Negritude: usos e sentidos | Kabengele Munanga

Originalmente publicado em 1988, o livro Negritude: usos e sentidos ganhou nova edição, no ano de 2019, pela Autêntica Editora. Kabengele Munanga, autor da obra, é um antropólogo nascido na República Democrática do Congo (RDC) e naturalizado brasileiro. Tendo uma vasta carreira acadêmica, aposentou-se, em 2012, como Professor Titular pela Universidade de São Paulo (USP), onde atuou como docente e pesquisador, especialmente, nas áreas de Antropologia da África e da População Afro-Brasileira. Com trabalhos cujo enfoque recai sobre racismo, políticas e discursos antirracistas, identidade negra, multiculturalismo e educação das relações étnico-raciais, Munanga é uma grande referência nos estudos sobre a negritude no Brasil.

Em Negritude: usos e sentidos, o autor discute de forma crítica o complexo percurso histórico de construção da identidade negra, apontando os principais elementos que contribuíram para a formação de uma consciência de negritude. A edição publicada pela Autêntica Editora conta com uma apresentação de Nilma Lino Gomes (2019, n.p.), pedagoga brasileira, quem define o trabalho como uma “leitura imprescindível a todos[/as] que se interessam e estudam a história e a cultura africanas e as relações raciais no Brasil e na diáspora”. Em termos organizacionais, à parte da introdução, a obra está dividida em cinco capítulos, nos quais Munanga discorre sobre a formação histórico-discursiva do movimento de negritude. Além disso, a edição inclui ainda duas seções, Vocabulário crítico e Bibliografia comentada, as quais apresentam informações complementares ao/à leitor/a.

No texto introdutório, Munanga argumenta que não é possível homogeneizar os/as negros/as em uma categoria universal devido à pluralidade de contextos socioculturais que marcam suas experiências como sujeitos. A esse respeito, o autor aponta três fatores necessários para o entendimento de uma construção identitária: o histórico, o linguístico e o psicológico. O primeiro, considerado o mais relevante pelo autor, engloba um senso coletivo de continuidade histórica de um povo, responsável por criar um sentimento de coesão social.

O segundo, por sua vez, trata das formas de linguagem e comunicação que representam marcas de identidade de um grupo. Por último, o fator psicológico levanta questionamentos acerca do papel da psique humana nos comportamentos sociais dos sujeitos. Em vista disso, Munanga salienta que a negritude não se refere a um imperativo biológico de cor de pele, mas sim à partilha de uma história comum de dominação, inferiorização, agressão e exclusão de um povo com base no critério de raça. Nesse sentido, a negritude emerge como uma reação à branquitude ocidental, criando um laço de solidariedade entre as vítimas desse sistema racial assimétrico.

Tendo exposto esses conceitos, no primeiro capítulo, o escritor delineia um panorama histórico da construção da imagem do sujeito negro a partir da colonização europeia. A dominação ocidental instaurou uma divisão desigual no seio da colônia, criando uma sociedade colonial em contraposição a uma sociedade colonizada. A primeira abarca os colonos, a população branca europeia e povos não europeus (“homens de cor”). A segunda inclui os/as autóctones, indígenas ou nativos/as, que são submissos/as a todos os grupos da sociedade colonial. Para justificar essa divisão, a administração colonial recorreu a diversos artifícios de ordem material, ontológica, epistemológica e teológica. Sendo assim, a manutenção do sistema de opressão se alicerçou não somente no uso da violência física, mas também nos artefatos culturais, na produção discursiva e na retórica científica. Logo, criou-se o mito do/a negro/a como um ser inferior, primitivo, animalesco, pré-lógico, feio, preguiçoso, sexualizado, perverso e pecaminoso. A esse respeito, Munanga ressalta o papel imprescindível das missões de evangelização e do racismo científico na produção de um discurso legitimador da segregação racial e, consequentemente, da subjugação e da escravização dos/as negros/as.

No segundo capítulo, o autor discute as tentativas de assimilação dos valores culturais da branquitude. Diante da constante reprodução de estereótipos e preconceitos em relação a sua imagem, o sujeito negro começou a incorporar o discurso racista e a negar a sua própria identidade, buscando aproximar-se do ideal imposto pelo colonizador branco. Como resultado, o embranquecimento passou a ser cultuado na esperança de ascensão na escala de poder colonial. Diversos artifícios podem ser apontados como mecanismos de assimilação empregados pela elite negra: vestimentas, alimentação, língua, relações amorosas e sexuais, entre outros. No entanto, todos esses esforços foram em vão, uma vez que a integração do sujeito negro implicaria no desmantelamento das estruturas de poder que sustentavam a superioridade racial branca. Nesse sentido, Munanga sugere que a assimilação não passou de um mito, um dispositivo vendido pelo discurso colonial para garantir a exploração do/a negro/a de forma apassivada.

Em vista do fracasso da empreitada assimilacionista, no terceiro capítulo, Munanga discorre sobre um movimento de recusa ao embranquecimento. Esse momento de ruptura passa pela negação ao ideal branco europeu de humanidade e pela retomada de si, o que suscita um fenômeno de volta às raízes, de resgate da ancestralidade e de valorização física, moral, cultural e epistemológica da identidade negra. O escritor chama a atenção para o fato de que esse movimento teve origem fora da África Negra, provavelmente, nos Estados Unidos, a partir do posicionamento combativo e militante de negros/as em diáspora. Outros fatores que contribuíram para a consolidação da negritude compreendem as duas guerras mundiais e o desencanto de intelectuais negros/as com as metrópoles coloniais, o que impulsionou os movimentos de libertação nacional e a emancipação do sujeito negro. O termo negritude foi cunhado pelo poeta martiniquense Aimé Césaire para designar o reconhecimento e a aceitação da condição racial de negro/a, tendo como base três pilares: a identidade, a fidelidade e a solidariedade.

Partindo desse ponto, no quarto capítulo, Munanga aborda as diferentes acepções que a negritude incorporou ao longo dos anos. Ancorado no trabalho de Bernard Lecherbonnier (1977), o escritor congolês sublinha duas interpretações conflitantes da negritude. A primeira é considerada mítica, pois busca remontar ao passado africano antes da dominação ocidental de forma idealista. A segunda é a ideológica, de instinto combativo contra a branquitude, voltada para planos de ação visando ao futuro. Além dessas duas interpretações, Munanga apresenta ainda quatro outras formas de conceber a negritude. Pelo viés biológico ou racial, a negritude diz respeito a todos os elementos que fazem referência à raça negra. Pela linha sociocultural de classe, há uma sobreposição da classe socioeconômica à raça, visão que é contestada por Munanga. Há ainda uma interpretação psicológica, que abrange características comportamentais do sujeito negro. Por fim, o autor menciona a definição cultural, segundo a qual a negritude se vincula à valorização das culturas negras.

Depois de traçar esse amplo panorama acerca da negritude, no quinto capítulo, o autor explora algumas críticas a esse movimento. De início, ressalta o caráter de protesto intelectual assumido pela negritude, que surge para reclamar o valor sociocultural, político e, sobretudo, humano dos/as negros/as frente a uma estrutura colonial racista. Um dos maiores pontos de controvérsia em torno da negritude se refere à tentativa de forjar uma unidade entre as variadas comunidades de negros/as existentes no mundo. Munanga pondera que, embora não exista uma unidade em termos geopolíticos e socioeconômicos, há uma conexão histórica e psicológica que interliga a experiência dos/as negros/as seja no continente africano seja na diáspora. No concernente ao campo cultural, o autor afirma que a unidade se restringe ao continente africano devido às condições histórico-geográficas e estruturais que permitem uma maior aproximação e a criação de um sentimento de africanidade. Outra forte contestação à negritude concerne à sua (in)eficácia. Críticos do movimento o denunciam como uma forma de “racismo antirracista”, o que é rebatido por Munanga, visto que se trata de um mecanismo de defesa, e não de agressão, tal como é o racismo branco. Retomando a questão intelectual, o autor reconhece que, inicialmente, a negritude se circunscreveu à esfera acadêmica, tendo uma formatação desalinhada com os problemas das grandes massas de negros/as.

Por último, nas duas seções complementares, Munanga oferece recursos que podem auxiliar o/a leitor/a a compreender melhor a formação histórico-discursiva da negritude. O Vocabulário crítico apresenta a definição de termos e conceitos relevantes para o entendimento dos processos de construção da identidade negra frente à colonização europeia, tais como aculturação, assimilação cultural, diáspora, identidade cultural e ideologia. Na seção Bibliografia comentada, Munanga recomenda e incentiva a leitura de uma lista de trabalhos cujos autores/as se debruçaram sobre a questão negra. A título de exemplo, cito Elisa Larkin Nascimento (1981), Frantz Fanon (1952), Neusa Santos Souza (1983) e René Ménil (1981).

Em resumo, Negritude: usos e sentidos se materializa como um convite aprazível àqueles/as que se interessam pelas relações étnico-raciais. Ao fazer um percurso histórico acerca da construção da negritude, Munanga logra abordar de forma crítica e concisa os principais elementos que tangem o movimento. Trata-se, pois, de uma leitura obrigatória para quem se propõe ao estudo da formação da identidade negra, especialmente em um país assombrado pelo mito da democracia racial, como é o caso do Brasil. A esse respeito, a obra de Munanga pode contribuir para a denúncia do racismo estrutural e para a desmitificação da imagem do sujeito negro.


Referências

FANON, Frantz. Peau noire, masques blancs. Paris: Editions Seuil, 1952.

GOMES, Nilma Lino. Apresentação. In: MUNANGA, Kabengele. Negritude: usos e sentidos. 4. ed. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2019. (Coleção Cultura Negra e Identidades). E-book. n.p.

LECHERBONNIER, Bernard. Initiation à la littérature négro-africaine. Paris: Fernand Nathan, 1977. (Classique du Monde).

MÉNIL, René. Tracées: identité, négritude, esthétique aux Antilles. Paris: Robert Laffont, 1981.

NASCIMENTO, Elisa Larkin. Pan-africanismo na América do Sul. Petrópolis: Vozes, 1981.

SOUZA, Neusa Santos. Tornar-se negro. Rio de Janeiro: Graal, 1983.


Resenhista

Iury Aragonez da Silva – Mestrando em Letras e Linguística. Universidade Federal de Goiás (UFG), Goiás, Brasil; Bolsista da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES). E-mail: iury_aragones@hotmail.com https://orcid.org/0000-0001-7107-1824


Referências desta Resenha

MUNANGA, Kabengele. Negritude: usos e sentidos. 4. ed. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2019. Coleção Cultura Negra e Identidades. E-book. Resenha de: SILVA, Iury Aragonez da. A formação histórico-discursiva do movimento de negritude. Kwanissa- Revista de Estudos Africanos e Afro-Brasileiros. São Luís, v. 05, n. 13, p. 264-267, jul./dez. 2022. Acessar publicação original [DR/JF]

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