“Nervos da terra” é uma obra que nasce do desejo de Danilo Ramos refletir sobre as tensões e as experiências dos sem-terra do Assentamento Carlos Lamarca, em Itapetininga, São Paulo, implantado no ano de 1998, após inúmeras ações das famílias acampadas, desde 1996.
A história narrada pelo autor traz a marca do sujeito coletivo, o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), a perpassar as histórias e memórias de cada um dos narradores, seja para legitimar a proximidade com o MST ou mesmo para negá-la.
As “histórias de assombração” surgidas na etapa inicial da pesquisa, de caráter etnográfico, fizeram que este antropólogo mudasse o tema de sua Dissertação que tratava da educação de jovens e suas performances, adentrando os fios que teciam aquelas estranhas histórias e a trama do lugar.
As imagens de escravos, do fazendeiro fantasma, de bolas de luz e de ouro encantado foram desenhando a história da fazenda Monjolo, lugar em que o assentamento foi erigido e propriedade pertencente à tradicional família Almeida Prado desde os “tempos dos escravos”. Desvelando enredos, recontando histórias e memórias de encontros e desencontros vivenciados no assentamento, a narrativa possibilita ao leitor a compreensão de uma parte da história do MST no estado de São Paulo, marcada por conflitos, contradições, vitórias, esperanças; sentimentos mistos de construção e reconstrução da identidade.
O título “Nervos da terra” evidencia a terra, para os assentados, como lugar de trabalho, de morada da vida, mas também de disputas, de desencontros, num espaço comum a qualquer outro da sociedade. Bem por isto que o trabalho contribui para romper com a visão dos assentamentos de Reforma Agrária como espaços idílicos, já que compostos de pessoas comuns, com interesses e valores conflitantes.
O assentamento Carlos Lamarca traz uma particularidade: ao comporse de migrantes de diversos estados, constitui-se de pessoas advindas dos bairros da periferia dos grandes centros urbanos. Famílias que foram obrigadas a ir para a “cidade grande”, sem serem questionadas se “tinham a vocação urbana”, mas ao campo desejaram voltar. Por meio do trabalho de militantes da regional de Sorocaba, em reuniões nos salões de igreja, esse desejo se concretizou.
As contribuições de Walter Benjamin perpassam toda a obra, e as “imagens carregadas de tensão” vão sendo apreendidas pelas narrativas dos assentados no desvelar dos conflitos. O autor destaca ainda a necessidade de fugirmos das dualidades ou mesmo da defesa inconteste a um dos campos, sugerindo que o questionamento ao modo dualista de interpretação desses sujeitos e do MST começou a ser feito a partir de 2005.
Neste momento, nos lembramos da obra “Nós cidadãos: construindo e ensinando a democracia”, de Maria Conceição D’Incao e de Gerard Roy que, dez anos antes, propunha esta interpretação ao estudar um assentamento no interior de São Paulo e os agentes mediadores, denunciando as relações de poder e a violência entre os assentados e os que diziam representá-los. Sentimos a ausência desta obra nas abordagens de Ramos.
O conflito sobre a “divisão dos lotes” foi o ponto de partida para que o autor compreendesse o “racha” ocorrido em meio às famílias logo no início do assentamento, instigando-lhe a apreender as “histórias de assombração”. Nas palavras do autor, “assombrar” “é ver algo que não é desse mundo para melhor entender o mundo em que se vive. Mas, se a existência é incerta e está sempre em estado de transformação, gerando grandes contradições e tensões, elas encontram expressão nas “histórias de assombração” (p.35).
Na Primeira Parte, Os sem-terra e os escravos, Ramos narra os seus passos até o assentamento. Com o olhar para a rede de parentesco constituída pelo casamento e compadrio, enfatiza as redes de auxílio mútuo. Na discussão Sobre a terra e o “Virar Sem-Terra”, busca as histórias de vida na favela e nas ruas para entender as famílias no assentamento. Histórias de Dona Xica, de Celestina, de Hermes e de Sertanio vão dando a dimensão de lugares de sofrimento que geram a revolta, tornando-a mola propulsora para as ações junto ao MST.
Ao nos contar Sob a terra, buscando os sinais da antiga fazenda, vem à tona a memória da terra como livre e a mão de obra escrava. Fazendeiros e escravos são vistos como a morte, o medo, sinais de que a fazenda é “fechada e não livre” (p.70).
Nas Vertigens do cativeiro o autor discute a presença do escravo nas histórias e memórias dos assentados. Assinala, em vários momentos, o peso do cativeiro e da escravidão. A memória é dolorosa e os escravos parecem estar presentes, junto ao fazendeiro, pelos cantos da fazenda, pelos vales e valas, desnudando o peso da violência dos Almeida Prado. Todavia, caberia ter buscado, de forma mais aprofundada, o sinônimo também da resistência da luta escrava nessas histórias. Histórias como a de dona de Xica, nascida num quilombo, talvez pudessem ser uma das fontes a fornecer essa perspectiva.
Na segunda parte, ao tratar sobre A Sede, o autor apresenta o fazendeiro fantasma, antigo dono e morador da fazenda. Por meio das entrevistas, descreve a sede nos dizendo que era um grande casarão, com uma imponente estrutura, situada no alto de um morro e rodeada por uma floresta de eucaliptos. Por meio das palavras de Ezequiel, evidencia-se que a sede, que por muito tempo fora um lugar de grande beleza, agora se “tornava cada vez mais feio, decadente e abandonado” (p.109).
A obra problematiza o antagonismo que há entre assentados que prezam pela coletividade e os que primam pelo individualismo. Outra questão evidenciada é a Divisão dos lotes. Com a emissão de posse da terra, o que deveria ser festa, contraditoriamente foi motivo de briga, uma vez que, por um erro de topografia do INCRA, 22 famílias foram excluídas do projeto de assentamento.
Ainda nesta parte, a afirmativa da violência sobre os escravos, assemelhando-a a situação vivida pelos assentados, talvez pudesse ter sido pensada também pela perspectiva da resistência escrava ao longo da história. Indícios dessa questão vão aparecendo para logo se perderem na narrativa da violência e no medo que os escravos representam para os assentados.
O autor faz a crítica à apologia ao MST. Isto é muito importante. Mas não se pode esquecer que uma das referências históricas deste Movimento é a luta dos quilombos entendida como uma herança para o próprio nascimento do MST. Desse modo, o olhar avançaria para a perspectiva apontada por Walter Benjamin, quando afirma que “sempre hão de novo questionar cada vitória que tenha sido alcançada pelos dominadores”.
Na Terceira Parte Bolas de luz e ouro encantado, o autor se centra no conflito entre o INCRA e os assentados, destacando atributos definidos pelos primeiros, como “a coronela do INCRA”, para pensarmos a representante desse órgão e suas ações no assentamento.
Em relação à presença de representantes da Igreja Católica no assentamento, conforme entrevistas, “só algumas famílias são ajudadas”. Para o autor, as “famílias que não se inserem na rede de parentesco, e mesmo aqueles que continuam solteiros estão à margem deste ‘sistema de crédito clerical’ ”(p.193). Seria fundamental que esta afirmativa pudesse ter sido balizada pela fala das famílias contempladas e mesmo de representantes da Igreja Católica, pois desse modo teríamos o que o autor propôs logo no inicio da obra: a inexistência de dualidades.
Nos anexos, Ramos apresenta suas experiências divididas entre a pesquisa etnográfica, aulas de alfabetização de adultos e de música, propiciando entender que o seu trabalho não se limitou à academia. Os textos trazem práticas que explicitam o envolvimento desse sujeito-pesquisador no espaço da pesquisa. Ao apontarmos algumas questões que poderiam ser levantadas para “Nervos da Terra”, desejamos mostrar a sua relevância para a análise das lutas e das ações cotidianas nos assentamentos de Reforma Agrária em nosso país.
Charles Assi – Acadêmico do 7º. Semestre do curso de História do Campus de Três Lagoas, UFMS.
Maria Celma Borges – Professora Adjunta do Curso de História do Campus de Três Lagoas, UFMS. E-mail: celmaevitor@ibest.com.br
RAMOS, Danilo Paiva. Nervos da terra – Histórias de Assombração e Política entre os Sem-Terra de Itapetininga-SP. São Paulo: AnnaBlume; Fapesp, 2009. Resenha de: ASSI, Charles; BORGES, Maria Celma. Revista Trilhas da História. Três Lagoas, v.1, n.1, p. 172-175, jul./dez. 2011. Acessar publicação original [DR]
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