Necropolítica
Achille Mbembe, ou Joseph-Achille Mbembe, é um pensador, professor e filósofo contemporâneo nascido no ano de 1957 em Centre, Camarões, que tem trazido grandes contribuições para o estudo do pós-colonialismo e, ao longo da produção aqui apresentada, tem a habilidade de relacionar diferentes realidades em uma mesma linha de raciocínio, com interpretações significativas e coerentes.
Necropolítica, em sua proposta inicial, foi publicado no Brasil pela primeira vez no ano de 2016, em forma de artigo, na revista Arte & Ensaio, vinculada ao Programa de PósGraduação em Artes Visuais da Escola de Belas Artes da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Quanto ao livro, teve publicação em 2018 e, ao longo de poucas páginas, dividese em cinco tópicos que contam com discussões muito precisas, capazes de fazer conexões entre a contemporaneidade e as heranças históricas construídas a partir de práticas de dominação do Estado – que, através de discursos racistas e excludentes, fez emergir as mais variadas formas de violência e genocídio.
O ponto de partida para as reflexões desenvolvidas por Mbembe é o conceito de biopoder. Pautado nos escritos de Foucault, o intelectual africano traz argumentos que relacionam a dura perspectiva do deixar viver e deixar morrer como uma realidade segregadora, cunhada e mantida pelo Estado que, como esfera dominante, continua a exercer tais poderes, o que para Mbembe é uma característica colonial que permanece em curso. Ao longo do texto, o pensador dialoga com Frantz Fanon, Hannah Arendt, Paul Gilroy, Zygmunt Bauman, dentre outros intelectuais, que o auxiliaram a construir reflexões sobre política, Estado e morte. Em linhas gerais, é possível dizer que o ensaio evidencia uma estrutura de dominação secular que, longe de ser obsoleta, encontra-se cada vez mais fortalecida e renovada, disfarçada de soberania e manutenção da ordem social vigente, dando ao Estado “autorização” para exercer o direito de matar.
Embora a problemática central da obra embase-se na linha de reflexão acerca do biopoder, o escritor demonstra, por meio de uma série de exemplos e argumentos, que essa noção “é insuficiente para dar conta das formas contemporâneas de submissão da vida ao poder da morte” (MBEMBE, 2018, p. 71). Durante a leitura, emerge a percepção de sociedades constituídas por ciclos repetitivos e estruturas (re)significadas, mas com ideais de dominação autoritários, praticamente inalterados.
No anseio de responder questões que entrecruzam biopoder, noção de soberania e Estado de exceção, o autor pontua que o conceito de soberania se relaciona com o cerne da autonomia e da liberdade. Porém, preocupa-se com outras formas de soberania, com foco naquela em que o projeto central não é a luta por autonomia, mas a instrumentalização generalizada da existência humana e a destruição material dos corpos humanos e das populações.
Observando-se o contexto político de várias nações, na atualidade, inclusive do Brasil, pode-se compreender exatamente como a noção de soberania é distorcida e passa a fazer parte de uma lógica que não se preocupa em evitar mortes, mas permite uma atuação estatal em que o risco de morte é iminente, visto que Mbembe trata da política como o trabalho da morte e da soberania como o direito de matar. Seguindo o paralelo com a realidade brasileira, é possível fazermos associações com o próprio genocídio da população negra, vítima constante de determinadas esferas governamentais que, com a promoção de políticas de “segurança” e estratégias de combate ao crime, passam a ter liberdade para exercer o trabalho de matar e, nessa ótica, os discursos pautados na soberania acabam legitimando o Estado a fazer tal “controle” social. Tomando como exemplo as ações e práticas desenvolvidas pelo Estado de exceção enquanto um meio de garantir a soberania a qualquer custo, o autor faz referências ao Holocausto, para que possamos compreender não apenas as justificativas políticas desse mal incomparável, mas ainda para perceber os campos de mortes/concentração e extermínio como “metáfora central para a violência soberana e destrutiva”, “o último sinal do poder absoluto do negativo” (MBEMBE, 2018, p. 7).
No início da obra, Mbembe considera que a Modernidade esteve na origem de vários conceitos de soberania e da biopolítica contemporânea e que, atrelada à Modernidade, a razão foi um dos elementos mais importantes desta articulação. A partir daí, seguimos a leitura fazendo conexões entre política, razão e desrazão, sendo a razão a verdade do sujeito e a política o exercício da razão em esfera pública. Assim, a razão teria relação com autonomia e liberdade e a soberania com a construção de limites, em uma perspectiva normativa (quase controladora) de padrões gerais de sujeitos e comunidades/povos/corpos. Nessa esteira, as experiências contemporâneas de destruição humana possibilitam desenvolver uma leitura política dos sujeitos e da soberania de modo distinto do que nos foi apresentado na Modernidade; partindo da necessidade de reconfigurar formas de percepção dos indivíduos, ao invés de considerar a razão como a verdade do sujeito, podemos olhar para categorias mais palpáveis como a vida e a morte, esta última como um aspecto atrelado à ideia de soberania, à política e aos sujeitos. Na sequência da obra, o autor discute tais assuntos com base em perspectivas filosóficas de Hegel e Georges Bataille, para apresentar uma leitura da política como o trabalho da morte.
O movimento de escrita do autor traz a dinâmica sócio-histórica que, perpassando a escravidão e as ações coloniais do passado, demarca os domínios da razão até chegar à contemporaneidade, para explicar a ideia de terror moderno. Há considerações pendulares acerca da destituição da humanidade de sujeitos escravizados na Idade Moderna, período este, que segundo Mbembe, é o resultado de uma das primeiras manifestações da experimentação biopolítica que, por meio do sistema de plantation, “manifesta a figura emblemática e paradoxal do Estado de exceção” (MBEMBE, 2018, p. 27).
Na sequência, o autor problematiza como as guerras coloniais se articulavam de modo diferente entre os “civilizados” (colonizadores) e os “selvagens” (colonizados). Nesse confronto, havia sempre lugares delimitados, marcados por relações de poder e dominação que trabalhavam a serviço da “civilização”. O trecho do ensaio que apresenta tais discussões é permeado por dualidades e dicotomias − cidadãos e não cidadãos, ordem e desordem, mundo humano e mundo selvagem, dentre outras polaridades, que tentam definir o modo como as colônias e seus habitantes eram vistos aos olhos do colonizador. Para Mbembe, tal movimento de “ocupação colonial” tratava-se de “uma questão de apreensão, demarcação e afirmação do controle físico e geográfico” (MBEMBE, 2018, p. 38), exercidos a partir da territorialização e criação de fronteiras e hierarquias, aspectos cruciais para a produção de imaginários culturais, que além de classificar as pessoas de acordo com diferentes categorias, deram base à instituição de direitos diferenciados para cada categoria de pessoas, com fins diferentes dentro de um mesmo espaço. Tem-se neste projeto social estruturante o exercício da soberania.
Ao longo de todo o ensaio, conseguimos observar inúmeras especificidades acerca do modo com que a soberania opera, porém todas dialogam no sentido de pensá-la como uma estrutura ou mecanismo organizacional do Estado que tem a capacidade de definir quem importa e quem não importa, quem deve viver e quem deve morrer. Para o intelectual camaronês, a ideia de morte não se limita ao corpo físico, mas abarca a eliminação da condição humana e vontade de opinar e decidir sobre a própria vida.
Na segunda metade da obra, no tópico Necropoder e ocupação colonial na modernidade tardia, as discussões nos ajudam a entender e apreender o conceito de necropoder através de exemplos e argumentos contemporâneos; para o autor, “a forma mais bem-sucedida de necropoder é a ocupação colonial contemporânea da Palestina” (MBEMBE, 2018, p. 41) e o conceito de necropoder pode ser observado por meio da ocupação da Faixa de Gaza, que apresenta “a dinâmica de fragmentação territorial, o acesso proibido a certas zonas e a expansão dos assentamentos” (MBEMBE, 2018, p. 43). Mbembe explica que a ocupação colonial é um encadeamento de vários poderes: disciplinar, biopolítico e necropolítico. Essa tríade, marcada em grande parte pelo terror, possibilita ao poder colonial a dominação absoluta sobre os habitantes do território “ocupado”.
Por fim, o último aspecto discutido por Mbembe refere-se às guerras contemporâneas que, para ele, não são mais desencadeadas por ideais de conquistas e territorialização, mas movidas no anseio de forçar o inimigo à submissão. Isso é feito sem considerar as consequências e os danos colaterais das ações militares marcadas pela violência e dominação do Estado, que em várias circunstâncias vem a se transformar, se apropriar ou ajudar a criar máquinas de guerras e “mundos de morte” (MBEMBE, 2018, p. 71).
Há uma série de explicações muito bem amarradas sobre o modo como política, soberania, Estado de exceção e estado de sítio são articulações sociais marcadas por relações de poder que definem, em uma lógica foucaultiana, quem deve viver e quem deve morrer, pautando-se no viés biológico que estabelece inúmeras divisões em subgrupos e é descrito como “racismo”. Nessa perspectiva, o intelectual desenvolve e dá sentido singular à noção de biopoder em um viés da racialização, que é estruturado por estratégias de poder e políticas de morte, historicamente constituídas pelo pensamento ocidental de desumanização de sujeitos/povos estrangeiros.
É interessante o modo como Mbembe traz a discussão sobre racismo, que não diverge da noção de racismo no Brasil, mas que é incorporada ao seu texto em uma análise macro, evidenciando mais aspectos biológicos como elementos classificatórios e segregadores do que sociais, propriamente ditos. Por outro lado, considerar que a função do racismo é regular a distribuição da morte e tornar possíveis as funções assassinas do Estado nunca nos soou tão familiar, pensando-se principalmente na inter-relação entre terror e morte, categorias estruturantes da soberania, que no Brasil é branca e heteronormativa.
Resenhista
Merylin Ricieli dos Santos – Doutoranda em História na Universidade do Estado de Santa Catarina – UDESC. E-mail: merylinricisantos@gmail.com
Referências desta Resenha
MBEMBE, Achille. Necropolítica. São Paulo: N-1 edições, 2018. Resenha de: SANTOS, Merylin Ricieli dos. PerCursos. Florianópolis, v. 20, n. 44, p.304 – 309, set./dez. 2019. Acessar publicação original [DR]