Uma introdução à história da Historiografia brasileira 1870-1970 / Thiago Nicodemo, Pedro Santos e Mateus de Faria
Thiago Lima Nicodemo / Foto: Jornal da Unicamp /
O título é chamativo: Uma introdução à história da historiografia brasileira (1870-1970). O texto oscila entre o inventário das concepções de historiador ideal e a transmutação do objeto “historiografia” ou “história da historiografia”, na duração de um século: de reflexão dispersa em necrológios e artigos de jornal à disciplina curricular da formação universitária em História.
Thiago Lima Nicodemo (Unicamp), Pedro Afonso Cristovão dos Santos (UNILA) e Mateus Henrique de Faria Pereira (UFOP), os autores, são jovens pesquisadores da área de Teoria e História da Historiografia. Tentaram se livrar da história da historiografia brasileira como inventário de homens e livros em ordem cronológica, mas enfrentaram dificuldades comuns entre os que, em grupo, querem conciliar pensamentos e práticas historiográficas díspares na exposição de um discurso sobre a matéria.
A primeira delas está na tentativa meritória, mas infrutífera (neste caso), de combater o narcisismo implícito na autoria individual, diluindo os interesses dos falantes por meio de capítulos não autógrafos.
A segunda dificuldade está na recusa de estabelecer modelo (ou um novo modelo) de interpretação para a experiência desse domínio (no nosso presente, a historiografia ou história da historiografia – “subdisciplina” de uma Ciência da História e de um Curso de Graduação em História). Essa dificuldade é a patente indefinição (ou fluidez de significado) das categorias mais usadas no livro – “disciplina”, “profissional”, “instituição” e “concepção moderna de história”. É também patente no uso irrefletido de categorias que pululam, aqui e ali, para reforçar o significado das primeiras: “geração”, “ethos” e “objetividade”.
A terceira dificuldade está na tentativa de demonstrar uma tese sobre a história da historiografia brasileira sem que as monografias respectivas estivessem disponíveis.
A quarta dificuldade, por fim, não é privilégio dos autores. Trata-se de um vício formativo de importar de teses frágeis e contraditórias, produzidas por historiadores europeus que defendiam a primazia dos seus respectivos países (ou nações) na difusão de modelos de escrita da história para o mundo, a exemplo das que se seguem: a ciência da História ganha autonomia (e torna-se moderna) quando os historiadores reproduzem seus fazeres no ensino pós-secundário (em escolas normais, faculdades ou universidades); quando se submetem aos problemas e estratégias interpretativas empregadas pelas Ciências Sociais, quando se apropriam desses problemas e estratégias ou com elas estabelecem alianças, sejam culturalistas – a la F. Boas, sejam positivistas – a la H. Spencer; quando abandonam a função teleológica (de universalizar o ser humano ou de construir a nação); quando assumem o ethos da objetividade científica (exclusão do Eu ou intersubjetividade no interior do próprio domínio); enfim, quando se torna mais alemã (com J. Droysen ou L. Ranke?), mais francesa (com Bloch ou Comte?), mais inglesa (com H. Buckle ou R. Southey?) ou mais italiana (com B. Crocce ou C. Cantú?).
No primeiro capítulo, são examinadas as frequências de uso da palavra historiografia nos últimos três séculos. A ideia é boa. A execução é limitada porque a fonte – o Google Ngram Viewe – não armazena obras em português. Por essa razão, os autores concluem, dedutivamente: a instauração de um moderno conceito de história (historiografia), fenômeno global, é também fenômeno brasileiro. E concluem com uma afirmação corajosa, por ser herética (à qual endosso): o “pensamento histórico no Brasil não cumpre um papel passivo na irradiação tardia do modelo alemão”.
Mas há um senão no caminho que é o fato de ancorar essa tese na mutação do conceito de história, difundida por R. Koselleck. Para enxergar algo novo no pensamento dos brasileiros sobre a historiografia, seria um bom exercício usar a mudança narrada por Koselleck como tipo e não como acontecimento histórico. Faria justiça, por exemplo, aos citados textos de Valdei Lopes e de Temístocles César, que flagraram a autorreflexão dos historiadores no período anterior a 1870.
No segundo capítulo, os autores tratam das “figurações da historiografia” na passagem Império/República, o que implica dizer que eles percebem uma mudança de ênfase: da disciplinarização à profissionalização. E iniciam bem, ao assumirem o risco da aplicação de modelos (ou “formas de produção do conhecimento”). A execução é prejudicada, em parte, pela ausência de trabalhos monográficos, que os autores tentam remediar. Eles empregam a tese de M. M. Ferreira que põe “professores de história” de um lado e “historiadores” de outro. A tipologia de M. Ferreira se choca com aquela adotada adiante no livro. Eles associam a primeira forma de produção ao Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB) e a segunda, à Universidade, deixando no ar certa confusão entre os professores do IHGB e os historiadores da Universidade. Considerando que os autores não descrevem os elementos que estruturam os modelos, fui induzido a caracterizar os membros do IHGB como ocupados com a “identidade nacional” e os membros da Universidade como preocupados com a docência.
A contraprova, porém, dá negativo: os membros do IHGB não se ocuparam somente (e nem predominantemente) da identidade nacional (que o diga o próprio Capistrano). Além disso, a maior parte dos citados do grêmio atuava na docência do ensino secundário. Com a identificação do modo de produção da Universidade, ocorre o mesmo curto-circuito: seus membros estiveram longe de desprezar o tema da nacionalidade (o que vale para o S. B. Holanda) e não é impreciso dizer que manifestassem grande ressentimento por estarem trabalhando em uma instituição cujo fim precípuo era a formação de professores de História (e não de “historiadores”). Talvez o ruído provocado pela tipologia de Ferreira pudesse ganhar o status de tese, nessa passagem do livro.
Mas foquemos na tese da disciplinarização, expressão que, no livro, é grafada como sinônimo de cientificização e de modernização da História. Os autores veem, indistintamente, disciplinarização nos que escrevem história (S. Romero, J. Ribeiro, T. Barreto, O. Lima, E. Cunha, J. Silva, J. F. Lisboa, E. Prado, M. Bomfim, J. Nabuco) e nos que historiam a escrita da história (C. Abreu, F. Freire, A. Bezerra, J. Veríssimo e, novamente, S. Romero). Mas apresentam riquíssimo painel que inclui: Romero, dominantemente francófilo, Ribeiro, germanófilo e Bomfim, anti-europeu.
Infelizmente, voltam-se para Capistrano, reforçando as teses estabelecidas por outras histórias de síntese (introduções) da historiografia brasileira. Desconfio dessa unanimidade que recai sobre Abreu. É pouco provável que um autor se mantenha por mais de 70 anos como o ponto de mutação em tão divergentes modelos como os de J. H. Rodrigues, A. Wheling, C. G. Motta e J. Arruda. Algo estranho está a ocorrer: estamos descobrindo novos textos de Abreu de dez em dez anos, há simpatia generalizada com o trabalho do personagem ou os modelos de interpretação da história da historiografia brasileira não são efetivamente modelos (no plural)?
O capítulo seguinte apresenta maior contribuição ao cumprimento dos objetivos do livro. Considero virtuosa a atitude de os autores reconhecerem a dificuldade de classificar Abreu e Holanda em “tradições historiográficas nacionais”, dada a complexidade e a riqueza de interesses e de questões manifestos em sua crítica historiográfica. Essa qualidade se estende aos rápidos ensaios de comparação triangular e em camadas, acerca dos “ideais de historiador”, de Abreu sobre Vanhagen e de Holanda sobre Abreu. O historiador ideal – o “historiador moderno” – seria aquele que articula “empiria” à “teoria” para escrever história, que admite e segue a divisão técnica do trabalho (produtores de monografias/ produtores de sínteses) e que considera fundamental a discussão sobre objetividade/subjetividade. Os autores só exageram no tom, quando tentam contextualizar e/ou generalizar: “A disciplina histórica passava por um processo de especialização em escala global, com a sedimentação de correntes como a ‘escola’ dos Annales na França” (pos.1512).[2]
No penúltimo capítulo, os autores desejam entender “como se deve escrever e ensinar a história no Brasil”, no momento imediatamente posterior à criação das universidades. Escorregam aqui e ali em uma generalização equívoca e pouco clara. Para tipificar a história em textos de Fidelino de Figueiredo, os autores referem-se a uma “concepção oitocentista de história”. Mas Figueiredo estava a comungar de pressupostos idênticos aos elogiados pressupostos de Abreu e Holanda.
No mesmo capítulo, os autores relembram o “fio condutor” do livro: “o amadurecimento de uma certa ideia/conceito sobre o fazer histórico acadêmico […] perceber as “variações semânticas do termo história/historiografia e a evolução de seus usos” (pos.1715). Mas não cumprem o prometido com relação ao Manual bibliográfico de estudos brasileiros à Revista de História (USP). Eles põem aspas no “modernismo” de Pedro Moacyr Campos e na historiografia “moderna” de Canabrava que, não necessariamente significam coisas reforçadoras das suas teses.
Ao final desse mesmo capítulo, os autores fazem gol a favor e gol contra. Primeiro o gol contra: se a “principal função da universidade…não era formar pesquisadores, mas sim professores de história e de geografia” (pos.1936), por que insistir em situar a universidade em suas duas primeiras décadas como locus de história/historiografia? Como gol a favor, e em relação à Universidade, destaco a ponderada avaliação de que a percepção da memória uspiana, construída como herança dos Annales, deve reconhecer sua dívida com Alfredo Ellis Júnior e Afonso de Taunay.
No quinto e último capítulo, focado na década de 1960, os acertos são numerosos. Novamente, percebemos a rápida análise de camadas de compreensão sobre o ideal “história nova do Brasil novo” professado por Rodrigues, contrastado à sua análise sobre o ideal de historiador em textos de Abreu, G. Freyre e em Holanda. Os autores redescobrem o manual de Teoria da História, de Roberto Piragibe da Fonseca (grande feito), e extraem daí os significados de historiografia, consertando o erro cometido em relação aos manuais de J. Glénisson e J. Besselaar, que não foram avaliados neste quesito.
Outro tento dos autores foi a percepção de Rodrigues como uma pessoa preocupada “em constituir um campo de reflexão sobre a própria escrita da história” (pos.24-61). Esta é a mais qualificada percepção, segundo a hipótese defendida pelos autores acerca da universidade como lócus estimulador do campo. Contudo, a atitude de Rodrigues é, exatamente, a demonstração da falta de predisposição do establishment universitário de História. Todos sabemos que ele reclamou até o fim da vida por não ter tido acesso à uma cadeira universitária em seu tempo de maior vigor produtivo, já que o sistema de cátedras impedia a renovação docente.
Como afirmei no início, Uma introdução à história da historiografia Brasileira peca pela ousadia de tentar diluir a autoria. E o custo é alto. Claro que é possível enxergar o “fio condutor” do livro (pos.17-15). Mas a execução é prejudicada pela timidez em adotar um modelo interpretativo. Eles oscilam entre análises internalistas, apoiam a causação em contextos econômico-políticos e sofrem com a ausência de monografias sobre boa parte dos indícios que lançaram mão para demonstrar a tese.
Se o objeto “historiografia” é construído a partir de situações comunicativas bastante diferenciadas (balanços publicados em jornal, manuais de metodologia do ensino superior, obras de síntese, anais de congressos especializados, currículos de cursos de licenciatura em história), com sequências interrompidas e assíncronas, não há como localizar precisamente o “início” do “movimento reflexivo” em torno da historiografia no “imediato pós-Segunda Guerra”, tampouco mencionar o ganho de “contornos e forças adicionais” nos anos 1980.
Se a conclusão é a de que a historiografia e a história da historiografia passaram a ser “entendidas como parte da formação teórica dos estudantes” (??) [capítulo 5/tópico 3.3 tempos de consolidação/3º.parágrafo], grande parte do exame efetuado em fontes externas aos currículos prescritos e editados (programas de curso, manuais, memória de aula, debates em torno da formação universitária etc.) perde sentido, devendo apenas ser empregada como prova da ausência do entendimento expresso pela tese.
Encerro esta resenha parafraseando Maria Odila Leite da Silva Dias, com a mesma citação que finaliza o texto de Uma introdução à história da historiografia brasileira: “É difícil pensar em fazer síntese [da historiografia] quando ainda desconhecemos grande parte da história [da historiografia] do Brasil” (pos.3411).
Notas
[1] NICODEMO, Thiago Lima; SANTOS, Pedro Afonso Cristovão dos; PEREIRA, Mateus Henrique de Faria. Uma introdução à história da historiografia brasileira (1870-1970). Rio de Janeiro: FGV, 2018.
[2] A partir deste ponto, todas as referências à obra, notadas como “pos.”, devem ser lidas como “posição”, que é a notação típica dos e-books.
Referências
NICODEMO, Thiago Lima; SANTOS, Pedro Afonso Cristovão dos; PEREIRA, Mateus Henrique de Faria. Uma introdução à história da Historiografia brasileira (1870-1970). Rio de Janeiro: FGV Editora, 2010. (E-book).
Itamar Freitas – Professor do Departamento de Educação Universidade Federal de Sergipe e do Mestrado Profissional em Ensino de História (Profhistória)/UFS. E-mail: itamarfreitasufs@gmail.com.
NICODEMO, Thiago Lima; SANTOS, Pedro Afonso Cristovão dos; PEREIRA, Mateus Henrique de Faria. Uma introdução à história da Historiografia brasileira (1870-1970).[1] Rio de Janeiro: FGV Editora, 2010. (E-book). Resenha de: FREITAS, Itamar. Ponta de Lança – Revista Eletrônica de História, Memória & Cultura. São Cristóvão, v.14, n.27, 2020. Acessar publicação original
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