A consolidação da História Global como um campo historiográfico, que ganhou força a partir dos anos 2000, esteve relacionada a intensos debates sobre ausências e silêncios que o campo parecia perpetuar. Atualmente, é consensual nos estudos africanos que uma escrita da história tendo como base a perspectiva da “virada global” não deu a devida atenção para o lugar que a África ocupou – e ocupa – nas dinâmicas de interconexões e interrelações mundiais que buscavam ser evidenciadas. A esse propósito, como recorda o historiador Andreas Eckert, desde a década de 1950 o senegalês Cheikh Anta Diop, um dos intelectuais africanos mais conhecido e pioneiro na promoção de uma história da África fora de balizas europeias coloniais, tinha como uma de suas principais prerrogativas “reconfigurar o lugar da África no Mundo”.1
Navigating Socialist Encounters vai, justamente, ao encontro da proposta de Diop. Burton e Schenck, consolidados pesquisadores e professores de História Global, e Dietrich e Harisch, doutorandos que estão se especializando na história das relações comerciais entre África e Europa Oriental durante a Guerra Fria, selecionaram textos que centram suas análises nas relações estabelecidas entre a República Democrática Alemã (vulgarmente chamada de Alemanha Oriental, doravante RDA), movimentos de libertação, como o Movimento Popular para a Libertação de Angola (MPLA) e a Frente de Libertação de Moçambique (Frelimo), e os Estados nacionais africanos. A coletânea aborda os desafios, limites e possibilidades das conexões globais engendradas pelos desejos alternativos de futuro que foram promovidos nos contextos de descolonização africana na segunda metade do século XX.
Mais do que apresentar a coletânea em si, a introdução do livro, escrita pelos organizadores, problematiza o campo de investigação da História Global e sua relação com os estudos africanos, destacando a importância das experiências socialistas na África como espaço de investigação potencializador de leituras múltiplas sobre globalização e Guerra Fria. O capítulo introdutório sintetiza os esforços historiográficos sobre a temática central do livro e os debates sobre as dinâmicas e contextos históricos em análise. A extensa bibliografia citada merece destaque, sendo um excelente roteiro de leituras para investigadores/as interessado/as em se iniciar no assunto.
A unificação de um socialismo internacional esteve, ao longo da segunda metade do século XX, permanentemente em debate e o continente africano não estava ausente. Os significados do que viria a ser “socialismo” e “internacionalismo” não foram neutros e provocaram constantes conflitos, fazendo com que nunca houvesse “uma compreensão universalmente compartilhada ou estável de onde o mundo socialista começou e onde terminou” (p. 3). Por um lado, a empolgação africana inicial em estabelecer parcerias com a RDA, o que condizia com o potencial da nova guinada nas relações África-Europa a partir das independências do continente, não foi sempre compartilhada pelos indivíduos e instituições alemães. Ao longo dos capítulos do livro nos são apresentados diferentes motivos para as expectativas discrepantes, como as dificuldades de infraestrutura, a permanência da colonialidade no exercício das relações internacionais, o jogo de influências e disputas entre os blocos da Guerra Fria e o persistente racismo que, apesar de combatido oficialmente e negado pela RDA, nunca deixou de estar presente. Por outro lado, os exemplos de cooperação e de tensões analisadas reforçam a necessidade de tornar mais complexas as interpretações sobre o comportamento de pessoas e do Estados, sobretudo africanos, no contexto da Guerra Fria.
As variadas e, muitas vezes, conflitantes relações estabelecidas entre países africanos, União Soviética, Europa oriental e RDA, no período em questão, corresponderam à construção de conexões inéditas que se esforçavam em não se basear nos escombros do passado colonial. Os acordos, trocas e circuitos estabelecidos por essas novas relações apresentavam-se como uma alternativa às relações internacionais vigentes. Por meio de uma diversidade metodológica, de fontes (memórias, literatura, fontes oficiais, arquivos privados e de instituições, fotografias e audiovisual) localizadas em arquivos na Europa e na África, usados de maneira bastante criativa e plural, o livro é um passo importante para a supressão das lacunas nas pesquisas da História da África numa perspectiva da História Global. Pelo menos até o final da década de 1980, o “mundo comunista” e os Estados africanos deram respostas aos esforços monopolizadores da globalização enquanto fenômeno “ocidental”. Nesse sentido, a globalização foi compreendida pelos autores como um fenômeno plural. Incorporar a África e as experiências socialistas de solidariedade e mobilidade internacional em que africanos e africanas estiveram envolvidos, ainda que muitas vezes de maneira efêmera, nas análises promovidas pela História Global significa lançar luz sobre as alternativas inicialmente concebidas para serem independentes “das falhas imperiais que caracterizaram a globalização liberal que se ergueu das cinzas dos impérios coloniais” (p. 6).
Uma outra globalização foi tentada, terminou frustrada, mas continua no cerne de disputas. Seguindo essa perspectiva, um lamento relatado pelos organizadores da coletânea merece ser apresentado. Ele é exemplar sobre os limites das lutas por uma equidade na produção acadêmica que suplante hierarquizações regionais, questão relevante no esforço da inserção africana – e de muitos outros espaços e sujeitos “periféricos” – na globalização no passado e no presente.
Os capítulos do livro foram escritos por autores e autoras de diferentes nacionalidades, com variadas formações e falantes de diferentes línguas. Ao tentarem contornar as barreiras linguísticas que envolvem um projeto como este, não foi possível continuar com o plano inicial de publicá-lo em três idiomas (alemão, inglês e português). O globish como fenômeno hegemônico de escrita da História Global e as regras correntes do mercado editorial acadêmico obrigaram-nos a usar o inglês como a língua de trabalho. Porém, ainda que a língua permaneça como um limite, os organizadores ao menos conseguiram manter um dos intuitos iniciais da obra, qual seja o download gratuito, permitindo que um público mais amplo possa ler um material que de outra maneira dificilmente chegaria até a África ou ao Brasil (p. 9).
Ao longo de catorze capítulos, seus autores dialogaram com formas alternativas de globalização que buscavam escapar do controle econômico, político e cultural dos Estados Unidos e das antigas metrópoles colonizadoras europeias. A divisão dos capítulos corresponde a três momentos distintos do enredamento que existiu entre a RDA e indivíduos, instituições e Estados africanos. Os cinco primeiros capítulos, com escalas distintas de aproximação do objeto investigado, abordam os desafios iniciais de formação dos acordos bilaterais no campo da educação, formação profissional ou na troca de mão de obra especializada. Os cinco capítulos seguintes reduzem o escopo de análise para as experiências e memórias ocasionadas pelos (des) encontros de homens e mulheres africanos na navegação dos novos mundos abertos, tanto na própria RDA, como no retorno a seus territórios originários. Por último, temos quatro capítulos que se concentram no debate de fontes que elaboraram um imaginário sobre a solidariedade entre a RDA, Angola e Moçambique, por meio de recursos imagéticos (audiovisuais e fotográficos) ou pela literatura, especialmente de cunho memorialístico. O texto de Katrin Bahr, por exemplo, produz uma instigante análise a partir do cruzamento entre a importância da fotografia para modelar o olhar europeu sobre a África, a produção de imagens oficiais em regimes socialistas, a perpetuação de uma continuidade imagética na relação entre colonizadores e colonizados no período pós-colonial e o impacto destes fatores na produção de coleções privadas de fotografias, para nos trazer um olhar intimista e para além da propaganda oficial da solidariedade entre a RDA e Moçambique.
Alguns capítulos abordam as ações de africanos e africanas, de diferentes classes e origens, na busca por participar do jogo das disputas diplomáticas a seu favor, assim como as maneiras como as experiências de africanos/as na RDA produziram ondas de transformações locais e internacionais, tanto em nível micro, nas relações cotidianas interpessoais, como macro, na diplomacia e nos projetos econômicos multilaterais. Outros capítulos evidenciam a complexidade das relações institucionais entre Estados africanos (Quênia, Egito, Zanzibar, Etiópia. Gana, Tanzânia, Angola e Moçambique) e a RDA. O difícil e incerto jogo travado pela busca de futuros alternativos, impactado pelos projetos nacionalistas de construção das bases para os novos países que nasciam na África, ou projetos individuais para adquirir habilidades que permitissem um futuro distante das condições prévias de vida, passou pela criação de oportunidades que foram sendo abertas na medida em que parcerias, marcadas por muitas fissuras, foram estabelecidas entre os “mundos socialistas” e a capacidade de manipular, ao mesmo tempo em que construía, a globalização socialista pretendida.
Por conseguirem trazer à tona o dia a dia dos (des)encontros produzidos pelas experiências de solidariedade entre a RDA e a África, merecem destaque os capítulos que analisam a construção de grupos sociais específicos, como os madjermanes, analisados por Fernando Agostinho Machava;2 ou que trazem depoimentos de africanos e africanas, em diferentes tempos históricos, sobre suas experiências individuais na RDA, como é o caso do capítulo 7 (relato de J. A. Osei, estudante ganense que esteve na RDA em 1964, comentado por Immanuel R. Harisch); e os capítulos 9 e 10, ambos produzidos por Marcia C. Schenck, que trazem os depoimentos de Francisca Raposo e Ibraimo Alberto, dois moçambicanos que construíram suas vidas na RDA. Dar espaço para trechos ou depoimentos completos dessas pessoas deve ser louvado como um exercício epistemológico bem- -sucedido de trazer para a frente do debate a fala dos sujeitos envolvidos nas análises historiográficas.
A diversidade de autores/as e de tipos de aproximações com o passado promove uma diversidade de perspectivas que enriquece as interpretações e análises encontradas no livro. O que há em comum entre os depoimentos e os demais artigos é a percepção, quando não a experiência, do racismo, sempre minimizado ou negado pelo discurso oficial da RDA, na vida das africanas e africanos que viveram em solo alemão. Ao mesmo tempo, as experiências de discriminação racial foram forte combustível para que africanos e africanas unissem forças para continuar trilhando seus caminhos em um território que prometia um mar de possibilidades, mas não deixava de estar repleto de ondas hostis. Esse é o tema, por exemplo, do capítulo 3, de Cristian Alvarado, que trata de estudantes quenianos na RDA e na Iugoslávia entre 1964 e 1968.
Outros artigos chamam a atenção pelas informações até o momento deixadas à margem pela bibliografia especializada, como é o caso do capítulo 12, de George Bodie. Ao analisar a trajetória do mais conhecido correspondente internacional da RDA e “jornalista de partido”, Ulrich Makosch, quando este esteve na África, Bodie preenche uma lacuna nas pesquisas sobre cinema moçambicano, que até o momento ignoravam os três documentários produzidos para a televisão alemã por Makosch, respectivamente Mozambique – The Struggle Continues (1973), FRELIMO’s Children (1974) e Victors on the Zambezi (1975).3
Uma importante crítica precisa ser feita aos capítulos que têm como objetivo analisar a relação RDA-África, e não vice-versa, como é o caso, entre outros, dos textos de Bodie e Paul Sprute. Os autores não partem da África e dos africanos/as para analisar a diáspora africana para o “leste” europeu, mas da RDA e da experiência de alemães com a África. Em ambos os capítulos, ao adotarem esta perspectiva, apesar de válida para os objetivos que apresentam, terminam por, infelizmente, ignorar uma extensa bibliografia dos estudos africanos produzida em língua portuguesa, sobretudo para os contextos angolano e moçambicano. Seria inescapável a fundamental incorporação de perspectivas produzidas pelos meios acadêmicos de ambos os países, assim como a elaborada em outros espaços que têm dedicado especial atenção para a história desses países, como é o caso dos estudos produzidos no Brasil. Essa é uma questão que se torna relevante, visto que, dos catorze capítulos que compõe a obra, um deles é dedicado à relação RDA–Angola e oito sobre a relação institucional entre o Estado moçambicano e a RDA, a experiência de cidadãos da RDA em Moçambique e as experiências e memórias de cidadãos moçambicanos na RDA. A importância da relação RDA-Moçambique fica evidente ao longo do livro. Isto, porém, acaba por fazer com que alguns capítulos tragam informações e interpretações repetidas, que poderiam ter sido sintetizadas. A própria centralidade da RDA como polo aglutinador das relações estabelecidas entre a África e o “mundo socialista” pode ser, em análises futuras, reorganizada a partir de reflexões sobre as conexões desta com outras partes do mundo, especialmente aquelas com diferentes regiões do “Sul Global”.4 Isso demandaria não apenas um novo olhar historiográfico, como também uma reorganização das desigualdades acadêmicas globais.
Os futuros socialistas alternativos planejados quando das descolonizações foram, de certa maneira, eclipsados pelos “ventos de mudança” dos anos 1990. O minguar dos projetos socialistas nos Estados africanos contemporâneos não significa que apenas a partir daquele momento estes entraram na globalização. Como os organizadores do livro argumentam, o que passou a vigorar a partir de então foi a concepção de uma visão exclusiva de globalização produzida pelo “Ocidente”. O abandono dos projetos alternativos de modernidade e futuro representados pela “globalização vermelha”, frustrados por numerosos motivos, não apaga a existência prévia de esforços e a pluralidade de encontros e cooperações que permeavam a construção de relações da África pós-colonial com outras regiões do planeta na busca por futuros alternativos que escapassem ao peso dos legados coloniais.
Navigating Socialist Encounters é um livro que vem para somar à crescente bibliografia que tem apontado para a fundamental incorporação da África como parte integrante do mundo, trazendo uma importante contribuição para a História da África e uma fundamental crítica à História Global, deixando evidente como a história do continente foi negligenciada pela “virada global”. A relevância da incorporação das experiências africanas na História Global tem o potencial de apresentar a globalização como um fenômeno mais complexo do que algo emanado exclusivamente pelo “Ocidente”. As evidências empíricas e as muitas metodologias empregadas ao longo dos capítulos incorporam a história da África à dinâmica global, especialmente ao apresentar africanos e africanas como protagonistas históricos e não mero material de manobra dos cenários da Guerra Fria.
Ao mesmo tempo, o livro apresenta um campo potencial de pesquisa que ainda possui pouca penetração nos estudos africanos produzidos nas universidades brasileiras. Refiro-me ao fenômeno do Black East. 5 A pluralidade das experiências diaspóricas africanas, neste caso para a Europa Oriental durante a segunda metade do século XX, distinta daquela proveniente do tráfico de populações escravizadas para as Américas, ainda é pouco investigada no Brasil. Porém, a historiografia africanista produzida no país possui amplo potencial para aventurar-se em pesquisas inovadoras sobre o assunto, especialmente por conta do já grande corpo de análises elaboradas sobre os contextos das independências e do período pós- -colonial africano, especialmente de Angola e Moçambique, países que estabeleceram vivas relações com a Europa Oriental e outros países que compunham o “mundo socialista”.
Notas
1 Andreas Eckert, “A escrita da História e a virada global: perspectivas de um historiador de África”, Entrevista a Ana Carolina Schveitzer e William Blakemore Lyon, Esboços, v. 28, n. 48 (2021), p. 620.
2 Os madjermanes formam um grupo de trabalhadores moçambicanos que estiveram na RDA, entre 1979 e 1990. Ao regressarem para Moçambique ficaram conhecidos por terem bens de consumo de difícil acesso local e considerados de luxo, e criaram um mercado paralelo de venda desses produtos, que simbolizavam o que então havia de mais moderno no país.
3 Nenhum destes filmes foi analisado ou mesmo listado pela bibliografia especializada sobre o cinema moçambicano. Ver Ros Gray, “Cinema on the Cultural Front: Film-making and the Mozambican Revolution”, Journal of African Cinemas, v. 3, n. 2 (2012), pp. 139-160; Guido Convents, Os moçambicanos perante o cinema e o audiovisual: uma história político-cultural do Moçambique colonial até à República de Moçambique (1896-2010), Maputo: Dockanema, 2011; e Raquel Schefer, “Mal de arquivo: uma aproximação ao arquivo anti-colonial moçambicano a partir da obra de Ruy Guerra”, Observatorio (OBS*) Journal, Edição especial (2020), pp. 52-72.
4 Esforços recentes tentam suprir essa lacuna e apresentar a potencialidade de pesquisas dentro desta perspectiva. Ver Priscila Dorella e Matheus Serva Pereira (orgs.), “Dossiê Especial. América Latina – Moçambique / Moçambique – América Latina”, Revista Eletrônica da ANPHLAC, v. 22, n. 32 (2022).
5 Sobre o conceito de “Black East”, ver Marcia C. Schenck, “Constructing and Deconstructing the ‘Black East’ – A Helpful Research Agenda?”, Stichproben. Vienna Journal of African Studies, v. 18, n. 34 (2018), pp. 135-152.
Resenhista
Matheus Serva Pereira – Universidade de Lisboa. https://orcid.org/0000-0001-6757-6088
Referências desta Resenha
BURTON, Eric; DIETRICH, Anne; HARISCH, Immanuel R.; SCHENCK, Marcia C. (Orgs.). Navigating Socialist Encounters: Moorings and (Dis)Entanglements between Africa and East Germany during the Cold War. Berlim e Boston: De Gruyter Oldenbourg, 2021. Resenha de: PEREIRA, Matheus Serva. Encontros socialistas e projetos alternativos de globalização durante a Guerra Fria. Afro-Ásia, 66, p. 704-712, 2022. Acessar publicação original [DR/JF]
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