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Nietzsche: além-do-homem e idealidade estética – BARROS (Ph)

BARROS, Roberto. Nietzsche: além-do-homem e idealidade estética. Campinas: Editora Phi, 2016. Resenha de: MACHADO, Bruno Martins. Philósophos, Goiânia, v. 21, n. 2, p.351-359, jul./dez., 2016.

Nietzsche: além-do-homem e idealidade estética, livro escrito pelo professor Roberto de Almeida Pereira de Barros da Universidade Federal do Pará (UFPA), publicado pela Editora Phi em 2016, é resultado de um rigoroso trabalho interpretativo.

Já na apresentação é possível vislumbrar essa situação, pois o professor Ernani Pinheiro Chaves (UFPA) destaca o nível de aprofundamento da pesquisa que o leitor terá em mãos. Ele ressalta que o trabalho de Roberto Barros alçou um desenvolvimento continuado desde as investigações na graduação, passando pelo mestrado, pelo doutorado e chegando ao seu formato atual, balizado por pesquisas recentes conduzidas na UFPA e em importantes centros da Alemanha.

Composto por uma apresentação, uma introdução, quatro capítulos (I- “A perspectiva trágica”; II- “Filosofia, ciência e as novas possibilidades da arte”; III- “A fala poética em Assim falava Zaratustra”; IV- “O além-do-homem enquanto ideal estético”) aos quais se seguem as considerações finais, o livro tem o curso de suas divisões sustentado por duas linhas fundamentais. Elas foram extraídas do modo singular como Nietzsche, valendo-se de uma “compreensão valorativa inerente ao pensar” (p.18), empenhou seu “esforço filosófico” (p.18) para destacar o papel da “arte enquanto manifestação vital e antídoto (Heilmittel) contra o desafio apavorante do existir” (p.19).

A primeira linha gira em torno da concepção e consequências colocadas pelo conceito de além-do-homem. A escolha do conceito justifica-se pela sua centralidade tanto no modo como foi apresentado em Assim falava Zaratustra1, quanto na maneira como tomou forma no desenvolvimento da teoria nietzscheana. Para Roberto Barros, o conceito de além-do-homem exerce a função de “princípio atenuante do peso que a percepção e aceitação dos outros ensinamentos [de Zaratustra] trazem consigo” (p.18). No pensamento nietzscheano, a sua função geraria condições para que a gravidade trágica fosse incorporada à existência como uma perspectiva possível, ou seja, o conceito de além-do-homem abriria a possibilidade para que o peso da condição de verdade do conhecimento fosse transformando em um saber sobre a vida, abrindo as portas para uma “alegre ciência” (p.18).

Tais contornos proviriam de um continuado processo de maturação de pensamentos já expostos em O nascimento.da tragédia2. Nesse sentido, emblemáticas são as noções de dionisíaco, arte, tragédia, inspiração, verdade, conhecimento, função da história, vida, ciência. Concebendo, assim, uma espécie de dinamismo conceitual, é possível visualizar os traços que fomentam a segunda linha. Os aspectos extraídos da concepção de arte trágica defendida por Nietzsche em O nascimento seriam ressignificados em Humano, demasiado humano3, chegariam ao ápice em Zaratustra. Livro, este último, em que a arte se liga tanto à composição conceitual, quanto ao formato da obra, resultando em características específicas que lançam a filosofia nietzscheana para além da concepção de neutralidade do conhecimento típica dos modernos. A consequência extraída desse movimento aponta para o fato de que alguns problemas atribuídos à filosofia de Nietzsche, a exemplo de uma suposta falta de coerência lógico e semântica, poderiam ser resolvidos caso se observasse como a arte adquiriu uma posição de destaque no pensamento nietzscheano de maturidade.

Após esse primeiro panorama, proposto a partir das duas linhas citadas acima, é possível enunciar a ligação dos conceitos e das obras de acordo como foi apresentada pelo próprio Roberto Barros, certamente como umas das hipóteses centrais de seu livro: “ que se pressuponha o fato de que o anúncio do ensinamento do além-do-homem no prólogo de Assim falava Zaratustra e antecedendo o pensamento do eterno retorno, possa ser compreendido segundo os princípios utilizados por Nietzsche em seu primeiro livro para descrever os aspectos formadores da tragédia. Desse modo, o além-do-homem poderia ser entendido como ensinamento preparatório ao anúncio da visão dionisíaca do mundo implícita no ensinamento do eterno retorno. Isso pressuposto, o ensinamento do além-do-homem pode ser retomado como a bela imagem apolínea, posta previamente como forma de consolo e meio de suportar o pensamento dionisíaco do eterno retorno do mesmo” (p.136).

Passando a uma apresentação mais direta dos capítulos do livro, no primeiro, “A perspectiva trágica”, o autor evidencia que, ao escrever O nascimento, Nietzsche manteve em seu horizonte a intenção de expor aos seus contemporâneos uma “nova compreensão do verdadeiro conteúdo do sofrimento e da arte trágica dos gregos” (p.36). Seu propósito de mostrar que a compreensão da existência, com todas as suas possíveis desventuras e sofrimentos, poderia ser transfigurada em um “caráter estético afirmativo” (p.36), consistiria no sentido mais proeminente da arte trágica grega. Mas tal leitura só poderia ser efetivada desde que se olhasse para a proveniência dessa construção artística. O resultado foi a concepção da relação entre Apolo e Dionísio.

A interpretação dada por Roberto Barros para a leitura nietzscheana dos impulsos apolíneos e dionisíacos estrutura- se sobre uma percepção singular que servirá de lastro para os outros capítulos. Barros insere Nietzsche em uma tradição interpretativa que busca entender a arte grega “a partir de uma ‘interpretação’ naturalista” (p. 27). Um movimento que tem como representantes Winckelmann, Lessing, Herder, Goethe, Schiller e Hölderlin. Em todos eles, seria possível observar a tendência de “identificar uma forma natural de manifestação artística” (p.28). Considerando este aspecto, é possível entender um outro elemento que aumentaria a distância entre Nietzsche e os filólogos de sua época. Enquanto os últimos buscavam interpretar a arte grega como “uma mera forma de expressão artística” (p.32), Nietzsche considerava a arte grega como “manifestação dos impulsos artísticos naturais, procedentes da vontade, que, atuam no sentido de criar modos estéticos de representação do mundo, enquanto forma de justificação do sofrimento inerente à existência” (p.32).

Barros assinala que O nascimento atacou um problema não só dos filólogos, mas também de toda cultura de uma época: o massivo distanciamento da arte em relação aos problemas da existência. Tal diagnóstico, gerado pela excessiva “racionalização e moralização do sentido original da arte” (p. 44) decorreria, de acordo com Nietzsche, do desprezo pelas forças dionisíacas.

O dionisíaco seria um “impulso natural relacionado à inconsciência, ao esquecimento de si, à embriaguez e ao orgiástico” (p.41). Uma força oposta à apolínea que, por sua vez, destaca-se pelo transbordamento de consciência, edificando- se sobre o princípio de individuação. Nesses termos é importante identificar a base sobre a qual Roberto Barros identifica a elaboração de O nascimento: o livro seria a análise da tragédia a partir da “manifestação natural dos instintos, responsáveis por estados fisiopsicológicos, que atuam na superação da percepção direta da verdade da existência” (p.45). Também o ocaso da tragédia é lido por Barros como produto desmedido de um agente natural: o socratismo estético. Este empurra o homem para busca por clareza e moderação (aspirações apolíneas) através do emprego da racionalidade. Apropriando-se de todas as formas de conhecimento, através de uma suposta ideia de verdade, o socratismo torna-se a força hegemônica, destitui o dionisíaco. No lugar do desmedido, do insconsciente é instaurada a tirania da ciência com seus pressupostos de verdade alcançados a partir dos saberes conscientes. Ainda no primeiro capítulo, verifica-se o propósito do autor em mostrar conteúdos que denotam como as análises de Nietzsche já se erguiam sobre especulações extraídas da “relação entre saber e vida” (p.64).

No segundo capítulo, Barros passa pelas obras intermediárias de Nietzsche, seu foco é mostrar que a noção de arte adotada por Nietzsche em O nascimento sofreu um grande ajuste. Roberto indica a mudança como prenúncio à ideia da transvaloração dos valores, como se a nova mirada filosófica fomentasse uma nova concepção de arte. Tal mudança se iniciaria a partir de Humano, quando Nietzsche toma Wagner e Schopenhauer como inimigos declarados, pois eles representariam os “efeitos da percepção dos perigos da hegemonia da metafísica e da religião cristã oposta ao dionisíaco” (p. 67). Nesse capítulo, o dionisíaco é apontado como: (i) modo de Nietzsche avançar contra as categorias de valor da tradição metafísica e cristã e (ii) forma de embelezamento artístico do viver. Desse modo, Roberto pretende mostrar que o dinonisíaco não sucumbe no chamado período intermediário da filosofia nietzscheana. Pelo contrário, ele persiste, passando por uma reconfiguração que se apoiaria na ressignificação da noção de arte, efetivada sobre uma também nova mirada da concepção de ciência.

Os capítulos terceiro e quarto articulam uma leitura em conjunto do pensamento de Nietzsche, não como um corpo sistemático, mas como um agrupamento de construções conceituais fluidas, que transmutam através da obra, e ressignificam em virtude da busca de uma forma possível de afirmar e elevar a vida.

Fundamental nesse percurso é a forma como Barros explora as noções de eterno retorno do mesmo, grande saúde, morte de deus, transvaloração dos valores, além-do-homem, dionisíaco e arte. O eterno retorno do mesmo, o pensamento mais abissal de Zaratustra, já é anunciado desde A gaia ciência, em último grau, o pensamento do eterno retorno manifesta “uma pluralidade de contextualizações possíveis, que se desdobram em pretensões científicas, morais estéticas, cosmológicas” (p.103). Também denota uma experiência própria ao âmbito individual que se traduz psicofisiologicamente como afirmação ou negação da existência.

Frente ao eterno retorno, a grande saúde se mostra como “a capacidade de suportar os perigos e sofrimentos” (p.111) que a existência coloca ao homem e, mais ainda, o desejo de enfrentar tais condições para poder conseguir criar algo afirmativo. A morte de deus pode ser descrita como a face do niilismo que liberta o homem de seu apequenamento na moral, ela impulsiona o indivíduo para uma busca por superação. Esse o faz desde que consiga transvalorar os valores. Justamente aqui incide o alcance do conceito de além-do-homem, este é o símbolo da necessidade humana de superar a si mesmo, o termo estético com o qual o “ensinamento do eterno retorno pode ser interpretado a partir de sua significação afirmativa para a existência humana” (p.114). Sob tal configuração, o dionisíaco emerge como indicativo da crise dos fundamentos da tradição filosófico-científica e da religião – “ele é o ato decisivo de retorno da humanidade a si própria e que no autor faz carne e gênio” (p.114). A arte liga-se ao dionisíaco através da “postura heróica” (p.180) com a qual o homem entende a existência em sua tragicidade, empurrando-o em uma viagem épica movida pelo “desejo de conhecer com suas representações interpretativas” (p.180) as possíveis, novas e positivas valorizações da vida e da existência (cf. 180).

Destaca-se também a centralidade da tese sobre o renascimento do pensamento trágico na obra de Nietzsche.

Barros mostra como tal concepção ganha importantes traços a partir de A gaia ciência, a tragicidade inunda a filosofia com o ímpeto dionisíaco. Ela se traduz na aceitação incondicional da vida que é levada por Nietzsche a sua mais alta expressão através da escrita de Assim falava Zaratustra.

Uma obra onde o filósofo reconcilia seu pensamento com a natureza, a vida, o conhecimento, a arte e a afirmação de si.

O livro escrito por Roberto Barros é um trabalho robusto, no texto, obras e conceitos são articulados com coerência e originalidade mostrando um duplo caráter do pensamento nietzscheano – seu lado crítico e seu lado afirmativo.

Tudo isso realizado através de um claro fio condutor mantido do início ao fim da obra, a saber, a noção de além-do-homem. Enquanto trabalho interpretativo, restanos reafirmar o elogio escrito por Oswaldo Giacoia Júnior, para quem “o livro de Roberto A. P. Barros é um excelente guia de viagem para um fascinante percurso pela obra de um dos espíritos mais vigorosos de nossa tradição, tanto no rebelde ímpeto crítico-destrutivo quanto na extraordinária potência de criação e beleza”.

Notas

1 Doravante Zaratustra

2 Doravante O nascimento.

3 Doravante Humano.

Referências

BARROS, Roberto de A. P. Nietzsche: além-do-homem e idealidade estética.Campinas: Editora Phi, 2016, pp.198.

Bruno Martins Machado – Professor Adjunto do Departamento de Filosofia da Universidade Federal de Sergipe (UFS), Aracaju, SE, Brasil. E-mail: br.ma.machado@gmail.com

Acessar publicação original

Itamar Freitas

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