Pensar a Tríplice Fronteira para além das fronteiras nacionais da Argentina, do Brasil e do Paraguai não é uma tarefa simples. O próprio termo possui pelo menos duas representações. Uma é a representação geográfica, ou seja, o encontro entre três países distintos. Outra é uma representação social abstrata, utilizada para explicar um dos lugares mais dinâmicos da América Latina. Em um esforço para dar historicidade a esse lugar, Zephir Frank se referiu à Tríplice Fronteira no tempo presente como “povoada com colonos, em grande parte desmatada, seus rios atrás de altas barragens, parte de uma zona econômica transnacional (Mercosul)”. É também um espaço de preservação ambiental (Parques Nacionais), está “entrecruzada por rodovias e pontes e permanece também um lugar de memória histórica e alteridade contemporânea nos caminhos nômades dos Guaranis” (2018, p. ix).
Os símbolos nacionais e as ações dos agentes dos Estados da região lembram aos cidadãos fronteiriços que cada lado da fronteira pertence a um respectivo país. De acordo com uma análise sobre questões cotidianas da fronteira Brasil-Paraguai, o nacionalismo expresso nas barreiras alfandegárias e imigratória indicariam que, metodologicamente, seria mais adequado se referir à “três partes” da fronteira e não em “uma” Tríplice Fronteira (LIMA JUNIOR, 2016). Contudo, uma perspectiva transnacional para a análise da Tríplice Fronteira se torna útil à medida em que o observador se afasta das questões cotidianas. Nesse sentido que o livro de Frederico Freitas, cujo título, em tradução livre, seria Nacionalizando a Natureza Cataratas do Iguaçu e Parques Nacionais na Fronteira Brasil-Argentina, tem como ponto de partida uma referência à Tríplice Fronteira como “um lócus de contenção geopolítica” (FREITAS, 2021, p. 6).
A proposição de Freitas sobre a questão geopolítica está associada ao término da Guerra da Tríplice Aliança (1870) e às estratégias do Brasil e da Argentina para demarcar seus respectivos territórios. Nesse sentido, as estratégias nacionais da virada do século XIX para o século XX passaram a considerar a criação de Parques Nacionais com finalidades que iam além da conservação ambiental. Sob a lógica de instrumento para a nacionalização da fronteira que, em 1934, do lado argentino da Tríplice Fronteira foi criado o Parque Nacional Iguazú. Em 1939, o governo brasileiro também criou o Parque Nacional do Iguaçu, do seu lado da fronteira. Praticamente homônimos, os Parques Nacionais tinham em comum a estratégia nacional e o fato de uma parte de seus territórios abrigar as Cataratas do rio Iguaçu.
A análise de Frederico Freitas ressalta o caráter nacional, por vezes até concorrente, de ambas as iniciativas. A concorrência só começou a ser rompida em nome de alguma aproximação na década de 1960, quando o Diretor do Parque Nacional Iguazú (lado argentino) fez uma visita ao seu par do lado brasileiro. Foi a primeira visita oficial e da ordem do dia constava uma reclamação dos argentinos. Alguns colonos, que viviam do lado brasileiro da fronteira, eram vistos caçando do lado argentino (FREITAS, 2021, p. 146). Naquela época, havia dois grupos de colonos que moravam em pequenas propriedades rurais dentro de ambos os Parques Nacionais. Como eles se estabeleceram no interior de uma área de preservação ambiental nacional, porque passaram a ser um problema e como foram retirados são algumas das perguntas que o autor procura elucidar nos primeiros capítulos do livro.
Na introdução, Freitas deixa claro que hoje, os Parques Nacionais dos lados brasileiro e argentino da fronteira servem a um “turismo de massa”, e se constitui em um dos pontos turísticos mais visitados da América do Sul. Anualmente, milhares de visitantes se concentram numa pequena na entrada dos parques para visitar as Cataratas do Iguaçu. O autor explicita três objetivos para o livro. O primeiro é historicizar os parques nacionais por meio “das práticas espaciais que reúnem diferentes grupos”. O segundo objetivo é compreender o que chamou de “mudança de paradigma” que afetaram as práticas sociais. Trata-se da mudança do sentido “desenvolvimentista” e geopolítico para o “conservacionista”. Na prática: o choque entre conservação, turismo e colonização fronteiriça. Por fim, o terceiro objetivo de Freitas é “avaliar o tipo de paisagem produzida por esses parques nacionais na Tríplice Fronteira” (FREITAS, 2021, p. 16).
A leitura do livro permite-nos aferir que o autor escreveu dois capítulos para cada objetivo mencionado. Assim, nos capítulos 1 e 2, a análise recai sobre o lado argentino e brasileiro, respectivamente. O recorte temporal vai do final do século XIX até a década de 1940. As principais fontes históricas nesses capítulos são os documentos de arquivos históricos argentinos e brasileiros. Os títulos são muito ilustrativos: “nacionalizando a fronteira” e “brincando de pega-pega”. A ilustração nem de longe pode ser considerada uma simplificação superficial. Pelo contrário, a leitura sempre em uma perspectiva comparada, revela a trama histórica por trás da criação dos Parques Nacionais que envolvem representantes, do lado brasileiro, o Governo Federal e o Estado do Paraná, e, do lado argentino, de Buenos Aires da Província de Misiones. Freitas também evidencia a economia regional voltada para a extração da erva-mate, a dependência da navegação argentina, e a atuação das elites políticas em nível estadual.
No diálogo entre as escalas, algumas elucidações sobre o nível local também são expressivas. A partir de fontes documentais de autoridades argentinas envolvidas no projeto de Parque Nacional, Frederico Freitas contraria uma afirmação comum na memória local segundo a qual havia uma dependência quase total da população de Foz do Iguaçu (Brasil) em relação à Puerto Iguazú (Argentina) no início do século XX (SILVA, 2021, p. 61). Freitas aponta indícios de que havia uma interdependência, à medida em que revela uma importante preocupação argentina em substituir a dependência de alimentação do lado brasileiro (FREITAS, 2021, p. 104).
As “práticas sociais” foram objetos do capítulo 3 “Um parque e uma cidade” e do capítulo 4 “Conflito de terras”. Ambos os capítulos analisam os colonos dentro dos Parques Nacionais argentino e brasileiro, respectivamente. Do lado argentino, os colonos foram atraídos para contribuir com o desenvolvimento econômico regional, sendo que a cidade fronteiriça de Puerto Iguazú foi planejada para ficar de fora da área do Parque Nacional. Mesmo assim, na década de 1950, havia cerca de 300 colonos que residiam em volta das Cataratas e não no núcleo da pequena cidade de Iguazú. Mais tarde, foram necessárias ações (incluindo o uso da força) para finalmente “livrar” a área de preservação ambiental da presença de colonos. Já do lado brasileiro, não houve uma política de “colonização fronteiriça” como observada do lado argentino. Apesar disso, os conflitos de terra do Oeste do Paraná estavam no pano de fundo dos motivos pelos quais, em 1970, havia 2500 colonos no Parque Nacional brasileiro. Mesmo sem incentivo oficial, duas vilas haviam se formado no interior do Parque Nacional do Iguaçu e se tornaram um problema para aqueles que, décadas após a criação dos parques, defendiam um novo paradigma. Renegando os objetivos de ocupação fronteiriça, os Parques Nacionais deveriam ser áreas livre da ocupação humana.
Se o livro de Freitas encerrasse no quarto capítulo, estaríamos diante de uma das melhores análises da História Ambiental e da História da Tríplice Fronteira. Contudo, o autor reservou aos leitores a melhor parte do livro nos capítulos 5 e 6 (“Vigilância e evasão”; “Uma visão de cima”, respectivamente). O capítulo 5 “retrata conflitos sobre os territórios local, nacional e transnacional na Tríplice Fronteira”, entre 1940 e 1970. Para ficar em alguns exemplos, o autor menciona conflitos entre caçadores e autoridades tanto do lado brasileiro quanto argentino. A presença de caçadores brasileiros e paraguaios no Parque Nacional Iguazú também são mencionados, assim como o início de uma incipiente cooperação entre agentes públicos para o enfrentamento do problema da caça ilegal no território de brasileiro e argentino. No capítulo 6, o autor lança mão do uso de fontes pouco utilizadas por historiadores. Freitas analisa imagens aéreas para explicar as mudanças na paisagem tanto dos Parques Nacionais quanto de toda a região, mais especificamente a formação das cidades na rota Curitiba-Foz do Iguaçu. Desse último capítulo, as contribuições de Freitas são únicas e extremamente relevantes, dentre as quais pelo menos duas merecem destaque.
As imagens aéreas e a reflexão de Freitas levam a considerações não usuais sobre a História do Paraná. Essa subárea da História do Brasil não tem estado muito em evidência, e mesmo quando é estudada, há fortes laços com a história de Curitiba ou tem um foco muito local. Também há que se considerar que os historiadores deram mais atenção à história em torno do rio Paraná que dos Parques Nacionais (WACHOWICZ, 1982). Contudo, Freitas analisa a história da ocupação do Oeste do Paraná a partir da BR-277. Essa ligação estratégica da região (e do Paraguai) com a capital do Estado e o litoral foi fundamental para a colonização e a formação das cidades na segunda metade do século XX. Com o recurso das imagens aéreas e a produção de mapas de excelente qualidade, o autor demonstra que de Cascavel a Foz do Iguaçu, todas as terras foram objetos de Companhias Colonizadoras, exceto Foz do Iguaçu. Em 1950, havia 16.421 habitantes no Oeste do Paraná, e vinte anos depois já somava quase 700 mil. A paisagem que era “um carpete de floresta”, em pouco tempo se transformou em fazendas e, de acordo com Freitas, a explicação para essa mudança passa pela abertura da estrada (BR-277) e da execução dos projetos de colonização (2021, p. 261, 266).
Freitas também não negligenciou a problemática questão indígena. Ao invés de fazer apenas menções ao trabalho na extração de erva-mate (o que teria sido mais simples e talvez justificável à luz do escopo e objeto), reconhece que a mão de obra indígena foi “crucial para o desenvolvimento e a colonização da região” (2021, p. 256). Além disso, questionou como a formação dos parques nacionais afetou os indígenas. Sobre esse tema, presente até então apenas em relatos orais, captados por antropólogos, Freitas encontrou indícios, em fontes documentais, de que as comunidades indígenas teriam vivido em lugares dentro do que depois se transformou no Parque Nacional do Iguaçu (e Iguazú). O uso das imagens aéreas também permitiu que fossem lançadas hipóteses sobre 3 possíveis áreas de ocupação indígena (FREITAS, 2021, p. 271).
Para concluir, a leitura dos dois últimos capítulos revelou um aspecto que o autor poderia ter explorado um pouco mais. Freitas deu pouca atenção à rota Paranaguá-Asunción e ao fato de que a partir da década de 1950, as iniciativas regionais respondiam a um processo de integração Brasil-Paraguai (LISBOA e MARTÍNEZ, 2021). Da mesma forma que, do lado brasileiro, Freitas utilizou as imagens aéreas disponíveis para ver o crescimento populacional e o desmatamento da floresta atlântica, poderia se observar o mesmo fenômeno do lado Paraguaio. Em menos de três décadas, a paisagem ambiental da fronteira brasileiro-paraguaia seria completamente modificada pela construção das cidades, das fazendas e pela formação do lago de Itaipu. Evidentemente que incorporar esses elementos em sua análise o afastaria do recorte geográfico circunscrito aos Parques Nacionais. Nesse sentido que a leitura paralela de Frederico Freitas (2021) e Jacob Blanc (2019) é fortemente recomendada para aqueles que pretendem compreender a Tríplice Fronteira desde uma perspectiva para além de uma nação.
Referências
BLANC, J. Before the Flood: The Itaipu Dam and the Visibility of Rural Brazil. Durham: Duke University Press, 2019.
FRANK, Z. Foreword. In: BLANC, J.; FREITAS, F. Big Water: The Making of Borderlands Between Brazil, Argentina and Paraguay. Chicago: University of Arizona Press, 2018. p. vii-x.
FREITAS, F. Nationalizing Nature: Iguazu Falls and National Parks at the Brazil-Argentina Border. Cambridge: Cambridge University Press, 2021.
LIMA JUNIOR, J. B. Integração regional a partir da fronteira do Brasil, Argentina e Paraguai. Curitiba: Juruá, 2016.
LISBOA, M. T.; MARTÍNEZ, F. E. M. Path dependence in the Tri-Border Area. Canadian Journal of Latin American and Caribbean Studies, Toronto, 2021. 1-26.
SILVA, M. A. A Segunda Guerra Mundial e a Tríplice Fronteira: a vigilância aos “súditos do Eixo” alemães e italianos. Foz do Iguaçu: EDUNILA, 2021.
WACHOWICZ, R. Obrageiros mensus e colonos: história do oeste paranaense. Curitiba: Vicentina, 1982.
Resenhista
Micael Alvino da Silva – Historiador, é Doutor em História pela Universidade de São Paulo (USP), e professor de História das Relações Internacionais na Universidade Federal da Integração Latino-Americana (Unila). Foi pesquisador no National Archives (Washington, Estados Unidos), no Arquivo Histórico do Itamaraty (Rio de Janeiro) e no Arquivo Público do Paraná (Curitiba). Publicou dezenas de artigos acadêmicos e cinco livros, dentre eles A Segunda Guerra Mundial e a Tríplice Fronteira (Edunila, 2021).
Referências desta Resenha
FREITAS, F. Nationalizing Nature: Iguazu Falls and National Parks at the Brazil-Argentina Border. Cambridge: Cambridge University Press, 2021. Resenha de: SILVA, Micael Alvino da. Os Parques nacionais e a história transnancional da tríplice fronteira (Argentina, Brasil e Paraguai). Tempos Históricos. Marechal Cândido Rondon, v.26, n.1, p.300-306, 2022. https://e-revista.unioeste.br/index.php/temposhistoricos/article/view/27567/20757
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