Negócios jesuíticos: O cotidiano da administração dos bens divinos | Paulo de Assunção
Negócios jesuíticos é um livro atrativo. O titulo sugere um tratamento inovador a respeito de um tema já bastante estudado, como a Companhia de Jesus. A edição é muito bem cuidada, com uma bela apresentação gráfica. O sumário predispõe o leitor para uma fruição “redonda” do assunto. A documentação referenciada é vasta. Assim, foi com avidez por melhor conhecer a atuação econômica da Companhia que nos dedicamos a uma atenta leitura dessa obra de quinhentas e seis páginas
No prefácio desse alentado e atrativo volume, Mary del Priore afirma:
Negócios Jesuíticos abre um vasto campo de reflexão e de pesquisa sobre a ordem religiosa que mais marcou a história de nossa colonização. O livro completa inteligentemente o grande canteiro de pesquisas internacionais que o tema dos jesuítas inspirou e segue ensejando. Ao mesmo tempo rigorosa e lúcida, sua narrativa traduz conhecimentos sobre a sociedade, a política, e a economia do período em questão, introduzindo-nos a uma história social da ordem religiosa. Obra obrigatória para conhecer um período-chave de nossa história, ela ainda confirma o talento de um refinado e arguto historiador.
De fato, a se considerar a quantidade de documentos citados e analisados, bem como a organização das partes expressa em seu sumário, o livro promete muito: promete dar conta, através de uma pesquisa documental, de três séculos da atuação econômica da Companhia de Jesus, com o objetivo de elucidar as razões da expulsão e da extinção de uma ordem religiosa que se tornou extremamente poderosa no decorrer desses séculos.
As sete partes em que o livro está estruturado (A expulsão dos nefastos, A companhia de Jesus em Portugal: Uma empresa de vulto, Os jesuítas na América Portuguesa: Esta Terra é nossa empresa, Do exercício da Fé ao Exercício Temporal, A Administração dos Bens Divinos, Um Patrimônio entre Privilégios e Demandas, Os Descaminhos dos Negócios Jesuíticos), chamam a atenção pela intenção de abranger, em uma organicidade lógica, mais de duzentos anos de história da atuação da Companhia de Jesus em terras portuguesas – de aquém e de além mar.
É inegável a importância da Companhia de Jesus na história ibero-americana da época moderna. Criada para ser um instrumento de expansão da fé cristã, ela surge com uma característica que a distinguia profundamente das ordens religiosas medievais. Enquanto estas se voltavam para uma vida de orações no interior dos mosteiros, aquela surge voltada para o mundo, ou seja, visando a expansão da fé, os soldados de cristo deveriam ir até onde pudessem ser levados pelas caravelas. Nesse sentido é sempre bom lembrar que, ao mesmo tempo em que Nóbrega e Anchieta buscavam a conversão do gentio no Brasil, Francisco Xavier missionava no Japão.
Exatamente em razão dessa importância, a atuação dos jesuítas ao longo da época moderna tem sido um assunto muito estudado pelos historiadores. No entanto, a grande maioria dos estudos dedica-se a sua atuação na catequese e na educação coloniais. Poucos são os que se voltam para o papel que esses religiosos desempenharam na construção da vida material, para os aspectos econômicos da sua atuação, tanto no Reino quanto na colônia portuguesa na América. Não se concebe, ao longo da história da humanidade, uma instituição cuja existência não se realize de acordo com as condições históricas de produção da vida material comum aos outros homens e instituições. Assim, é quase desnecessário afirmar que a inserção dos jesuítas na forma de produção colonial foi absolutamente imprescindível – como mostra muito bem o autor dos Negócios Jesuíticos – para sua própria manutenção enquanto ordem, haja vista que, em razão do padroado régio, os impostos eclesiásticos eram, em Portugal, recolhidos pelo Rei.
Nesse sentido, o livro de Paulo de Assumpção é duplamente inovador, tanto por focar sua análise na eficiente administração dos bens materiais pelos jesuítas, quanto por sua contribuição no âmbito da história econômica. O autor procura trazer para o campo da história econômica as contribuições da micro-história italiana e da história do cotidiano para – como o próprio subtítulo deixa claro – construir uma narrativa do cotidiano da administração dos bens divinos. Pode-se mesmo afirmar que Assunção faz uma história social da vida econômica da Companhia de Jesus.
Negócios jesuíticos é um livro ambicioso. Descreve o cotidiano desses padres na administração de seus negócios, com base em uma imensa quantidade de fontes, sobretudo as cartas dos jesuítas, localizadas em arquivos de Portugal, Itália e do Brasil. Paulo de Assunção busca respostas para questões tais como: Qual teria sido a ingerência nos negócios temporais praticada pelos jesuítas em Portugal e nas terras coloniais portuguesas? Que tipo de prática foi empreendida no âmbito temporal que fez com que os jesuítas fossem tidos como nocivos pela Coroa e malquistos pela sociedade? Quais eram os negócios jesuíticos?
Na primeira parte, o autor faz uma história da Companhia de Jesus, partindo do momento da expulsão para o processo de sua constituição, destacando que a mesma se tornou uma potência econômica em decorrência da necessidade de sua própria manutenção material e que principalmente a esse aspecto deveu-se o descrédito em que ela caiu no século XVIII.
Com base na plasticidade dos jesuítas ou, parafraseando Gilberto Freire ao se referir ao colonizador português, na adaptabilidade da Companhia de Jesus, ele conduz o assunto de forma a demonstrar as diferenças entre a forma de inserção dos jesuítas na vida material na colônia e no Reino.
Assim, na segunda parte, toda a documentação é analisada no sentido comprovar que, no Reino, a inserção dava-se na forma de reditos públicos, como doações, legados pios, verbas testamentárias. Segundo ele,
o poder real dava condições para o funcionamento dos colégios e também garantia a sua manutenção, auxiliando na cobrança e execução das dívidas, favorecimento que aos olhos da população configurava como uma opressão orquestrada pelos jesuítas e permitida pelo monarca. (p. 123)
Assunção finaliza esta segunda parte com a afirmação de que
as vicissitudes que envolveram os jesuítas em outras partes do império ultramarino português, em especial na América Portuguesa, não foram diferentes. Com algumas variações, o crescimento do patrimônio jesuítico seguiu os mesmos princípios e tornou-se considerável, bem como sua atuação em negócios seculares. (p.147)
Na terceira parte, ele mostra que, no Brasil, “algumas práticas dos membros da Companhia de Jesus se modificaram segundo a necessidade da integração colonial” (p.151). Discorre com bastante propriedade sobre a transformação do cotidiano dos jesuítas na Colônia, onde eles tornaram-se administradores de engenhos, fazendas de gado, etc, inserindo-se em
um complexo sistema produtivo que envolvia: o cultivo da terra; a exploração da mão-de-obra; os problemas com os equipamentos e as técnicas de produção; a atividade criatória; o controle de estoque; o abastecimento das fazendas, colégios e residências; o acondicionamento, o transporte e envio de produtos para o reino ou a venda deles no mercado local, dependendo das condições de mercado, revelando um, a administração direta das propriedades que não eram comuns na Europa. (p.85)
Nesse momento da análise da atuação da Companhia de Jesus no Brasil o livro revela sua alma. O livro cresce, adquire desenvoltura, e apresenta uma riquíssima documentação que, de fato, revela o dia-a-dia da administração dos bens da Companhia de Jesus: as angústias, os prazeres, as insatisfações dos jesuítas com determinadas atribuições administrativas.
No entanto, a predisposição do leitor para uma agradável leitura é afetada pelas marcas de nascimento do livro. Trata-se muito provavelmente de uma tese acadêmica, com todas as qualidades, virtudes, e evidentemente problemas que uma tese acadêmica apresenta. Concebido para ser defendido perante uma comissão de avaliadores, o trabalho torna-se monótono, repetitivo e cansativo para um publico mais amplo.
Assim, a rica abordagem, que caracteriza a parte mais significativa e original do livro, é antecipada por cento e cinqüenta paginas de, digamos, introdução ao assunto. Nas partes seguintes, tentando esmiuçar a documentação encontrada na pesquisa, o autor acaba por enrijecer as interpretações, tornando-se extremamente repetitivo.
Descrevendo o dia a dia dos inacianos na administração dos bens materiais, Assunção revela que a própria formação dos jesuítas os teria levado a serem tão hábeis administradores que conseguiram tornar lucrativas as fazendas e os engenhos, mesmo em momentos de crise. De nossa parte, acreditamos que, além da rígida formação intelectual, o inegável sucesso dos jesuítas enquanto administradores deve-se também ao fato de que a ordem religiosa voltou-se para o mundo exterior e compartilhou com os demais colonizadores uma racionalidade mercantil que foi produzida ao longo da época moderna3.
Um dos principais problemas do livro talvez seja a forma como o autor lida com a questão do tempo. A história se desenrola em um determinado lugar – dimensão geográfica – e em um determinado período – dimensão temporal. Assim, a transformação vivida pelos jesuítas não ocorre somente em razão do deslocamento geográfico – do reino para a colônia – como parece entender o autor. No entanto, em várias passagens, contrariando seu próprio procedimento metodológico, ele parece não atentar para as diferenças temporais e congrega em um mesmo parágrafo análises de cartas escritas no século XVII e no século XVIII, porque se norteia pelo tema que elas apresentam, por exemplo, pelo fato de que algumas expressam um “mesmo” descontentamento. Com esse tratamento, o leitor é induzido a entender as questões dos homens como se fossem as mesmas ao longo dos mais de duzentos anos da história da atuação dos jesuítas no Brasil. Mais do que isso, ao tratar indiscriminadamente cartas produzidas na primeira metade do século XVII e no século XVIII, Assunção parece desprezar suas distintas historicidades e acaba por produzir um estudo eivado de sinuosidades metodológicas.
Um outro grande problema de Negócios jesuíticos aparece quando o autor abandona a narrativa, a descrição das cartas, do cotidiano dos jesuítas e tenta fazer uma análise mais vinculada à “macro-história”. Muitas vezes, suas interpretações, quando não empobrecem o que foi exaustivamente descrito com base nos documentos, não ultrapassam o próprio nível da descrição. É o caso, por exemplo, da conclusão encontrada na segunda parte:
Em suma, pode-se enfatizar que a ajuda material e financeira da coroa à Companhia de Jesus acrescida de bens terrenos, recebidos por doações, como os legados pios e verbas testamentárias, permitiram que os religiosos reunissem recursos para sua manutenção.
Como afirma o próprio autor em vários momentos de sua análise, seu objetivo é procurar as razões temporais da expulsão jesuítica. A idéia de que os jesuítas construíram um imenso patrimônio fundiário e acumularam privilégios e regalias, tornando-se uma ameaça para os negócios do Estado português, é extremamente repetida, sem que a análise se encaminhe para uma explicação mais profunda do porquê de proprietários e administradores tão competentes serem considerados nocivos a um governo que, como o de D. José I e Pombal, tinha como objetivo incrementar a produção.
Depreende-se do que afirma o próprio autor que, como homens históricos, os jesuítas tornaram-se uma potência econômica porque tiveram que se adaptar ao modo de produção da vida na colônia. Todavia o fato de terem atuado em uma sociedade produtora de mercadorias, submetendo-se aos imperativos da concorrência e da troca, tornando-se alvo da hostilidade de outras ordens religiosas, de setores do próprio governo português, bem como de outros proprietários coloniais, não se apresenta como objeto de explicação das denúncias que contra eles eram feitas. Infere-se de tudo o que diz o autor que os problemas enfrentados pela Companhia decorriam de sua ingerência nas atividades temporais e de sua ambição. A criação da Companhia Geral do Grão-Pará e Maranhão, por exemplo, aparece no livro como um fato importante, externo, que causou insatisfação aos jesuítas, e não como um encaminhamento necessário à própria política colonial naquele momento e que tinha como alvo também eliminar a concorrência jesuítica no campo político e econômico.
Em alguns momentos a análise de Assunção é surpreendentemente óbvia. Afinal, o que dizer de frases como A falta de mão-de-obra, dentro de um modelo produtivo escravista, comprometia a produção (p.328). Ou ainda:
os engenhos e as fazendas permitiram que os religiosos gozassem de privilégios reais, sociais e políticos que a missão envolvia, o que significa dizer que a administração da empresa açucareira e outras atividades eram operadas seguindo a necessidade de lucro, de controle das perdas e de um olhar atento para as alterações de mercado. (p.354)
Em outras passagens aparecem também algumas impropriedades em relação aos fatos e às instituições. Por exemplo, quando Assunção analisa um dos mais significativos documentos da primeira metade do século XVIII português: a carta de D. Luis da Cunha – diplomata e ilustrado português – escrita ao herdeiro do trono de D. João V, D. José4, pouco antes do falecimento do velho rei. Ao se voltar para o Testamento político, o autor de Negócios jesuíticos constrói uma análise superficial e confunde a visceral critica de D. Luis à Igreja e sobretudo à Inquisição – pois este “estrangeirado” considera a perseguição aos cristãos novos um dos principais fatores da profunda crise econômico-social de Portugal – com a luta política do Marquês de Pombal contra a Companhia de Jesus.
Finalmente apontamos uma lacuna crucial na análise da atuação econômica dos jesuítas por parte de Assunção. Tendo em vista que seu objetivo é analisar a inserção dos jesuítas na vida econômica da colônia e que a parte mais significativa do livro é dedicada ao Brasil colonial, pode-se presumir que a questão da escravidão, principal relação de trabalho da colônia deve constituir o cerne da análise. Correto? Não. Para o autor isso não parece importante, pois como se explica que, em quinhentas e sete páginas, ele dedique apenas quatro ou cinco para a questão da legitimação teológica da escravidão do negro entre os jesuítas? Não que essa legitimação fosse necessária, pois a escravidão já era considerada legítima na África antes da chegada dos europeus. No entanto, existem muitos documentos que revelam que os jesuítas discutiram a escravidão
Pois bem, ao discutir a legitimidade da escravidão entre para os jesuítas, Assunção convida para a discussão o sermão proferido pelo jesuíta Jorge Benci5. Em sua análise sobre o posicionamento de Benci sobre a escravidão reverbera, embora sem menção explícita, a interpretação que dele fizeram os autores da introdução da edição utilizada6. Ele convida também o conhecidíssimo livro de Antonil7, porém não faz menção à discussão sobre escravidão colonial feita pelo mais importante personagem da história luso-brasileira que discutiu essa questão. O Padre Antonio Vieira, nos famosíssimos sermões da série Maria, a rosa mística, mostra aos escravos e aos senhores não apenas a legitimidade, mas sobretudo a transcendental necessidade da escravidão colonial. Pois bem, Assunção praticamente ignora a obra do Padre Antonio Vieira no que diz respeito a essa discussão.
Entende-se que em um livro, cujo objetivo é abordar mais de duzentos anos de história, não é possível dar conta de todos os aspectos de um fenômeno, mas é no mínimo estranho, tendo em vista a inserção dos jesuítas em uma sociedade na qual a escravidão desempenhou um papel fundamental, que não caiba nenhuma menção a pelo menos três dos mais de duzentos sermões proferidos pelo genial orador sobre o assunto.
Independentemente desses problemas, ou lacunas, inevitáveis em um trabalho com a ambição de abranger uma documentação produzida em um tão largo espaço de tempo, o livro é extremamente interessante e faz emergir uma documentação realmente sugestiva e incitante para o pesquisador. Vale a pena ser lido.
Notas
3. A esse respeito ver COSTA, Célio Juvenal. A racionalidade jesuítica em tempos de arredondamento do mundo: o império português (1540-1599). Tese de doutorado, UNIMEP, 2004.
4. A carta de D. Luis da Cunha dirigida a D. José foi publicada sob o titulo Testamento Político. CUNHA, Luis da. Testamento Político. São Paulo: Alfa Omega, 1976.
5. BENCI, Jorge. Economia Cristã dos senhores no governo dos escravos. São Paulo, Grijalbo, 1977.
6. FIGUEIRA, P. A.. e MENDES, C.M.M.. Estudo preliminar. In; BENCI, Jorge. Economia Cristã dos senhores no governo dos escravos. São Paulo, Grijalbo, 1977.
7. ANTONIL. Diálogos das grandezas do Brasil por suas drogas e minas. (varias edições)
Resenhistas
Sezinando Luiz Menezes – Professor do Departamento História da Universidade Estadual de Maringá.
Silvina Rosa – Professora aposentada pelo Departamento de Fundamentos da Educação da Universidade Estadual de Maringá
Referências desta Resenha
ASSUNÇÃO, Paulo de. Negócios jesuíticos: O cotidiano da administração dos bens divinos. São Paulo: EDUSP, 2004. Resenha de: MENEZES, Sezinando Luiz; ROSA, Silvina. Diálogos. Maringá, v.8, n.2, 195-202, 2004. Acessar publicação original [DR]