“O segredo não é somente o estado de uma coisa que escapa ou se revela em um saber. Ele designa um jogo entre atores. Ele circunscreve o terreno de relações estratégicas entre quem o procura e quem o esconde, ou entre quem suspostamente o conhece e quem supostamente o ignora (o “vulgar”).”
Michel de Certeau
Glauber Rocha, em citação no livro Impressões de Viagens, de Heloísa Buarque de Hollanda, argumenta que as produções artísticas de Ney Matogrosso, Gal Costa e Dias Gomes em 1970, não passavam de “texto da decadência da colônia do Rio de Janeiro”2, por conta do apelo ao espetáculo midiático e a performance erótica para dialogar com o público. O cineasta é incisivo na diminuição da relevância desses personagens históricos para a circularidade e reflexão do cenário político da época. No entanto, a fala direta e agressiva do diretor não perpassa apenas ao seu nicho individual de concepção estética, o referido pronunciamento dialoga ao menos com duas memórias históricas3; o conceito de Indústria Cultural da escola de Frankfurt e uma determinada historiografia da música brasileira, que valoriza os compositores – escrita – e desvaloriza a importância dos performers na vida política da segunda metade da década 70; interpretação que ajudou na consolidação do imaginário de “vazio cultural”.
Diante disso, como perceber, tensionar e refutar uma memória histórica? Levando em conta que para disseminá-la é necessário longo período de naturalização do discurso. Robson Pereira da Silva, no livro Ney Matogrosso… para além do bustiê: performances da contraviolência na obra Bandido (1976 – 1977), nos ajuda com essa questão ao discutir a obra Bandido, de Ney Matogrosso. O autor parte de outra via metodológica e teórica, diferente da perspectiva de Glauber Rocha e Heloísa Buarque de Hollanda. Ao invés de observar Ney Matogrosso à luz do conceito de Indústria Cultural e memória do vencedor; o autor, de início, analisa a obra e a recepção, para depois interpretar e testar o que havia de coerente entre produção do artista e teoria.
Ney Matogrosso, para os historiadores que se atentam mais ao documento escrito do que ao documento imagético e performático, é proferido enquanto agente secundário, por ser apenas intérprete dos “verdadeiros” intelectuais; os compositores. No âmago, percebemos uma hierarquização entre escrita e performance, dando a entender que a performance ou a atividade contracultural seria apenas prática fútil e pequeno-burguês, ausente de discussão rígida sobre política. A hierarquização entre compositores e performers ainda ocorre porque faltam aos historiadores a sensibilidade e a compreensão de outras linguagens. Quando o historiador interpreta apenas a linguagem escrita, deixa de perceber as vicissitudes elaboradas pela linguagem artística e performática, como no caso de Ney Matogrosso.
Por essas e outras que a análise da linguagem artística é basilar para o exercício metodológico que tenha o ímpeto de compreender as tensões entre obra e recepção e, com isso, o desenredamento da memória histórica; nesse caso, a perpetuação de um suposto “vazio cultural” durante a década de 1970, conceito que não se sustenta quando Silva volta ao processo e aos esgarçamentos políticos e sociais causados pela obra Bandido.
Em outras palavras, Silva disserta a forma que o artista, com a sua personagem fronteiriça bandido/cigano, desestabilizava a norma conservadora da Ditadura Militar, no qual pregava a ordem social tradicional e o avanço da modernização técnica. O ponto sine qua non do projeto era a manutenção das desigualdades de distribuição de terra pela via da ordem e o avanço do capital estrangeiro pela disseminação da vida moderna. Uma correlação de forças que tensionava entre o tradicional e o moderno.
E, do ponto de vista da organização política e social, o corpo exercia posicionamento central de simbolização do projeto em curso. Ao observar alguns pontos do governo de Emílio Garrastazu Médici (1969 – 1974) e a sua conduta repressora e violenta, percebe-se a importância da naturalização do corpo rígido e truculento para a manutenção e perpetuação do regime Militar. Raimundo Pereira de Melo, no programa Conversa com Bial4, comenta sobre a sua experiência enquanto ex-combatente da guerrilha do Araguaia (1969 – 1974) e as torturas que sofria pelos militares como sendo um suposto “treinamento” de enrijecimento do corpo e resistência à presença do inimigo. Porém, Melo não abre brechas para outras interpretações e argumenta que a prática de deixar o corpo nu e crucificado em meio à floresta em cima de formigueiros; colocar o soldado dentro de um tambor e deixá-lo rolar morro abaixo; acorrentar os pés e as mãos e espancar com cipó, não era treinamento, mas tortura trajada de ritos de metamorfização5 do humano ao corpo duro e violento.
Em narrativa similar, mas não de mesma equivalência de poder político, Michéas Gomes de Almeida (Zezinho do Araguaia), no programa Caminhos da Reportagem da Tv Brasil6, narra sobre a sua experiência na China em treinamento para a guerrilha do Araguaia. Ao chegar à China, argumenta que clamavam por dureza corporal, no entanto, Almeida diz que não via diferença, pois a dureza corporal “era uma coisa muito da natural” [sic]. Para Almeida, a prática de enrijecimento do corpo já estava no seu círculo cultural.
Neste sentido, Ney Matogrosso, entrelaçado nessa urdidura simbólica, começava a produzir performances que desestabilizavam os imaginários ao expor o corpo fronteiriço entre marginal e cigano. O artista, pela encenação corpórea, deslocava os significantes, por exemplo, ‘corpo’, e preenchia com diferentes sentidos e sensibilidades, ação estética que tecia outra linguagem de comunicação com o público. A performance, o canto, o corpo e todo o aparato cenográfico cumpriam o papel de violentar e contrapor a “norma” que, pela fala e o comportamento, marginalizavam corpos “anormais”. A metamorfose não era do humano ao bruto, mas do humano ao fronteiriço.
Enquanto a memória do vencedor e o regime Militar projetavam a performance de Ney Matogrosso como prática menor por estar ligada ao corpóreo e ao afetivo; o artista, com a sua sensibilidade e criatividade, agia nas fissuras da planificação da norma social, “entre os detritos da racionalidade e os refugos da moralidade”7, e é por meio desse corpo performático e desviante que Robson Pereira da Silva analisa e interpreta a obra Bandido.
O corpo de Ney Matogrosso provocava reverberações “anormais” na estrutura moral do regime Militar e, assim como Helena no livro homônimo, de Machado de Assis, mostrava ao pensamento senhorial8 que havia vidas para além do seu ego e da sua concepção de mundo. Para o pensamento senhorial, segundo Machado de Assis, só há duas maneiras de conceber a existência; pela via do senhor, localizada na “independência absoluta” ou, pela visão do não-branco, na “escravidão moral”. O senhor manda e o outro obedece, o primeiro é servido e o outro o serve até a exaustão; urdidura que impossibilita o exercício da alteridade, pois associa a felicidade do outro enquanto extensão do seu ego.
Deste ponto, Silva interpreta a matiz simbólica do corpo marginal de Ney Matogrosso e as suas diferentes maneiras de conceber e interagir no mundo, afetos que, de um jeito ou de outro, simbolizaram sentimento de liberdade aos detentos da penitenciária Lemos de Brito, no Rio de Janeiro. O convite ao artista surgiu de uma enquete de dois mil presos para o encerramento do festival musical organizado pelos próprios detentos, pois viram em Ney Matogrosso grande representatividade. O artista adorou o convite, uma vez que, a oportunidade era ideal para estrear o seu espetáculo e alinhar a obra “Bandido com os bandidos”9 [sic].
Os historiadores, ao invés de negarem a importância da performance para o debate social, precisam compreendê-la no seu âmago. O exercício metodológico é importante para romper com as naturalizações que supervalorizam o texto escrito e desprezam as outras linguagens, sendo que as mesmas têm importantes contribuições para a transformação e compreensão da sociedade. A partir disso, Silva analisa as vicissitudes da obra de Ney Matogrosso pela via da recepção, produção, performance e todo o universo simbólico que possibilitou a criação da obra final, articulação central de inteligibilidade dos estratos do tempo, dado que o tempo histórico não se organiza pelos arquétipos criados pela historiografia, mas tecido na circularidade entre obra e público.
E, precisamos levar em conta que ao propor a leitura de Ney Matogrosso a partir da performance e não apenas pela linguagem escrita, o autor dialoga com uma perspectiva teórica que elabora a crítica ao pensamento ocidental e a supervalorização da escrita, do sentido, por exemplo, os esforços intelectuais de Hans Ulrich Gumbrecht. No livro Produção de Presença: o que o sentido não consegue transmitir, o autor diz.
Assim como, na teologia do protestantismo, a substância do corpo de Cristo e a substância do sangue de Cristo iam sendo substituídas pelo corpo e pelo sangue como sentido, no teatro a atenção dos espectadores passava dos corpos dos atores para os personagens que eles incorporavam. Aquilo que viemos a chamar “personagem” – pense-se no Hamlet, de Shakespeare, ou na Fedra, de Racine – é um conceito complexo (normalmente, um conceito que descreve um pensamento complexo). Como conceito específico, como sentido complexo, da personagem revela-se progressivamente, junto com as outras personagens, na intriga da peça. O teatro moderno ainda desenvolve a intriga pela interação dos corpos e das vozes dos atores no palco. Mas agora há uma cortina, inovação da cenografia do início da modernidade, que separa o espaço da intriga e o espaço dos espectadores. Assim, os corpos dos atores foram afastados (em teoria, pelo menos) do alcance dos espectadores. Em outras palavras, no início da modernidade, quando começa a ser decifrado o sentido que está em jogo, tudo que é tangível, tudo que. pertence à materialidade do significante torna-se secundário e de fato é afastado do palco da significação.10
O exercício teórico de Gumbrecht perpassa pela compreensão dos artifícios linguísticos gerados na modernidade para o efeito de separação entre sentido e presença, palavra e coisa. Diante do saber moderno, o valor das coisas estaria no seu sentido, a matéria seria apenas substância secundária e externa. Quando Silva analisa Ney Matogrosso pela óptica da performance, ele retoma um longo debate nas artes e a sua disputa de narrativa entre texto e cena e, ao analisar pelo campo da performance, problematiza a narrativa hegemônica do texto e a naturalização da memória histórica de “vazio cultural”.
A memória do vencedor, ao se transformar em narrativa, anula a presença do outro, planifica o tempo e rompe com as contradições, como Michel de Certeau aponta no livro A Escrita da História. Produzir uma narrativa que escute o outro ao invés de dizer o que é o outro, como a historiografia da música brasileira interpretou Ney Matogrosso, ajuda o historiador a elaborar uma escrita que tenha relação com a vida, e não com o significante vazio que é preenchido pela memória histórica, destituído de cuidado de escuta. Transformar a escrita sobre o outro é também uma maneira de transformar a nossa própria sociedade.
Notas
2 SILVA, Robson Pereira da. Ney Matogrosso… para além do bustiê: performances da contraviolência na obra Bandido (1976-1977). – 1. ed. – Curitiba: Appris, 2020, p. 62.
3 Para o autor, memória histórica ou memória do vencedor seria toda a narrativa que ditasse os caminhos interpretativos de um tempo. No livro em específico, o autor percebe como a historiografia da música brasileira foi organizada a partir de linhas de sucessão, passando de João Gilberto com a Bossa Nova até Caetano Veloso com o Tropicalismo, percepção interpretativa que colocou os outros agentes históricos em segundo plano, apenas como sucessores da história iniciada por Caetano. Ao longo da pesquisa o autor refuta a interpretação, pois percebe em Ney Matogrosso um artista autônomo e, não, alguém que estivesse apenas sendo “influenciado” pelo “precursor”. Silva parte de Carlos Alberto Vesentini e a obra A Teia do Fato para dar sustentação teórica ao debate.
4 Conversa com Bial. 2018. 1 vídeo (5 min). Publicado pelo canal Afonso Lima Batista. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=FQj49fOCwu8. Acessado em: 05 jun. 2020.
5 Metamorfização é a ação que ocorre nas rochas quando submetidas à grandes temperaturas, efeito que altera a sua textura, composição, densidade etc.
6 Caminhos da Reportagem, Guerrilha do Araguaia. 2010. 1 vídeo (8 min). Publicado pelo canal Tv Brasil. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=8yIQSK91cMo Acessado em 03 jun. 2020.
7 CERTEAU, Michel de. História e psicanálise: entre ciência e ficção. Belo Horizonte: Autêntica, 2016, p. 103.
8 Pensamento senhorial é um conceito cunhado por Ilmar Rohloff de Mattos no livro O Tempo Saquarema: A formação do Estado Imperial. O conceito tem como finalidade pensar o Estado Imperial durante o Segundo Reinado à luz do grupo Saquarema. No entanto, o autor contrariou a historiografia clássica da trindade saquarema composta pelo partido conservador. O autor observou como o grupo, para se perpetuar no poder, utilizou-se de mecanismos de produções de conhecimento para a disseminação do imaginário conservador, prática que “naturalizou” uma concepção de mundo onde a sociedade era regida pelos senhores e obedecida pelos não-brancos. Para saber mais sobre o conceito na obra de Machado de Assis, ver: CHALHOUB, Sidney. Machado de Assis, historiador. São Paulo: ed. Companhia das Letras, 2003.
9 “Estreei o show lá, mas, fui por que eles me chamaram. Foi feito um questionário para ver quem os presos gostariam que fosse, pois, era um festival de música da penitenciária, e fizeram uma enquete lá dentro de que artistas eles gostariam que fosse convidado para estar lá, escolheram a mim. Eu fui com muito prazer, aquilo para mim era correspondente. O encontro do “bandido com os bandidos”. Foi uma relação tranquila ao contrário do que a Veja ridícula publicou.” MATOGROSSO apud SILVA., Op. Cit., p. 129.
10 GUMBRECHT, Hans Ulrich. Produção de presença: o que o sentido não consegue transmitir; tradução Ana Isabel Soares. – Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC-Rio, 2010, p. 53.
Resenhista
Felipe Biguinatti Carias – Graduação em História pela Universidade Federal de Mato Grosso. Mestrado em História pela Universidade Federal de Mato Grosso. Doutorando em História pela Universidade Federal de Mato Grosso. E-mail: felip.ufmt2@gmail.com
Referências desta Resenha
SILVA, Robson Pereira da. Ney Matogrosso… para além do bustiê: performances da contraviolência na obra Bandido (1976-1977). Curitiba: Appris, 2020. Resenha de: CARIAS, Felipe Biguinatti. O assalto à “normalidade” pela obra Bandido (1976 – 1977), de Ney Matogrosso. Revista Territórios & Fronteiras. Cuiabá, v. 13, n. 1, p.538-544, jan./jul. 2020. Acessar publicação original [DR]
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