O décimo sétimo número da Revista Escrita da História (REH) apresenta o dossiê temático “Negacionismos, Anti-intelectualismo e Fake News: A aporia da História na era da ‘pós-verdade’”, organizado pelo editor da REH, Prof. Dr. Isaac Harillo Jerez. A proposta do dossiê é refletir pontos nevrálgicos das sociedades contemporâneas sob o signo da “pós-verdade”, como o discurso negacionista e a disseminação de informações falsas nas redes sociais.
Tais questões são reflexo da intensificação de movimentos de extrema direita mundo afora nos últimos anos, que mesclaram linguagens políticas neofascistas com princípios econômicos do neoliberalismo. O caráter intercontinental deste fenômeno pode ser observado em dois momentos: a ascensão de Donald Trump à presidência dos Estados Unidos (2016) e a eleição de Jair Bolsonaro à chefe do Poder Executivo brasileiro (2018). Em ambos os acontecimentos, setores da extrema-direita organizaram uma rede estruturada de desinformação e de disseminação de discursos de ódio por meio das redes sociais, cujo intuito foi atacar as instituições liberal-burguesas e as distintas áreas científicas, por meio de uma lógica negacionista e revisionista. Estas narrativas da extrema-direita intensificaram-se em distintos países com a pandemia do novo Coronavírus, através do descrédito da ciência e da propagação de informações inverídicas.
Nesta conjuntura, surgem pesquisas de distintas áreas do conhecimento humano que buscam compreender o fenômeno da “pós-verdade” e seus desdobramentos. Os artigos que compõem este dossiê temático é exemplo da interdisciplinaridade deste cenário, uma vez que reúne trabalhos de profissionais das ciências humanas, sociais aplicadas e biológicas.
Como ressaltado anteriormente, a eleição de Donald Trump à presidência dos Estados Unidos foi marcada pelos ataques às minorias e pela propagação de notícias falsas nas redes sociais pelos asseclas de Trump, através de um discurso conspiracionista. No entanto, essas armas políticas surgiram nas eleições de 2016? João Victor Uzer, no artigo “Desinformação, misinformação e conspiracionismo na retórica da guerra das direitas estadunidenses (1983- 2016)”, afirma que não. Para o autor, as ações políticas da extrema-direita dos Estados Unidos estão associadas à retórica republicana de guerra, surgida na década de 1980. Sempre nos momentos de crise interna e/ou externa, essa retórica é trazida à tona pelos presidentes republicanos como o objetivo de influenciar a opinião pública nacional, com a propagação de informações falsas em distintos meios de comunicação, e direcionar as ações do eleitorado conservador. O trabalho de Uzer ressalta que o aparelho de desinformação foi institucionalizado nos governos de George W. Bush (2001-2009) e de Trump (2017-2021) e teve como objetivo a sustentação da retórica republicana de guerra.
Inspirados nas estratégias da extrema-direita estadunidense e europeia, grupos direitistas brasileiros utilizaram as redes sociais para disseminar discursos de ódio às minorias, propagar desinformações e atacar o sistema da democracia burguesa. Esse movimento intensificou-se nas eleições gerais de 2018, resultando na eleição de Jair Bolsonaro à presidência e de uma quantidade expressiva de deputados federais e estaduais.
Uma das características do bolsonarismo, corrente política nucleada na figura de Bolsonaro, é o sistemático ataque ao ensino público no país. As pesquisadoras Renata Pereira da Silva Uchôa, Ana Maria de Barros, Flavia da Silva Clemente e Daiana Ferreira de Almeida, no artigo “O [projeto de] anti-intelectualismo e desumanização das classes subalternas: o desmonte da política educacional no governo Bolsonaro”, apontam que na gestão de Bolsonaro (2019- 2022) houve uma série de ações que enfraqueceram a rede pública de ensino, ocasionando na formação dos estudantes. As autoras apontam que este ataque, conduzido por uma retórica neoliberal, fez parte de uma lógica anti-intelectualista. O artigo apresenta que tais ações puderam ser notadas nacional e regionalmente, ao enfocar as consequências destas medidas no sistema educacional de Pernambuco.
A proliferação de informações falsas e o posicionamento anti-intelectualista da extrema-direita em escala global alimentam uma outra característica desse movimento político: a deslegitimação da ciência. O negacionismo, uma ressignificação do revisionismo da direita autoritária e nacionalista do período entreguerras (1918-1939), manifestou-se fortemente durante a pandemia do novo Coronavírus. Autoridades da extrema-direita e partidários desta corrente política desabonaram os estudos científicos ao apresentarem dados inverídicos que questionavam os métodos de prevenção da Covid-19, a velocidade de proliferação do vírus e os efeitos da doença no organismo humano.
Este é o tema do artigo “Pandemia de Covid-19 e redes sociais: a ciência entre o crédito e o descrédito”, escrito por Adriana Ribeiro de Macedo. A autora analisa, em seu texto, os mecanismos utilizados pela extrema-direita para deslegitimar a ciência através da produção e disseminação de informações inverídicas nas redes sociais e no descrédito da figura dos cientistas. Dessa forma, a utilização dessa retórica do medo permitiu criar uma situação de insegurança entre a população. O artigo também aponta que o “tecnoprodutivismo”, voltado aos interesses do mercado e presente na formação e na atuação dos pesquisadores e das pesquisadoras, contribui com o descrédito na ciência e propõe uma outra forma de produção de saber científico, preocupado com os problemas sociais. Macedo não só contribui para as discussões sobre a estrutura do negacionismo da extrema-direita, mas também faz uma autocrítica ao campo científico contemporâneo.
Findada a apresentação dos artigos que compõem o dossiê, comentaremos a seguir os artigos livres que integram o décimo sétimo número da REH. O primeiro da lista é “Transição brasileira ao capitalismo e forma jurídica: por uma nova agenda de pesquisa”, escrito por Luccas Bernacchio Gissoni, que expõe uma proposta de abordagem original aos estudos dos modos de produção na história brasileira, mais especificamente aqueles que se debruçam em compreender a transição brasileira ao capitalismo, através dos referenciais teórico-metodológicos do jurista soviético Evgueni Pachukanis. A agenda de pesquisa apresentada por Gissoni é uma significativa contribuição aos estudos do pensamento social latino-americano.
O próximo artigo é “Bandeiras negras na Amazônia: os grupos de afinidade anarquistas em Belém do Pará (1912-1927)”, de Marcos Lucas Abreu Braga, cujo objetivo é analisar a ação política dos grupos anarquistas em Belém (Pará), entre as décadas de 1910 e 1920, por meio da imprensa anarquista e operária. A novidade do artigo de Marcos Braga é o exercício de se fazer uma história inter-regional do anarquismo ao comparar as táticas utilizadas pelos agrupamentos belenenses com as de outros movimentos similares em São Paulo.
Entrelaçando elementos religiosos e sistema político durante a pandemia do novo Coronavírus, o artigo “Espiritualidade como estratégia de resistência: o tarô como orientação espiritual em tempos de negacionismo e pandemia de COVID-19”, escrito por José Lucas Vilas-Boas Oliveira, aponta a prática do tarô como uma tática – ou uma resistência cotidiana – dos sujeitos às estratégias bolsonaristas: negacionismo, discurso de ódio, ataque às minorias. O texto de Vilas-Boas Oliveira é exemplo de um passo interessante para a abordagem do esoterismo como uma ferramenta não apenas religiosa, mas também política.
O tema da formação das comunidades quilombolas e das ações em prol da preservação das culturas locais está presente no artigo “Quilombo de Helvécia: do reconhecimento à luta pela preservação da memória local (2004-2013)”, de Paulo Vinícius Brito dos Santos Oliveira. Neste trabalho, o autor analisa a trajetória histórica do Quilombo de Helvécia, localizado na Bahia, e reflete as ações de preservação dos saberes autóctones, realizados pelos moradores da comunidade. Mesclando entrevistas com a bibliografia, Oliveira apresenta uma importante contribuição para os estudos que abordam a estruturação das comunidades quilombolas como espaços de resistência e de manutenção da cultura afro-brasileira.
Por fim, o artigo “O divino e o monstruoso na literatura: Movimentações religiosas e as representações de monstros nos folhetos ingleses modernos”, escrito por Luisa Padua Zanon, encerra o presente número. O trabalho de Zanon tem como escopo analisar as representações das figuras monstruosas existentes nos “impressos de rua” ingleses do Seiscentos através da interação entre o imaginário religioso e aspectos socioculturais e políticos do período. A autora destaca que a imagem de monstros refletiu um desconforto social ante uma conjuntura marcada pelas tensões políticas e pelo medo imposto no discurso religioso.
Acreditamos que os artigos reunidos neste número da Revista Escrita da História, escritos por pesquisadoras e pesquisadores das mais variadas áreas do conhecimento humano e de distintas instituições de ensino, contribuirão para prolíferos debates dentro e fora do campo acadêmico.
Boa leitura a todas e todos!
Organizador
Isaac Harillo Jerez
Referências desta apresentação
PEREIRA JÚNIOR, Paulo Alves. Apresentação. Escrita da História, v. 9, n.17, p. 1-4, jan./jun. 2022. Acessar publicação original [DR]
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