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No Enxame: perspectivas do digital | Byung-Chul Han

Manuel Castells, em sua clássica obra Sociedade em Rede, afirmou que no final do segundo milênio da era cristão, “uma revolução tecnológica concentrada nas tecnologias da informação, começou a remodelar a base material da sociedade em ritmo acelerado” (2000, p. 39). O sociólogo não pode prever que, mais do que modificar e “remodelar a base material”, iriamos ser arrastados para estes meios tecnológicos, em uma velocidade que ultrapassou o limite do material, chegando ao imaterial. Dessa forma, vivemos hoje um momento de dúvida, crise, instabilidade, sem sabermos para onde vamos.

Devido a este cenário, a obra de Han se apresenta como necessária aos estudos das humanidades, e, também, diretamente à historiografia. Afinal, muito destas transformações afetam diretamente o trabalho do/a historiador/a.

Byung-Chul Han é um filósofo germano-coreano que teve sua formação acadêmica na Alemanha. Cursou filosofia na Universidade de Friburgo e Literatura alemã e Teologia na Universidade de Munique. Seu doutorado foi em Friburgo, com uma tese sobre Martin Heidegger. Atualmente é professor de Filosofia e Estudos Culturais na Universidade de Berlim. Diversas obras do autor foram traduzidas para o português, e as mais famosas são: “Sociedade do Cansaço” e “Psicopolítica: o neoliberalismo e as novas técnicas de poder”.

Han é ainda pouco conhecido na academia brasileira. Contudo, seus escritos, seus interesses e suas reflexões atualíssimas são de grande importância para compreendermos o que está acontecendo no mundo. Ou, ao menos, para reflexionar sobre essa aceleração do tempo no presente. Portanto, trata-se “No Enxame”, de uma obra filosófica em sua acepção mais tradicional. Se o/a leitor/a espera um livro repleto de respostas, com conceitos, teorias e metodologias para serem aplicadas no campo historiográfico, sinto muito, pois ela não tem esse viés.

Esta diminuta obra (apenas 134 páginas), nos traz muitas reflexões, perguntas, críticas e elucidações sobre a sociedade em que vivemos e que nos embriaga através da mídia digital, “sem que possamos avaliar inteiramente as consequências dessa embriaguez” (HAN, 2018, p. 10).

Os capítulos são curtos, trazem temáticas atuais e dialogam com a filosofia clássica e contemporânea, (Kant, Heidegger, Foucault, Deleuze, são alguns dos nomes que o autor traz para o debate na obra) e reflete sobre o passado e o presente (por vezes sobre a ausência de futuro). Tudo isso buscando compreender que tipo de sociedade vivemos. Os 16 capítulos da obra seguem essa dinâmica.

Em vários momentos, Han toca em temas sensíveis para nós, os/as historiadores/as contemporâneos. Contudo, dois tópicos sobressaem: a questão narrativa e a aceleração do tempo. No capítulo intitulado “Fuga na imagem”, Han parte da reflexão sobre a importância da imagem para a sociedade midiatizada em que vivemos. Sua análise é crítica e contundente: “as imagens que, como reproduções, apresentam uma realidade otimizada, aniquilam justamente o valor icônico original da imagem. Elas são feitas reféns pelo real. Por isso, somos hoje, apesar ou justamente devido à enxurrada de imagens, iconoclásticos”. Para ele, essa iconoclastia do tempo presente domesticou as imagens por terem se “tornadas consumíveis”, afinal, “fotos belas, como imagens ideais, os protegem da realidade suja”. Ele insiste que a “mídia digital” acaba por aumentar a “distância do real” em relação as “mídias analógicas”. Neste instante, apresenta sua perspectiva de tempo para a mídia digital. Segundo Han, ela “não tem idade, destino e morte. Nela, o tempo mesmo é congelado. Ela é uma mídia atemporal” (2018, p. 54-57). Refletindo sobre a imagem digital, dentro de um mundo midiatizado pelo digital, o autor a vê presa em um eterno presente:

A imagem digital, em contrapartida, acompanha uma outra forma de vida, na qual tanto o vir a ser quanto o envelhecer, tanto o nascimento quanto a morte são apagados. Ela caracteriza uma presença e um presente permanentes. A imagem digital não floresce ou reluz, pois a negatividade do murchar está inscrita no florescer e a negatividade da sombra, no brilho (HAN, 2018, p. 57-58).

Essa discussão sobre o tempo da imagem na era digital, podemos dizer, foi o aperitivo do autor em relação à temática. No capítulo seguinte, “Do agir ao passar de dedos”, ele vai ao cerne da discussão sobre Tempo e Narrativa, na perspectiva midiatizada. A primeira frase diz muito: “o verbo para história é agir”. Um pouco a frente ele complementa: “Agir significa fazer um novo começo, deixar que um novo mundo comece” (2018, p. 59-60). O autor traz esse tema para a discussão por um prisma contemporâneo, onde apresenta sua perspectiva sobre esse eterno presente da era digital, o que ele chama do tempo do morto-vivo:

O nosso fazer não estaria entregue àqueles processos automáticos que também não se deixam mais interromper por meio de um milagre do novo começo radical e nos quais não somos mais sujeitos de nossas decisões? A máquina digital e a máquina do capital não se uniram em uma sinistra aliança que aniquilaria completamente a liberdade? Não viveríamos hoje no tempo do morto-vivo, no qual não apenas o nascer, mas também o morrer se tornaram impossíveis? (…) A era digital do morto-vivo é, vista desse modo, nem política nem metafísica. Ela é, antes, pós-política e pós-metafísica (HAN, 2018, p. 60).

Seguindo a perspectiva de Vilém Flusser, acredita que a humanidade, com seus meios digitais, vive e convive com uma “vida inatingível” do amanhã. Ou seja, o ser humano vive um hoje, esperando um amanhã. Entra, dessa maneira, em uma espiral, que não consegue experienciar a vida, e com isso, o agir é sempre controlado por uma expectativa, jamais concretizada. Por isso, para o filósofo sulcoreano, há a atrofia do agir, em uma perspectiva histórica: “a sociedade da positividade atual evita, porém, todas as formas de resistência. Ela suprime, desse modo, ações. Nela dominam apenas diferentes estados do mesmo” (HAN, 2018, p. 63).

Sem resistência, o agir é um autômato, ou simplesmente não há agir. Apropriam-se da palavra, neutralizam o seu aspecto semântico e a confiscam para o tempo do trabalho, que para ele, é o “imperativo do neoliberalismo”. Tudo isso é feito para aprimorar os meios de coação deste regime, que nos desumaniza para nos automatizar: “os aparatos digitais produzem uma nova coação, uma nova exploração. Eles nos exploram ainda mais eficientemente na medida em que eles, por causa de sua mobilidade, transformam todo lugar em um local de trabalho e todo o tempo em tempo de trabalho” (2018, p. 65).

Com essa nova lógica, Han argumenta que a “cultura digital se baseia no dedo contador”. Agora tudo é numerado, quantificado e automatizado. Não precisamos mais narrar, apenas contar. E tudo isso é feito de forma automática. Estaria ele profetizando a morte da narrativa?

A palavra “digital” aponta para o dedo (digitus) que, antes de tudo, enumera. A cultura digital se baseia no dedo contador. A história, porém, é uma narrativa. Ela não enumera. Enumerar é uma categoria pós-histórica. Nem tweets nem informações se reúnem em uma narrativa. Também o mural não narra nenhuma história de vida, nenhuma biografia. Ele é aditivo, e não narrativo. O homem digital passa os dedos no sentido de que ele enumera e calcula constantemente. O digital absolutiza o número e o enumerar. Também amigos no Facebook são, antes de tudo, contados. A amizade, porém, é uma narrativa. A era digital totaliza o aditivo, o enumerar e o enumerável. Mesmo tendências são contadas na forma de curtidas. O narrativo perde enormemente em significado. Hoje tudo é tornado enumerável, a fim de poder ser convertido na linguagem do desempenho e eficiência. Assim, hoje, tudo aquilo que não é enumerável cessa de ser (HAN, 2018, p. 66-67).

Ao longo da obra Han reflexiona mais intensamente sobre essas perspectivas. Segundo o autor, vivemos a era da pós-narrativa e pós-política, e presos no imediatismo da mídia digital, e acabamos reféns do presente, como temporalidade: “o futuro, enquanto tempo político, desaparece” (HAN, 2018, p. 39). Nesta lógica da filosofia de Han, na sociedade midiatizada que vivemos, o futuro e o passado estão vinculados a um plano narrativo. Se a narrativa não pode ser contada e enumerada, ela é descartada. Dessa forma, vivemos uma ditadura do presente, do imediatismo, ou, nas palavras do filósofo: vivemos na sociedade do desempenho, que somente pode ser mensurado/quantificado e no presente.

Estas são algumas das contribuições de Han para o debate historiográfico contemporâneo. Na verdade, são alguns questionamentos que nós, historiadores e historiadoras precisamos fazer. Contudo, ele para por aí. Não aprofunda, não discute a real dimensão da possível morte da narrativa, não apresenta sua perspectiva do pós-narrativa e, também, fica reduzido aos números da era digital em relação ao imediatismo do tempo presente. Parece que essa não é a sua intenção. Ou seja, ele não quer trazer soluções (até porque parecem ser os pontos levantados por ele complexos demais para haver soluções em tão pouco tempo de experiência histórica, como a que estamos vivendo no presente) ele quer evidenciar, levantar problemas que, através de sua filosofia, ele conseguiu detectar na forma de viver atualmente. Neste ponto, somos nós historiadores/as e, principalmente, os teóricos/as e/ou filósofos/as da História quem devemos trazer para nosso campo, o debate e buscar respostas.

A obra apresenta discussões que vão para além destes conceitos de tempo e narrativa. Provavelmente as reflexões sobre a sociedade do (auto)controle, o que ele nomeia de psicopolítica, sejam os conceitos e discussões mais bem aprofundadas nas páginas do livro. Dialogando com o conceito de biopolítica de Foucault, ele vislumbra a psicopolítica, como resultado da sociedade digital em que vivemos. Essa categoria de sociedade criou uma capacidade de vigilância, que ultrapassa o panóptico descrito por Foucault, pois ela “controla e influencia o ser humano não de fora, mas sim a partir de dentro”. Ele continua: “a sociedade digital da vigilância, que tem acesso ao inconsciente-coletivo, ao comportamento social futuro das massas, desenvolve traços totalitários. Ela nos entrega à programação e ao controle psicopolítico” (2018, p. 134). Esta ideia é melhor desenvolvida em outra obra de Han, também traduzida para o português2. Contudo, os outros ensaios que compõem o livro apresentam perspectivas ramificadas desta concepção de sociedade de controle, passando, inclusive, pela narrativa e pela perspectiva temporal da sociedade contemporânea.

Se falta profundidade nas análises, e reiteramos aqui, não parece ser o objetivo do filósofo, tampouco parece ele acreditar que seja possível (ainda) aprofundá-las, diante da experiência que estamos tendo no presente sobre as temáticas abordadas, sobram reflexões e capacidade de representar o mundo que experienciamos. É uma obra necessária e importante para que possamos entender, primeiro nosso lugar nesta sociedade do digital e, depois, nosso métier de historiador/a. Afinal, todos nós nos encontramos No Enxame do digital.

Nota

2 Trata-se da obra intitulada Psicopolítica – o Neoliberalismo e as novas técnicas de poder. Publicada em 2018, pela Editora Âyiné.

Referências

CASTELLS, Manuel. A Sociedade em Rede. Vol. 1. São Paulo: Paz e Terra, 2000.

HAN, Byung-Chul. No Enxame: perspectivas do digital. Petrópolis, RJ: Vozes, 2018.

HAN, Byung-Chul. Psicopolítica – o neoliberalismo e as novas técnicas de poder. Belo Horizonte: Editora Âyiné, 2018.


Resenhista

Mauro Henrique Miranda de Alcântara – Doutor em História pela Universidade Federal de Mato Grosso. Professor do Instituto Federal de Rondônia, Campus Cacoal. Email: alcantara.mauro@gmail.com


Referências desta Resenha

HAN, Byung-Chul. No Enxame: perspectivas do digital. Petrópolis, RJ: Vozes, 2018. Resenha de: ALCÂNTARA, Mauro Henrique Miranda de. A perspectiva do digital na óptica de Byung-Chul Han, uma leitura necessária para os/as historiadores/as contemporâneos. Tempos Históricos. Marechal Cândido Rondon, v.26, n.1, p.307-312, 2022. Acessar publicação original [DR]

Itamar Freitas

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