Nietzsche y “la nueva concepción del mundo” MARTON (CN)
MARTON, Scarlett. Nietzsche y “la nueva concepción del mundo”. Córdoba: Brujas: 2017. Resenha de: PASCHOAL, Antonio Edmilson. O mundo como medida: o papel conferido por Scarlett Marton à cosmologia na interpretação da filosofia de Friedrich Nietzsche. Cadernos Nietzsche, São Paulo, v.39 n.2 maio/ago. 2018.
Com o livro Nietzsche y “la nueva concepción del mundo”, publicado pela Editorial Brujas, de Córdoba, Argentina, em 2017, 114 p., Scarlett Marton oferece à comunidade de língua espanhola uma de suas teses mais caras: a de que a filosofia de Nietzsche enuncia uma “nova visão de mundo”. A demonstração dessa tese, como se pode observar, segue um itinerário peculiar em meio ao conjunto de textos publicados e apontamentos do filósofo posteriores a 1883, o que faz do livro um comentário, ao certo, mas, acima de tudo, uma interpretação plausível e justificável da filosofia de Nietzsche a partir de possibilidades deixadas por ele em sua obra. Uma interpretação que se aplica especialmente para os escritos do filósofo posteriores a Assim falou Zaratustra.
Para nos inteirarmos dessa interpretação singular e apreendermos a tese defendida pela autora, seguiremos seus passos pelo percurso proposto, observando como se move naquele conjunto labiríntico de escritos, suas opções, sua metodologia e o modo como tece a sua argumentação, passando com sutileza do que já é conhecido entre os leitores de Nietzsche para o inusitado e inesperado. Uma argumentação que, embora enuncie desde o início o seu propósito, só o revela de fato em toda a sua complexidade e consequências nas últimas linhas do texto. No final da trilha.
Inicialmente, cabe observar que em Nietzsche y “la nueva concepción del mundo”, S. Marton se mantém fiel a alguns pontos centrais de uma interpretação geral do pensamento de Nietzsche e que já nortearam vários outros trabalhos publicados por ela em diversos idiomas. Em especial, neste livro, mantém-se coerente com a ideia de que Nietzsche não produz uma ontologia, nem constrói um pensamento nos padrões de uma metafísica, mas propõe uma cosmologia, ao modo como fazem os filósofos pré-socráticos. Uma cosmologia, ou concepção de mundo, à qual se vinculariam outros temas da obra do filósofo, como é o caso, por exemplo, de sua crítica aos valores. O detalhamento exigido pelo tema, contudo, impõe a divisão ao livro em duas partes. Uma primeira voltada especificamente ao conceito de vontade de poder e, uma segunda dedicada particularmente ao conceito de eterno retorno do mesmo. Dois conceitos que se interligam, conforme veremos, por meio da teoria das forças de Nietzsche.
O conceito de vontade de poder, conforme lembra a autora, foi exposto por Nietzsche pela primeira vez na obra publicada em Assim falou Zaratustra. Uma exposição na qual se acentua o caráter orgânico do conceito que, naquela publicação, se identifica com a vida. Já neste ponto do livro, contudo, para além do conteúdo exposto, chama a atenção do leitor o modo como a autora constrói seus argumentos. Apoiando-se nos textos publicados, nas anotações do filósofo e recorrendo às suas fontes, como é o caso dos biólogos Wilhelm Roux e William Rolph, além de manter um debate permanente com outras interpretações sobre o tema em pauta. O que permite constatar no seu trabalho a herança, tanto de um tipo de análise que remete a intérpretes clássicos como Walter Kaufmann (W. Kaufmann, 1974) quanto de uma metodologia de leitura dos escritos de Nietzsche que foi consagrada por Mazzino Montinari como “histórico filológica”. Uma metodologia que estabelece uma íntima conexão entre a obra publicada pelo filósofo e os fragmentos póstumos do período, além de colocar em relevo o papel das “fontes” utilizadas para a compreensão de seu pensamento (M. Montinari, 1997, p. 78).
Assim, apoiando-se em parte na obra publicada, em parte nos apontamentos pessoais do filósofo e também nas leituras decisivas sobre o tema feitas por ele na época em que formula sua filosofia, Marton coloca em relevo o modo como o conceito de vontade de poder se vincula, então, à ideia de vida entendida como um conflito tanto entre os seres vivos quanto entre órgãos. Um conflito no qual “as minúsculas partes de um organismo vivo, não luta(m( por prazer ou por um objetivo que seria, por exemplo, a auto conservação ou subsistência, como pensa Darwin, mas por ‘um plus de poder’ (S. Marton, p. 34)”. Em resumo, uma concepção em que a vida, entendida como vontade de poder, se pautaria por um conflito permanente, não “pela autodefesa, mas pela voracidade” (p. 40), pela superabundância.
Após o Zaratustra, embora o filósofo mantenha o uso da biologia para a construção de seus argumentos ligados ao tema, em especial nas suas anotações pessoais, o fato é que ele amplia o conceito de vontade de poder para além do universo dos seres vivos. O marco dessa mudança, que na obra publicada tem lugar especial em Além do bem e do mal, consiste em retirar aquele “traço distintivo fundamental” entre orgânico e inorgânico. A partir de então, para o filosofo, ambos, orgânico e inorgânico, participariam do mesmo princípio. Em ambos “atua [wirkt] a vontade de poder” (p. 43) que passa a compreender o mundo em sua totalidade.
A ampliação do campo de atuação do conceito de vontade de poder obriga a intérprete a se ocupar de forma mais pormenorizada da teoria das forças de Nietzsche, construída pelo filósofo, segundo ela, justamente em função da necessidade de “decifrar o modo como se efetua a passagem da matéria inerte para vida, um dos problemas fundamentas para a ciência da época” (p. 44). No âmbito dessa teoria, uma força corresponderia a um quantum de vontade, de atividade e, assim, a algo que não se distingue de sua manifestação, de seu atuar. Desse modo, nessa teoria, não haveria espaço para um sujeito operante separado daquele atuar. “A ação é tudo” (p. 49), como afirma o filósofo de forma conclusiva na sua Genealogia da moral.
Ainda no domínio dessa teoria, a relação das forças entre si, como foi visto em relação à vida, seria de uma luta permanente, na qual cada uma delas busca expandir-se até o seu limite, tornar-se mais forte. O mundo seria, assim, um complexo e tenso campo de forças em conflito por expansão, sem princípio, fim ou sujeito. O que nos recoloca no âmbito da vontade de poder, pois, nesse sentido, como ressalta a intérprete, “toda força é vontade de poder” (p. 51). Agora, porém, ao designar aquele impulso por mais poder, a vontade de poder tem também uma ampliação do ponto de vista conceitual. Ela passa a corresponder a uma “explicação do caráter intrínseco da força” (p. 52) – como uma qualidade da força. Um ponto decisivo para a interpretação da autora que, tendo por pressuposto, neste momento, tanto aquela ampliação do campo de atuação do conceito quanto a sua compreensão como uma qualidade da força, pode arriscar sua hipótese de que aquela teoria de fundo cosmológico serviria de pedra de toque para o filósofo em outras esferas de seu pensamento, como é o caso da axiologia.
Tomar o domínio dos valores a partir da perspectiva da vontade de poder significa dizer que nesse âmbito não existe qualquer critério absoluto ou tábua de preceitos pré-estabelecida, anterior à vida e às suas manifestações. Significa também considerar, assim, em última instância, como o único critério plausível para diferenciar, por exemplo, bom e ruim, a própria vida – concebida, no caso, “como vontade de poder” (p. 60). A avaliação dos valores se daria, então, pela observação do quanto eles seriam expressão da afirmação ou da negação da vida, do quanto a favoreceriam ou obstruiriam. Nesse ponto, a autora reitera que “moral, política, religião, ciência, arte, filosofia, qualquer apreciação de qualquer ordem deve ser submetida a um exame, deve passar pelo critério da vida. E a vida é vontade de poder” (p. 62). O que confirma a sua hipótese, que mencionamos no parágrafo anterior, de que a vontade de poder, enquanto uma concepção de mundo, uma cosmologia, tem precedência sobre outros campos considerados pelo filósofo. No caso, o da axiologia.
Diferentemente do que foi notado na primeira parte do livro, em que a autora – abordando o tema da vontade de poder – não parece encontrar grandes dificuldades para comprovar sua tese de que o caráter cosmológico, a “nova visão de mundo” teria um papel central na filosofia de Nietzsche, em especial nos escritos posteriores ao Zaratustra, na segunda parte – quando se volta para o tema do eterno retorno do mesmo – as dificuldades parecem se ampliar. O que faz acentuar também o caráter polêmico da obra e a maior atenção às posições contrárias. Numa sequência, o debate se ocupa, inicialmente, da tese de Nietzsche, do eterno retorno do mesmo e suas principais controvérsias e, posteriormente, da tese da autora, de que o eterno retorno, parte capital daquela “nova visão de mundo”, teria um papel decisivo na filosofia de Nietzsche.
Iniciando sua argumentação, Scarlett Marton cita um fragmento do ano de 1885, no qual se evidenciaria a correlação entre os dois conceitos, o de vontade de poder e do eterno retorno, posto que o mundo, segundo o filósofo, seria “um mar de forças” que se transforma eternamente, retorna eternamente. O vínculo entre ambas seria feito, como se evidencia naquela passagem, pela teoria das forças, que é tomada nesse contexto por seu caráter polêmico. Pela contraposição que representa em relação a algumas teorias conhecidas da época, em especial à ideia de entropia e à segunda lei da termodinâmica. Nesse sentido, é ressaltada a ideia do filósofo de que as forças seriam finitas e se correlacionariam entre si num tempo infinito, configurando um universo que não se ampliaria e nem atingiria uma finalidade, pois, se houvesse essa finalidade, com o tempo infinito e as combinações finitas entre as forças, ela já teria sido atingida.
Adentrando na polêmica, a autora explicita a posição assumida por Nietzsche, mas não se limita a defendê-la. Ao contrário, tomando como referência G. Simmel, afirma que aquela repetição pensada por Nietzsche não seria um dado necessário “a não ser que as cartas estivessem marcadas e os dados viciados” (p. 69). Mais ainda, ela evidencia que a posição cosmológica assumida por Nietzsche no debate com os físicos de sua época incorre em outro problema ainda mais sério, pois ela não apenas fecha as portas para a realização de uma finalidade última, como retira do mundo “qualquer novidade” (p. 67).
A disputa se estende também à recepção do eterno retorno na pesquisa Nietzsche. Nesse campo, a crítica da autora se volta à ênfase conferida por parte daquela recepção às “consequências psicológicas” do eterno retorno, estendendo-se também aos intérpretes que conferem à teoria circular de Nietzsche apenas um papel heurístico, que se limitaria a levar o leitor do filósofo a tomar uma posição diante da vida. Outra interpretação criticada pela autora é aquela que faz do eterno retorno um imperativo ético, próximo ao que se tem na filosofia kantiana, e que culminaria, como nos casos anteriores, mas aqui de um modo ainda mais acentuado, numa espécie de sujeito livre e responsável por suas ações. Algo totalmente contrário ao pensamento do filósofo.
O desfecho do debate com os interlocutores conduz a uma retomada do ponto nevrálgico da polêmica anterior. De que o eterno retorno não permitiria ao mundo “qualquer novidade”. Neste ponto, fica evidente que a autora não pretende ceder terreno a qualquer interpretação da teoria que venha a retirar dela justamente esse ponto terrível, o caráter determinista daquela visão de mundo que toma como uma fatalidade o fato de que tudo retorna – até mesmo o niilismo e o homem mais pequeno. Assim, se inicialmente ela parece tomar aquele determinismo como um problema, aos poucos deixará claro que ele não constitui um inconveniente para a teoria, mas é parte indispensável dela.
Nesse sentido, acompanhando o filósofo, também a intérprete não se recusa a experimentar filosoficamente o pensamento abissal em suas últimas consequências. Portanto, reafirma que não se deve tentar retirar da teoria a sua consequência determinista, mesmo quando se pretende considerar a correlação entre aquela visão de mundo e o campo dos valores. Isto porque é justamente o seu determinismo que permite a ela se apresentar como uma contraposição ao livre arbítrio e também àquelas tentativas de buscar saídas para o caráter terrível da existência em instâncias fora do mundo, no além.
É a concepção de mundo de Nietzsche que permite a ele pleitear que seus leitores voltem seus olhos para a terra e não para o além, postulando que essa vida, o instante presente como eterno. Nesses termos, rechaçar a metafísica, o recurso a uma esfera suprassensível, assim como o mecanicismo, consiste em assumir o mundo como ele é, a “amar o destino” (p. 98). O que corrobora, agora de forma conclusiva, a tese de que a visão cosmológica se antepõe à moral, pois, no âmbito dessa tese, “o ser humano” não seria o centro pensante do universo, mas “participa(ria( do destino de todas as coisas” (p. 99). O homem é parte do mundo. Pertence a ele. Como a um fatum. Assim, do mesmo modo como não temos uma posição fora da vida para julgar o valor da vida, também não teríamos, segundo a autora, uma posição fora do mundo para julgá-lo, cabendo ao homem, portanto, “conhecer o curso do mundo e entender sua natureza” (p. 101). O mundo é a medida e o homem divide com ele o seu destino. O homem não é o sujeito dos acontecimentos, mas parte do mundo. Nele se manifesta a totalidade do mundo, tanto aquela ampliação do campo de autuação do conceito.
Referências
KAUFMANN, W. Nietzsche, Philosopher, Psychologist, Anti-christ. 4. Ed. Nova York: Princeton University Press, 1974. [ Links ]
MARTON, Scarlett. Nietzsche y “la nueva concepción del mundo”. 1a ed. Córdoba: Brujas, 2017. [ Links ]
MONTINARI, M. Ler Nietzsche: O Crepúsculo dos ídolos. Trad. Ernani Chaves. In.: Cadernos Nietzsche 3, p. 77-91, 1997. [ Links ]
Antonio Edmilson Paschoal – Professor do Departamento de Filosofia da Universidade Federal do Paraná (UFPR), Curitiba, PR, Brasil. Pesquisador do CNPq. E-mail: antonio.paschoal@yahoo.com.br