Em Nobrezas do Novo Mundo, Ronald Raminelli apresenta os resultados de relevante pesquisa sobre as formas e critérios de nobilitação nas Américas portuguesa e espanhola no decorrer dos séculos XVII e XVIII, e de como estas práticas faziam parte das estratégias de ascensão social dos vassalos de além-mar. O autor aborda a temática demonstrando um extenso conhecimento da produção historiográfica recente e da documentação coeva, sobretudo a que se relaciona aos súditos do reino português radicados na América.
Neste sentido, destaca-se que a obra possui seis capítulos, divididos em duas partes. Os três primeiros capítulos, “Nobreza sem linhagem”, “Nobreza e governo local” e “Riqueza e mérito” compõem a primeira parte, denominada “Variações da nobreza”, na qual o autor estudou as formas de ingresso na nobreza ou de manutenção de privilégios de diversos agentes históricos na Península Ibérica e na Ibero-América. Já os três últimos capítulos, “Malogros da nobreza indígena”, “Militares pretos na Inquisição” e “Cores, raças e qualidades”, estão inseridos na última parte do livro, “Índios, negros e mulatos em ascensão”, em que Raminelli foca sua análise nos atores sociais da América Portuguesa que fracassaram nas suas tentativas nobilitação.
Em “Variações da nobreza”, primeira parte do livro, o autor trata de analisar a nobreza, suas definições e metamorfoses no Antigo Regime ibérico e sua transposição, adaptações e conformações aos domínios ultramarinos portugueses e espanhóis na América. Raminelli enfoca somente a nobreza formal: a titulada (de linhagem) e civil ou política (pela vontade do soberano). Desta forma, o autor não confunde nobreza com elite, desconsiderando em seu estudo a chamada “nobreza da terra” ou “principais da terra” (denominações utilizadas para a América portuguesa), já que os membros desta elite aristocrática se diferenciavam na sociedade de maneira informal, nem sempre possuindo distinções respaldadas nos estatutos jurídicos.
O livro tem como um de seus destaques a utilização da perspectiva metodológica da história comparada, muito bem aplicada no exame sobre as nobrezas das Américas lusa e espanhola. Nos capítulos 1 e 3, valendo-se de variada e atualizada historiografia e de impressos de época, tomamos contato com as perspectivas de nobreza ibéricas e suas aplicações nos domínios ultramarinos.
Descobrimos como as coroas ibéricas trataram de maneiras diferentes seus vassalos que buscavam se nobilitar no Seiscentos e, desta forma, ascender e se distinguir socialmente, através dos privilégios e imunidades decorrentes dos títulos. Assim, na América espanhola foi empregado o mesmo rigor para concessão de títulos de nobreza que na Espanha. O hidalgo deveria conjugar duas qualidades: a linhagem e a virtude, além de atestar a riqueza e os serviços prestados. Em Portugal e suas conquistas, a concessão de foros de fidalgo não exigia tanto rigor, já que os méritos – serviços militares prestados à monarquia – se tornavam mais importantes na definição de nobreza.
Outras características da América espanhola foram a existência de titulados da alta nobreza e a difusão das venalidades, ou seja, o incentivo da coroa à compra de títulos. Na América portuguesa as venalidades não foram fomentadas, sendo distribuídos somente títulos da baixa nobreza, principalmente os hábitos de cavaleiro das Ordens Militares e, em menor quantidade, as comendas destas mesmas ordens.
Para o Setecentos, são apontadas mudanças em relação às concepções de nobreza e formas de nobilitação tanto na Península Ibérica quanto nos domínios americanos. Ressaltam-se as metamorfoses do ideal de nobreza das sociedades ibéricas setecentistas. Da concepção relacionada às linhagens e aos serviços militares, cresce a de nobreza respaldada no saber, nas ciências e na riqueza. Cresce a obtenção de títulos e hábitos através de compra, processo ligado às necessidades econômicas e políticas da monarquia. Desta forma, a riqueza se transforma no mecanismo mais seguro para a obtenção de distinções nobiliárquicas.
O capítulo 2 busca analisar a relação entre nobreza local, governo das câmaras e a monarquia, perdendo o vigor da perspectiva comparada e se atendo principalmente à discussão sobre o governo das câmaras municipais da América portuguesa. Assim, o autor investiga a questão da autonomia das câmaras e das negociações e intervenções da monarquia nos seus assuntos, evidenciando uma maior autonomia das câmaras periféricas, situadas em áreas de menor prosperidade econômica. Quanto ao autogoverno, o autor demonstra que ao longo do Setecentos as câmaras perdem força de negociação com o centro, enquanto cresce a comunicação do rei diretamente com os governadores/vice-reis.
Num balanço preliminar da obra, nota-se uma falta de unidade em seu conjunto. Ao destacar no título as nobrezas do Novo Mundo, Raminelli deixa a desejar, pois somente dois dos seis capítulos investigam de maneira aprofundada e conectada as nobrezas ibero-americanas em perspectiva comparada. Nos outros capítulos, analisa quase que exclusivamente documentação e historiografia sobre a América portuguesa.
Por outro lado, na segunda parte, “Índios, negros e mulatos em ascensão”, a qualidade das análises sobre as trajetórias destes personagens em busca de reconhecimento por seus serviços prestados à monarquia é excelente e demonstra grande conhecimento das fontes e refinamento analítico. Apesar do quase abandono da história comparada ibero-americana, é aqui que se encontra o ponto alto do livro.
Ao avaliar os vários pedidos e as poucas concessões de hábitos de Ordens Militares a chefes indígenas e negros da América lusa que participaram das lutas contra invasores do território, Raminelli busca clarear as razões que levaram a monarquia portuguesa a conceder estas mercês e as que fizeram negros e índios lutarem por reconhecimento régio. Além disso, irá discutir até que ponto estes agentes se inseriam em uma sociedade marcada por fortes critérios de distinção e hierarquização social baseados na origem e qualidade das pessoas.
Logo, o objetivo central do capítulo 4 é analisar como os índios se inseriam na hierarquia social do Antigo Regime. A questão crucial é se as insígnias das Ordens Militares teriam o mesmo significado para índios. Raminelli aponta que nove chefes indígenas se tornaram cavaleiros das Ordens Militares lusitanas. Exceções, pois conseguiram se nobilitar por meio das promessas de mercês régias em tempos de conflitos bélicos no território americano, nos quais a monarquia necessitava do auxílio dos caciques e suas tropas na luta contra os inimigos do reino.
Se inserindo nas definições de nobreza do Seiscentos, os feitos de chefias indígenas e seus leais serviços à monarquia possibilitaram que desfrutassem das honras e privilégios próprios das sociedades ibéricas, os transformando em “principais da terra”, invertendo hierarquias e criando constrangimentos para governadores e capitães luso-brasileiros.
Dezenas de mercês régias do hábito de cavaleiro foram prometidas pelos soberanos portugueses a índios e negros, que não conseguiram se habilitar devido aos impedimentos da Mesa de Consciência e Ordens. Arrefecendo os ânimos das guerras contra franceses e neerlandeses, a Mesa aplicou critérios muito mais rígidos no momento da concessão dos hábitos.
O capítulo 5 é dedicado à atuação dos militares pretos da América portuguesa, principalmente os oficiais do Terço dos Henriques. Aqui o autor não analisa a escassa nobreza preta do Brasil, mas as trajetórias de pretos com patentes militares. Os desdobramentos destas análises apontam para reflexões de Raminelli acerca do preconceito e da gênese do racismo no Brasil – segundo ele uma exclusão social baseada na cor e na origem cativa – e sua relação com a mobilidade social dos militares pretos.
Estudando um processo inquisitorial que investigava a atuação de uma fradaria de pretos, o autor demonstra que os inquisidores não se importaram em prender e interrogar os fundadores e principais membros da irmandade, pretos forros sem patentes ou sinais de distinção. A culpa sobre as denúncias de irregularidades na congregação recaiu em dois pretos com patentes militares, ativos no Terço dos Henriques, instituição que criou, segundo Raminelli, uma elite preta e livre no Recife. Deste modo, tentavam acabar com o prestígio alcançado por estes pretos, já que se encontram nítidos mecanismos de exclusão no processo.
Henrique Dias, chefe das tropas pretas de Pernambuco, conseguiu para si o foro de fidalgo. A Mesa de Consciência e Ordens solicitou todos os trâmites legais para conceder as mercês, rigor não aplicado para o chefe indígena Antônio Felipe Camarão, por exemplo. Para seus seguidores Dias conseguiu patentes, terras e liberdade, afastando os pretos da origem cativa e possibilitando a estes homens uma grande ascensão social. No Setecentos, as tentativas de desprestígio dos oficiais do Terço e as recusas da Mesa em habilitar pretos e mulatos sugerem a Raminelli uma crescente preocupação das autoridades com as pessoas de origem cativa no Brasil, consequência do aumento do tráfico e da consolidação da sociedade escravista.
A partir destas análises, o autor se propõe a refletir, no último capítulo, sobre as classificações sociais e hierárquicas da América portuguesa setecentista de modo a discutir a possível gênese de práticas racistas e racismo na sociedade escravista. Proposta provocativa, pois suscita debates sobre a origem e formas de se entender racismo. Mas o autor esclarece que não entende os conceitos de raça e racismo com a carga cientificista e de determinismo biológico difundidos no século XIX, embora acredite que os termos podem ser aplicados para se tentar entender as relações sociais na América portuguesa dos séculos XVII e XVIII.
Raminelli enfatiza a necessidade de se averiguar as variações históricas da noção de raça. Assim, se insere em um debate que argumenta que houve uma lenta transformação do termo a partir do século XVII, embora no Antigo Regime raça possuísse uma fluidez de significados. Raça, desta forma, era usada principalmente para hierarquizar os agentes históricos deste período, invocando elementos sociais e culturais.
Ao analisar os impedimentos de concessão de mercês a mulatos, Raminelli exemplifica o seu argumento de que o racismo, como forma de exclusão nos séculos XVII e XVIII, estava respaldado em justificativas como a cor e a origem cativa dos suplicantes, diferentemente da distinção por motivos religiosos a mouros e judeus. Deste modo, o autor encerra sua obra salientando que, por não estar respaldada pelo determinismo biológico do Oitocentos, a ideia de raça e racismo não pode ser empregada para períodos anteriores sem que se façam as devidas ressalvas a respeito.
Resenhista
Guilherme Augusto do Nascimento e Silva – Doutorando em História – Universidade Federal de Minas Gerais. Bolsista FAPEMIG E-mail: guilnascimento@yahoo.com.br
Referências desta Resenha
RAMINELLI, Ronald. Nobrezas do Novo Mundo: Brasil e ultramar hispânico, séculos XVII e XVIII. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2015. Resenha de: SILVA, Guilherme Augusto do Nascimento e. Nobilitação, distinção e racismo na Ibero-América. Revista Latino-Americana de História. São Leopoldo, v.5, n.16, p. 261-265, ago./dez. 2016. Acessar publicação original [DR]
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