A Segunda edição da obra de Cleber Maciel, organizada por Osvaldo Martins e Oliveira publicada no ano de 2016, com apoio do Governo do Estado do Espírito Santo por intermédio da Secretaria de Estado da Cultura e Arquivo Público do Estado, traz uma organização diferenciada da primeira, aparentando ter como objetivo apresentar o desenrolar da influência do historiador nas pesquisas e na formação sociopolítica no Estado. Dividido em “Prefácio” e “Posfácio”, nela encontraremos não somente a obra do Professor Cleber como também, em seu posfácio, estão localizados trabalhos de seus intitulados seguidores que por meio do mundo acadêmico aprimoram suas pesquisas e (re)visitam objetos por ele estudados com um olhar contemporâneo sobre o negro.
O Professor Cleber Maciel, como era conhecido dentro do movimento negro, desde a sua graduação na UFES sempre esteve envolvido em movimentos que lutavam pela afirmação da identidade negra, conforme fez questão de ressaltar Sandro José da Silva [1] , e obteve grau de Mestre pela Universidade de Campinas com a dissertação “Discriminações Raciais: negros em Campinas” (1988), sendo esta publicada pela editora da referida Universidade; é autor também da obra “Candomblé e umbanda no Espírito Santo” (1992) obra de referência para pesquisas direcionadas as questões quanto as religiões afrodescendentes.
Publicado pela primeira vez em 1994, a obra “Negros no Espírito Santo” acabou tornando-se uma referência no estudo sobre a História Cultural do Negro no Estado, por ser fruto de um trabalho que surge de dentro para fora do movimento “afro-capixaba” e por isso foi capaz de retomar estudos culturalistas de abordagem autodeterminacionista em detrimento às abordagens assimilacionistas que estiveram em voga desde a metade do século XX até os anos 80 deste mesmo século, quando passou a ocorrer uma “virada” ao encontro de novas epistemologias que reaproximavam o tema sob a ótica de uma abordagem culturalista que não ocorria desde a década de 30 do século passado.
Iniciando sua obra tratando das origens dos negros que aportavam em São Mateus, norte do estado, desde o último quartel do XVI e início do XVII, Cleber Maciel mostra que desde os primórdios da chegada deles no Estado e no Brasil, o que vigorava eram ações que aviltavam a identidade do negro por os classificarem e os denominarem pelo porto africano de Origem e não pela sua língua, região originária e/ou cultura. Ainda sobre esta origem, o autor deixa claro que não fora somente de regiões da África que se importavam negros para o Espírito Santo, mas também de outras regiões do Brasil como Bahia e Maranhão.
Fruto de um trabalho de pesquisa árduo e muito consistente, Cleber Maciel conseguiu resgatar as principais rotas de comércio e deslocamento de escravos no Brasil e conforme se pode perceber, os que saíam com destino ao Espírito Santo eram advindos de Salvador [2], Ouro Preto [3] e Rio de Janeiro [4]. Baseado nestas informações, levantadas junto às fontes primárias e também bibliográficas, chega-se à conclusão de que em sua maioria são negros de etnia Banto e Nagôs. Apesar das informações de origem obtidas em sua pesquisa, Cleber Maciel chega à conclusão de que apesar destas múltiplas origens (Portos Africanos e outras regiões do Brasil), alguns anos antes da abolição, no ano de 1872, 55,8% dos escravos existentes eram naturais do Espírito Santo e os demais tinham nascido em outras províncias do Brasil e da África (MACIEL, 2016),
e quanto os da África são majoritariamente oriundos das Regiões de Benguela, Angola, Cabinda e Moçambique, ou seja, Bantos. O autor corrobora com a tese de Nina Rodrigues que afirma que foram os Negros Bantos que colonizaram o Brasil devido ao intenso fluxo migratório destes para as diversas regiões brasileiras desde o século XVI.
No entanto fica uma lacuna substancial quanto aos motivos desta origem de fluxos migratórios majoritariamente de bantos para o Brasil. Existem trabalhos recentes que exploram a hipótese de que eram conflitos internos Africanos que determinavam tais fluxos, já outros defendem a hipótese de que as informações de predominância de quaisquer das nações existentes são impossíveis de serem precisas pelo fato de que na maioria das vezes a denominação deles não era determinada por aspectos de nação e etnia, mas sim realizada pelo porto de origem e apenas sobre isso as fontes permitem inferência. O fato é que realmente é necessário buscar fontes que possibilitem inferir de maneira precisa o que determinava a predominância de uma ou outra etnia nos fluxos migratórios principalmente dos séculos XVI e XVII.
Em seu segundo capítulo intitulado “Quanto são os negros capixabas” a obra traz uma quebra de paradigma ao ressaltar que, ao contrário do que se tem como consolidado pela historiografia, mesmo sendo uma região de importância periférica na lógica colonial, o quantitativo de negros no Espírito Santo era substancial e concentrada em quatro regiões. Os dados tabulados e trazidos à tona no referido capítulo mostram que entre livres e cativos a comarca de Vitória concentrava o maior número deles. Vitória, por exemplo, em 1551, tinha 7225 habitantes, dos quais 4898 eram escravos, portanto não brancos” (MACIEL, 2016, p. 72), ou seja, 67,79% da população da comarca de Vitória [5] era composta por escravos. Além da referida comarca, a dos Reis Magos [6] , de São Mateus [7] e de Cachoeiro de Itapemirim [8] também foram analisadas e acompanham a referida tendência. Vale ressaltar que o texto segue mostrando que séculos depois, no ano de 1856, este percentual foi reduzido para 24,9% e que em 1887, um ano antes da abolição da escravidão, a população total de cativos na Capitania do Espírito Santo não chegava a 13.500, ou seja, 18,95% da população da capitania e depois de 1888 ficou impossível saber estimar o número de negros no Espírito Santo.
Versando sobre as questões de castigos, trabalho e família, o capítulo “Aspectos da Escravidão” trata sobre a violência, não somente física, mas também moral e cultural, cometida contra os negros especialmente das regiões catalogadas. A violência era tão aviltante que a dificuldade de negros permanecerem e estabelecerem laços de família consanguínea era muito difícil. Além disso, até mesmo os negros forros eram alvos de castigos tal qual os cativos, não havendo diferenciação, pois para os brancos eram todos iguais, para além disso é notório que não havia de forma alguma o reconhecimento do fato de que especialmente no Espírito Santo:
Todas as atividades produtivas constituíam trabalhos para negros, logo, pode-se dizer que foram eles os construtores da base da riqueza capixaba, fossem eles escravos ou livres (MACIEL, 2016, p. 87).
Em seu quarto capítulo, Cleber Maciel versa sobre os movimentos de resistência do negro no Espírito Santo e faz inclusive alusão ao movimento black power para tratar das lutas e revoltas que além de serem bem organizadas buscavam a liberdade pela luta armada, que muitas vezes chegava até a morte, citando como exemplo a “Revolta do Queimado”[9] e faz questão de finalizar o assunto destacando que
Para os negros, o fim da escravidão não significou o fim do sofrimento e das humilhações, mas foi o início de novas lutas pelo reconhecimento da dignidade de ser livre (MACIEL, 2016, p. 104).
Cleber Maciel finaliza sua obra discutindo a “Herança cultural afro-capixaba” que em seu aspecto geral é composta pelas manifestações religiosas e culturais sincretizadas como: a Cabula (considerada pela Igreja como uma seita de origem africana praticada apenas por negros); a Macumba (toque e/ou ritmos afrodescendentes que acompanham cerimônias religiosas de origem africana); a Umbanda e Candomblé que até hoje, mesmo o Brasil sendo um país laico e de liberdade religiosa plena e, mesmo existindo associações e federações de representação, seus praticantes são vítimas de preconceito e pré-concepções que demonizam sua prática, fazendo com que em pleno século XXI seus praticantes tenham que manter sua opção religiosa em sigilo por receio de perseguição, discriminação e até mesmo violências físicas e morais. É necessário tornar evidente que, apesar do exposto, no Estado do Espírito Santo a prática de Candomblé está muito bem difundida, sendo encontrados terreiros e praticantes dos candomblés de Ketu, Efon, Jeje e Angola. No entanto o que não fica claro é se esta prática é uma herança dos negros que para cá vieram desde o século XVI ou se essas foram estabelecidas aqui junto ao movimento de expansão de religiosidades afrodescendentes da segunda metade do século XX completando de maneira contundente o estudo sobre as práticas religiosas afro-capixabas.
A leitura do posfácio nos deixa clara a influência do professor Cleber Maciel na formação acadêmica de política acima já afirmada. A efervescência política negra das últimas duas décadas do séc. XX, formando o movimento negro contemporâneo, o que é ressaltado por Osvaldo Martins de Oliveira, um dos autores que escreveram no posfácio, é consequência do envolvimento de acadêmicos e não acadêmicos na formação de grupos de pesquisa direcionados aos conteúdos afro-capixabas em diversos departamentos da graduação e pós-graduação da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES), onde o professor Cleber fora precursor do tema em terras capixabas e promoveu mudanças subjetivas naqueles que o admiravam e seguiam.
Os textos são constituídos por ditos discípulos do professor em voga, muitos deles agregando mais informações as suas pesquisas, principalmente quanto à catalogação de grupos no território capixaba e a etnografia, como no caso os três textos de Osvaldo Martins de Oliveira e o texto de Milena Xibele Batista, sendo que este último traz uma singela contribuição da autora com base em sua rica tese de mestrado “ANGOLA, JEJE E KETU: Memórias e identidades em casas e nações de candomblé na Região Metropolitana da Grande Vitória”.
Já outros, como o “Movimento negro e educação no Espírito Santo” e “As políticas de ação afirmativa e movimentos pelas cotas na UFES”, fazendo releituras da obra por meio dos novos olhares que debatem o tema, interligando-o com questões relacionadas à identidade negra e a sua luta pelo reconhecimento em todos os âmbitos sociais e políticos.
No âmbito político, das reuniões do Restaurante Universitário que juntavam desde alunos das ciências sociais à alunos das engenharias, surgiam movimentos de representação política consistentes e que como consequência de suas lutas conquistam espaço institucionais na política, na educação e na cultura, exemplo disso é a instituição da Comissão de estudos Afro-Brasileiros e o Museu Capixaba do Negro Verônica Pas (MUCANE).
Os artigos encontrados no posfácio demonstram que houve mudanças consideráveis na legislação brasileira por uma política garantivista sobre o negro e sua cultura, em sua maioria vê-se referências aos artigos 215, 216 e 68 da Constituição Federal de 1988, contudo demonstram também que a luta do negro é muito anterior a tal legislação.
O pósfacio apresenta de forma bastante resumida as evoluções quanto as pesquisas sobre o tema, fazendo com que o leitor busque por um aprofundamento do que os autores têm produzido. Uma possibilidade é a realização de obra com estas e outras pesquisas apresentando-as com mais amplitude
Notas
1. Cleber da Silva Maciel esteve envolvido diretamente no movimento conhecido como “Descomemoração da Abolição” e o Seminário “Aboli-Ação” ambos em 1988 na UFES e com ampla repercussão nas mídias impressas. Cf. Gazeta 09/05/1988 e Gazeta 07/06/1988.
2. Com destino ao Norte do Estado do Espirito Santo.
3. Com destino tanto para o Norte quanto para o Sul do Estado do Espírito Santo.
4. Com destino ao Sul do Estado do Espirito Santo.
5. Compreende os municípios de Vitória, Espírito Santo (futuramente Vila Velha) e Viana.
6. Compreendem os municípios da Serra, Nova Almeida, Santa Cruz e Linhares.
7. Compreendem os municípios de São Mateus e Barra.
8. Compreendem os municípios de Itapemirim, Cachoeiro, Benevente e Guarapari.
9. Para compreender melhor este episódio cf. Campos, A. P. (2000). Abolicionistas, negros e escravidão. Dimensões, (10); CARDOSO, L. C. Revolta Negra na Freguesia de São José do Queimado: escravidão, resistência e liberdade no século XIX na província do Espírito Santo (1845– 1850). 2008. p. 107. Dissertação de Mestrado em História Social das Relações Políticas – Curso de Pós-Graduação, Universidade Federal do Espírito Santo. Vitória.
Rodrigo Mello de M. Pimenta – Mestre em história pela Universidade Federal do Espirito Santo, Professor Efetivo da SEME/ PMVV.
Satina Priscila M. Pimenta Mello – Psicóloga e Advogada especialista em intervenção psicossocial, Professora da Universidade Estácio de Sá e MULTIVIX.
MACIEL, Cleber. Negros no Espirito Santo. Organizada por Osvaldo Martins e Oliveira. 2ª edição. Espirito Santo: Secretaria de Estado da Cultura; Arquivo Público do Estado, 2016. Resenha de: PIMENTA, Rodrigo Mello de M.; MELLO, Satina Priscila M. Pimenta. Negros no Espírito Santo: (re) visitando a realidade do negro no estado. Revista do Arquivo Público do Estado do Espirito Santo, Vitória, v.1, n.1, p. 2017. Acessar publicação original [DR]
Décima sexta edição. Esta edição foi publicada em 2023 visando o ajuste de publicações em…
Décima sétima edição. Esta edição foi publicada em 2023 visando o ajuste de publicações em…
Vigésima segunda edição. N.03. 2023 Edição 2023.3 Publicado: 2023-12-19 Artigos Científicos Notas sobre o curso de…
Publicado: 2024-06-19 Artigo original A rota dos nórdicos à USPnotas sobre O comércio varegue e o…
Quem conta a história da UFS, de certa forma, recria a instituição. Seus professores e…
Publicado: 2023-06-30 Edição completa Edição Completa PDF Expediente Expediente 000-006 PDF Editorial História & Ensino 007-009…
This website uses cookies.