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Nietzsche e Rée: psicólogos e espíritos livres – MACHADO (EL)

MACHADO, Bruno. Nietzsche e Rée: psicólogos e espíritos livres. Campinas-SP: Editora Phi, 2016. Resenha de: VECCHIA, Ricardo B. Dalla.  Eleuthería, Campo Grande, v. 2, n. 2, p. 125 – 130, jun./nov., 2017.

Bruno Martins Machado apresenta à crítica brasileira o seu primeiro livro: Nietzsche e Rée: psicólogos e espíritos livres, publicado pela Editora Phi de Campinas-SP. Com prefácio de Oswaldo Giacoia Jr. ele resulta de sua tese de doutoramento defendida no programa de pós-graduação em filosofia do Instituto de Filosofia e Ciência Humanas da UNICAMP, com estágio de pesquisa na Ernst Möritz Arndt Universität – Greifswald, sob supervisão de Werner Stegmaier.

Já nas primeiras linhas da apresentação Machado delimita o caminho de sua investigação, dividida em três capítulos: i) “Monumento de uma crise”, ii) “A pergunta sobre a origem” e iii) “A psicologia: o caminho para os problemas fundamentais” –, por sua vez subdivididos em seções que favorecem a apresentação das ideias, muito embora não constem no sumário. Trata-se de uma investigação temática sobre o conceito de psicologia no horizonte do período intermediário de produção de Nietzsche (1876-1882), mais especificamente na obra Humano demasiado Humano (1878), doravante HH.

Psicólogo de formação, Machado está atento à reciprocidade existente entre as análises de Nietzsche e a emergência da psicologia como ciência da subjetividade na segunda metade do séc. XIX. Reciprocidade, pois como ele sugere ao aproximar as obras do autor de Ecce Homo a textos do métier da psicologia há alguma razão na posição requerida por ele de “primeiro psicólogo”1, uma vez que a sua obra moldou e foi moldada no próprio movimento de emancipação das ciências humanas deste século.

Em que pese a irônica contradição entre as últimas aspas e aquelas do Crepúsculo dos Ídolos onde Nietzsche outorga a Dostoiévski o título de “único psicólogo, diga-se de passagem, do qual tive algo a aprender”2, Machado discute a originalidade do filósofo e nos revela como ele recorre a inúmeros interlocutores, no momento da redação de HH particularmente ao então filósofo Paul Rée (1849-1901), na tentativa de delinear um método próprio de análise das representações e sentimentos morais, religiosos e estéticos.

A psicologia tal como pensada por Nietzsche – no final da década de 1870 ainda caudatária do pensamento de Rée e também dos psicólogos ingleses (não necessariamente psicólogos nem ingleses) e da moralística francesa com seus mestres na “arte de polir sentenças” (HH 35) – é o objeto de análise do livro em questão.

O que significa “psicologia” para Nietzsche? Qual é a sua relação, no contexto da reestruturação do pensamento nietzschiano no período intermediário, com a filosofia histórica, a ciência natural e a química das representações e sentimentos? Qual é especificamente o ofício do psicólogo? O que somente a psicologia é capaz de revelar? Machado se propõe a investigar essas e outras questões, que mesmo a Nietzsche pareciam obscuras à época de HH, de forma ordenada, gradual e através de uma linguagem clara que resulta num bom guia de leitura sobre HH e uma introdução ao período intermediário da filosofia de Nietzsche.

No aforismo 23 de Além do bem e do mal, obra que aprofunda o esforço crítico de HH, Machado encontra a melhor definição para rotular a sua hipótese. “Rainha das ciências”, diz ali Nietzsche, “a psicologia é o caminho para os problemas fundamentais”. Machado se debruça sobre essa definição para evidenciar a especificidade do registro da psicologia em HH e a sua função no reconhecimento e na dissolução do que ali se denuncia como os erros da razão, “a falência psicológica dos pressupostos metafísicos” (p. 143). De acordo com o autor, além de um erro na produção do conhecimento a metafísica traz um erro psicológico na construção dos seus fundamentos. Uma crítica efetiva da metafisica exige, por isso, a análise da construção psicofisiológica dos seus significados. Como ferramenta crítica, “caminho”, a psicologia erige como a “ciência responsável pela explicação das diferentes formas de se apropriar da efetividade” (p. 131), capaz de responder à “pergunta pelo ilógico, mostrando como as sensações foram organizadas em torno de um sentido” (p. 142).

Uma comparação parece-me possível. De modo análogo ao procedimento que Nietzsche descreve no prefácio póstumo de O nascimento da tragédia – “ver a ciência com a ótica do artista, mas a arte, com a da vida”, uma vez que o problema da ciência não pode ser reconhecido no terreno da ciência –, também em HH Nietzsche se vale da estratégia do jogo de óticas para reconhecer e submeter à crítica o âmbito da metafísica. Parafraseando a última citação, se o problema da metafísica não pode ser reconhecido no terreno da própria metafisica é necessário articulá-lo a outro terreno, outra ótica, outra perspectiva, que seja capaz de revelar não apenas os seus significados, mas as motivações, as construções, as apropriações, as intenções que competem para eles. A psicologia é esta ótica. Ela é o caminho para as questões fundamentais dada a sua capacidade de desvelar o sentido do próprio sentido.

Contrastando a ótica da psicologia nietzschiana a alguns dos mais exponenciais sistemas filosóficos, de Platão a Schopenhauer, Machado enfatiza a desrazão (Unvernunft) escondida por trás da razão (Vernunft), os interesses por trás do suposto desinteresse, os erros e crenças por trás da verdade, a necessidade e o egoísmo por trás da liberdade e do altruísmo. Antes, Machado está preocupado em revelar o modo como Nietzsche mobiliza diversos elementos (interlocutores, métodos, estilos etc.) para construir uma nova perspectiva de análise. É o trabalho, diríamos “artesanal” de Nietzsche na construção de sua psicologia o que o autor pretende nos apresentar.

Graças à expansão e aperfeiçoamento da cada vez mais variegada NietzscheForschung Machado é capaz de recompor um híbrido referencial teórico. Fazendo dialogar a melhor crítica internacional, como o célebre comentário de Peter Heller (1979) e a recepção brasileira de intérpretes como Giacoia (2001), ele extrai o melhor de uma interlocução “teuto-brasileira” como destaca Henry Burnett na orelha do livro e ainda transita por uma série de outros títulos como os da consagrada escola italiana com Fazio (2005) e Fornari (2006). Esta diversidade, aliás, é um dos pontos fortes do livro e corrobora para o seu vigor e atualidade.

O modo como Machado articula a sua investigação é ainda mais peculiar. Muito embora não desenvolva o método da interpretação contextual de Stegmaier3, sua obra gira em torno de apenas um aforismo que ele denomina como “ponto gravitacional”, precisamente o primeiro de HH. Intitulado Química dos conceitos e sentimentos esse aforismo pode ser lido como uma propedêutica não apenas ao primeiro volume de HH, mas a todo o período intermediário da obra de Nietzsche. O aforismo 1, como mostrará Machado a partir de uma série de digressões, condensa um vasto manancial de temas, referências e interlocutores que exigem do leitor um árduo exercício de reconhecimento e decifração, generosamente abrandado pelo autor.

A precisão no delineamento do objeto de análise não se estende, porém, ao método de abordagem. A decisiva questão “como ler Nietzsche?”, adensada pelo menos desde a década de 1990 por intérpretes como P. Wotling (1995), não recebe maior atenção. Na medida em que a análise do aforismo central avança e exige o autor realiza uma série de digressões promovendo mais a identificação dos referencias teóricos e a delimitação do horizonte semântico das questões do que o seu aprofundamento. Com isso, a obra de Machado resulta num mapeamento bastante amplo das temáticas que norteiam HH, especialmente os capítulos iniciais. Diferente de Nietzsche que pelo recurso de entimema retoricamente superestima a erudição de seu leitor desobrigando-se de apresentar as premissas básicas de seus argumentos, Machado parece optar por detalhá-los. Também não há um posicionamento muito claro sobre questões como o uso e o valor do Nachlass e do espólio, a necessidade do estudo de fontes ao qual ele eventualmente recorre, tampouco sobre o objetivo exato das frequentes digressões. Na verdade, ao adotar esses expedientes o autor acaba por legitimá-los sem parecer considerar mais cautelosamente a decisiva relação, com a qual o próprio Nietzsche passa a se ocupar de modo mais radical com o desenvolvimento da escrita aforismática em HH, entre forma e conteúdo. Uma vez que se trata de uma obra que já em seu titulo recobre a investigação de dois autores parece-me particularmente onerosa a ausência de uma reflexão sobre o que pode significar uma “influência” no pensamento de Nietzsche, o filósofo que no prefácio da mesma obra analisada por Machado confessa: “onde não encontrei o que precisava, tive que obtê-lo à força de artifício, de falsificá-lo e criá-lo poeticamente para mim”.

Quem é o Paul Rée de Nietzsche? O autor da Ursprung der moralischen Empfindungen que aparece no mosaico formado pela icônica foto que Machado escolhe para a capa de seu livro ou uma falsificação deste, um “valente confrade fantasma” como Nietzsche designa no mesmo prefácio após declarar explicitamente que os “espíritos livres” não existem, nunca existiram? Em que pese a comodidade da crítica na voz passiva, poderia Machado ter se demorado mais sobre os recursos do escritor Nietzsche, que estiliza mesmo os seus interlocutores mais declarados.

Ainda assim, a comparação que inspira o livro revela-se exitosa e, sobretudo, rara. Nietzsche e Rée: psicólogos e espíritos livres passa a ser um dos poucos estudos, particularmente entre nós, a debruçar-se sobre a subestimada relação entre Nietzsche e Rée. A esteira de intérpretes como Assoum (1982), Machado defende a sua relevância filosófica para além de um mero “evento biográfico” como o consideram, por exemplo, Jaspers (1950) e Halévy (1989) no espectro do rompimento com Wagner. Afinal de contas, lembra o autor, não por acaso no prefácio da Genealogia da Moral Nietzsche menciona o “livrinho” de Rée como o primeiro impulso para divulgar as suas hipóteses sobre a procedência da moral. No limite, como tem argumentado D’Iorio (2014), é a importância do período intermediário de Nietzsche o que se coloca em questão em análises como esta, posto que já em sua designação o seu valor é diminuído e com ele o de seus interlocutores.

Não só por resgatar o valor filosófico da interlocução entre os autores de Humano demasiado Humano e A origem dos sentimentos morais, mas por descer aos bastidores do pensamento de Nietzsche para mostrar como ele articulava os seus experimentos filosóficos, como lidava com os temas e personagens que figuravam no horizonte de suas preocupações, como se aproximava e afastava de determinadas referências o livro de Bruno Martins Machado tem a contribuir para os leitores de Nietzsche e será ocasião para novos e bons debates como aqueles da Vila Rubinacci que ainda hoje povoam o nosso imaginário.

Notas

1 “Não existiu antes de mim nenhum psicólogo”. Cf.: Ecce Homo, Por que sou um destino, 6. Todas as citações das obras de Nietzsche reproduzem a tradução de Paulo César de Souza publicada pela editora Companhia das Letras.

2 Cf.: Crepúsculo dos Ídolos, Incursões de um extemporâneo, 45.

3 Sobre o método da interpretação contextual, cf.: STEGMAIER, Werner. Nietzsches Befreiung der Philosophie: Kontextuelle Interpretation des V. Buchs der “Fröhlichen Wissenschaft”. Berlin/Boston: Walter de Gruyter, 2012.

Referências

ASSOUM, P. L. “Introduction” In. : RÉE, Paul. De l’orige des sentiments moraux. Trad. Michel-François Demet. Paris: PUF, 1982.

D’IORIO, Paolo. Nietzsche na Itália: a viagem que mudou os rumos da filosofia. Trad. Joana Angélica d’Ávila Melo. Rio de Janeiro, Zahar, 2014.

FAZIO, Domenico. Paul Rée: Philosoph, Arzt, Philanthrop. Uberz. Francesca Pedrocchi. München: Martin Meidenbauer, 2005.

FORNARI, M. C. La morale evolutiva del gregge: Nietzsche legge Spencer e Mill. Pisa: Edizioni ETS, 2006.

GIACOIA JR., Oswaldo. Nietzsche como Psicólogo. São Leopoldo: Editora Unisinos, 2001.

HALÉVY, Daniel. Nietzsche: uma biografia. Trad. Roberto C. Lacerda; Waltensir Dutra. Rio de Janeiro: Ed. Campus, 1989.

HELLER, Peter. Von den ersten und letzten Dingen: Studien und Kommentar zu einer Aphorismenreihe von Friedrich Nietzsche. Berlin; New York: Walter de Gruyter, 1972.

JASPERS, Karl. Nietzsche. Trad. Henri Niel. 8ª ed. Paris: Galimard, 1950.

NIETZSCHE, F. Sämtliche Werke. Kritische Studienausgabe (KSA). Hg. G. Colli und M. Montinari. Berlin; New York: Walter de Gruyter; DTV. 1999.

WOTLING, P. Nietzsche et le problème de la civilization. Paris: PUF, 1995.

Ricardo B. Dalla Vecchia – Universidade Federal de Goiás (UFG).

Acessar publicação original

[DR]

 

Itamar Freitas

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