século XX” de Luciana Chianca e “O balance no arraial da capital: quadrilha e tradição no São João do Recife” de Hugo Menezes Neto, o autor trabalhou metodologicamente com fontes dos acervos do Centro de Formação, Pesquisa e Memória Cultural – Casa do Carnaval, do Arquivo Estadual de Pernambuco, da Fundação Joaquim Nabuco, do Instituto Moreira Sales, do Centro Nacional de Folclore e Cultua Popular, das Bibliotecas do Museu da cidade de Recife e do Departamento Jurídico da Prefeitura do Recife.
Houve o levantamento de produções literárias de folcloristas e memorialistas, como Mello Moraes Filho, Pereira da Costa e Mário Sette, além de jornais da cidade do Recife, como Diário de Pernambuco, Diário da Noite, Jornal do Recife, Folha da Manhã e Jornal do Commercio. Mário Ribeiro (2018) também analisou revistas completas como A Pilheira, Pra Você e Revista da Cidade, tabelas fonográficas que continham informações sobre músicas tocadas no São João e indicação de ano, compositor, interprete, gênero musical e selo, e relatórios que tratavam sobre a temática.
O autor se aproxima das discussões de Edward P. Thompson em Folclore, antropologia e história social, ao pensar uma abordagem que promova uma maneira de ler os documentos e interpretar os contextos. Assim o faz por compreender que existem significados dentro de cada contexto, além de seus acontecimentos e personagens, sejam eles figurantes ou principais. Seria necessário fazer novas perguntas e interpretações que ilustrasse melhor o objeto de estudo, desestruturando versões já consagradas do festejo e questionando os discursos que se repetem.
A estrutura do livro – que possui 4 capítulos – e sua organização acontecem de acordo com as questões que a cada momento, na temporalidade proposta, emergia como significativas, permitindo aproximação das redes estabelecidas no interior dos festejos e os sentidos dos seus discursos e representações.
O registro dos memorialistas, políticos, cronistas e folcloristas brasileiros entre a segunda metade do século XIX e primeiras décadas do século XX é um dos primeiros focos do livro apresentado no capítulo 1, Memórias que Encantam e Seduzem: o São João na Escrita de Letrados. Mário Ribeiro (2018) busca compreender no seio do universo letrado as redes de relacionamento dos autores com grupos sociais e espaços de poder, observando o que há em comum entre eles e como seus pensamentos seguia uma certa regularidade, tal como os desempenhos para a preservação da identidade cultural brasileira.
O capítulo 2, O São João, as Letras e a Representação da Festa na Imprensa, faz a análise de como a imprensa representava as festas juninas no período conhecido no Brasil como República “Velha”. Mário Ribeiro (2018) procura os caminhos percorridos pelos profissionais das letras para a divulgação da festa na cidade, observando quem era o público que a consumia, e quais os sentidos provocados na sociedade após as manchetes e anúncios diários. Também observa as representações dos festejos destacando os símbolos incorporados do litoral ao interior e as novas tendências criadas no interior do festejo.
Em seu terceiro capítulo intitulado de As Comemorações Juninas como Símbolo Republicano no Estado Novo, Mario Ribeiro (2018) discute as relações das práticas populares com o projeto político do Estado entre 1937 e 1945. O autor traz uma reflexão acerca da construção de tradições e de uma memória nacional, observando o conjunto de referências que organizou o olhar e o discurso do Estado sobre as festas populares e os modos autorizados de vivência da celebração na cidade.
Por fim, seu capítulo 4, Festas de Junho e Experiências Sociais no Recife do pós 64 salienta o que se vê e o que se vivenciou nos festejos juninos entre as décadas de 1960 e 1970, observando a importância da difusão da imagem do São João que se construiu no país a partir dos discursos acerca da preservação de uma manifestação genuína e tradicional e da valorização dessa expressão cultural popular.
Para Mário Ribeiro (2018) não existe efetivamente uma única versão para a história do São João do Brasil, mas sim, uma diversidade. Sua preocupação, por conseguinte, para além de buscar essas origens na cidade do Recife, seria também tentar compreender em quais circunstâncias essas tradições foram constituídas, como esse discurso de tradição se impôs como referência, e quais as representações desse festejo na cidade do Recife.
Deste modo, encontramos diversos debates e relações que o autor faz envolvendo Estado e sujeitos; memória e experiência; rural e urbano; e mudanças e permanências. Todas essas reflexões no seio dos festejos juninos. O que demonstra como a pesquisa de Mário Ribeiro (2018) é importante para se pensar diversas perspectivas para quem trabalha com o objeto “Festa de São João”.
De fato, uma referência para quem pretende pesquisar esse objeto nos meios historiográficos e para quem busca investigar também outras manifestações populares no Brasil. A discussão acerca das festas na historiografia brasileira ainda é recente e aos poucos esse campo vem se desenvolvendo. Assim, Noites Festivas de Junho: História e Representações do São João no Recife (1910-1970), pode ser compreendido como mais que uma referência, mas uma orientação que merece alusão para quem pretende embrenhar-se nesta perspectiva.
Referências
CANCLINI, Nestor Garcia. As culturas populares no capitalismo. São Paulo: Editora Brasiliense, 1983.
CHARTIER, Roger. À beira da falésia: a história entre incertezas e inquietude. Porto Alegre: Ed. Universidade/UFRGS, 2002.
CHIANCA, Luciana. A Festa do interior: São João, migração e nostalgia em Natal no século XX. Rio Grande do Norte: EDUFRN, 2006.
MATOS, Maria Izilda Santos de. A cidade, a noite e o cronista: São Paulo e Adoniran Barbosa. São Paulo: EDUSC. 2007.
MENEZES NETO, Hugo. O balance no arraial da capital: quadrilha e tradição no São João do Recife. Recife: Ed. do Autor, 2009.
ORLANDI, Eni Puccinelli (org). Discurso Fundador. A formação do país e a construção da identidade nacional. 3ª edição. São Paulo: Pontes, 2003.
SANTOS, Mário Ribeiro. Noites Festivas de Junho: História e Representações do São João no Recife (1910-1970). Editora UFPE. Recife, 2018.
SERRA, Ordep. A festa de largo e seus horizontes: uma breve reflexão. Revista Eparrei, Bárbara: Fé e festas de largo em São Salvador. Série Encontros e Estudos. Rio de Janeiro: IPHAN, CNFCP, 2005.
THOMPSON, Edward P. Folclore, antropologia e história social. In: As peculiaridades dos ingleses e outros artigos. Negro, Antonio Luigi. Silva, Sergio (Orgs.) 2ª ed. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2012
Resenhista
Glauber Paiva da Silva – Doutorando em História pelo programa de Pós-Graduação da Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE). Bolsista pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES). E-mail: glauber.historia55@gmail.com
Referências desta Resenha
SANTOS, Mário Ribeiro. Noites Festivas de Junho: História e Representações do São João no Recife (1910-1970). Recife: Editora UFPE, 2018. Resenha de: SILVA, Glauber Paiva da. Representações das festas juninas no Recife – entre letrados, expressões culturais e a formação da identidade nacional. Memória em Rede. Pelotas, v.12, n.22, p. 253- 259, jan./Jun. 2020. Acessar publicação original [DR]
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