Nas tramas da “cidade letrada”: sociabilidade dos intelectuais latino-americanos e as redes transnacionais | Adriane Vidal Costa

O movimento das ideias na América Latina (sua produção, circulação e apropriação) e a atuação dos sujeitos que lhes dão forma, os intelectuais, são agentes importantes para a compreensão da história da região e têm recebido atenção dos estudiosos há pelo menos algumas décadas. Sujeitos forjadores de discursos, os intelectuais agem na cultura (muitas vezes de forma estreita com o poder, como críticos ou sustentadores de sua ideologia), mobilizando signos para a transmissão de mensagens a serem decodificadas e/ou apropriadas. Na dinâmica entre matéria e subjetividade, operam a partir de relações, conectando espaços e sujeitos por meio de práticas individuais ou coletivas. As redes por eles gestadas transpassam frequentemente o espaço nacional, contribuindo para o questionamento da gênese de um pensamento, ao mesmo tempo em que possibilitam uma abertura contextual ao pesquisador que se debruçar sobre elas.

Essas reflexões são proporcionadas ao leitor de Nas tramas da “cidade letrada”: sociabilidade dos intelectuais latino-americanos e as redes transnacionais. Organizada por Adriane Vidal Costa, docente do Departamento de História da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), e Claudio Maíz, professor titular em Literatura Hispanoamericana Contemporánea na Universidad Nacional de Cuyo (UNCuyo), a obra é uma iniciativa do Núcleo de pesquisa em História das Américas (NUPHA) e do Programa de Pós-Graduação em História da UFMG, publicada no ano de 2018 como parte da coleção História da Editora Fino Traço.

Composta por dez capítulos, a coletânea reúne estudos de Jorge Myers, Claudia Wasserman, Eduardo Devés-Valdés, Alejandro Paredes, Carlos Henrique Armani, Marcela Croce, Rômulo Monte Alto, Natally Vieira Dias, além de Costa e Maíz. Autores que têm se dedicado, no contexto latino-americano, ao trato das ideias, dos intelectuais e de seus produtos culturais. Apesar de alguns desses capítulos terem sido anteriormente publicados em periódicos do subcontinente ou como parte de outros trabalhos, o presente livro ainda oferece, nesse formato, contribuições relevantes no Brasil para o campo das ciências humanas interessado em pensar a América Latina. Particularmente para a história intelectual, perspectiva teórico-metodológica que perpassa a obra – mas não só, pois ela se entrecruza com a história dos intelectuais, com a história transnacional, com a das ideias renovada, com as ferramentas da crítica literária, entre outros aportes.

Como observa Regina Crespo, docente da Universidad Nacional Autónoma de México (UNAM), quem assina a orelha, esse livro é o produto de uma rede intelectual tanto quanto o é seu objeto de estudo central. A primeira parte dessa constatação, pode ser melhor delineada por meio das trajetórias profissionais dos autores – atuando em instituições latino-americanas como professores titulares ou visitantes – e de um breve mapeamento de outras publicações coletivas para as quais contribuíram. Pontos que podem estar na origem da obra aqui em questão, esses trabalhos evidenciam, talvez, mais do que uma rede, a existência de um colegio invisible, na definição fornecida por Alejandro Paredes, apresentada no capítulo um. Ainda indicam o crescimento – apesar de deficitário (WASSERMAN, 2013, p.12) – do interesse nas interações intelectuais nos estudos latino-americanos.

Cabe ressaltar que a formação dessa rede de intelectuais foi facilitada pelas mudanças tecnológicas experimentadas com intensidade progressiva desde as últimas décadas do século XX, principalmente pela expansão das redes digitais. Favorecendo contatos e encontros, interferem no mundo do trabalho e da cultura nos quais estamos atualmente inseridos. Por compartilharmos dessa ampliação do significado das redes – das networks de John Barnes – há a preocupação dos organizadores em demarcar o objeto do livro, presença de outro momento da história: “Quando falamos de rede, não remetemos às redes sociais digitais, mas àquela trama relacional que os intelectuais produziram mediante trabalhos bem definidos” (p. 8). Já os intelectuais são identificados como sendo aqueles sujeitos “que se especializaram na produção de discursos, isto é, aqueles que dominaram a letra e, com isso, ganharam um status de autoridade” (p. 8).

Para Costa e Maíz, os intelectuais ou “letrados”, influentes nos séculos XIX e XX, foram perdendo certa centralidade na sociedade de massas. Apontam como marcos temporais para essa afirmação, a publicação de La ciudad letrada (1984), de Ángel Rama, e Decadencia y caída de la ciudad letrada (2003), de Jean Franco. No entanto, a proposição carece de uma maior problematização por parte dos autores. Acontecimentos recentes no Brasil e na América Latina têm demonstrado a força dos discursos, das “narrativas”, em debates que emergem do poder central ou das demandas sociais, envolvendo indivíduos e também as comunidades epistémicas (outro termo trabalhado por Paredes). A presença dos “intelectuais midiáticos” é, ademais, uma característica relevante do tempo presente (ALTAMIRANO, 2008, p.24). Assim sendo, muito mais do que a perda de influência dos intelectuais na “cidade letrada”, ocorreram mudanças nas práticas e nos dispositivos, no sentido atribuído por Michael Foucault e discutido na abertura da obra. Detentores de saberes, os “letrados” continuam exercendo poder entre a “cidade dos signos” e a “cidade real”, entendidas nas suas relações examinadas, por exemplo, por Rama (2015) – referência para os organizadores já sinalizada no próprio título da coletânea. Do mesmo modo, a ação dos intelectuais em rede é a cada dia mais frequente (ALTAMIRANO, 2008, p.25). Exemplo disso é a Rede de Estudos Andinos, apresentada por Rômulo Monte Alto, no capítulo nove.

Na introdução, ainda, Costa e Maíz desenvolvem uma breve reflexão, buscando explorar os aspectos subjetivos e a relevância dos estudos reticulares para o questionamento de alguns aspectos do paradigma moderno, como a centralidade do sujeito/autor e do estado-nação (e sua constituição homogênea e totalizadora), assim como o pressuposto da existência de um centro dominante emissor de conteúdo – única origem das ideias – e de periferias, suas receptoras – caso da América Latina. Partem da concepção de “caos-mundo” do escritor Édouard Glissant, da teoria do “ator-rede” do sociólogo Bruno Latour, do “personagem conceitual” elaborado pelos filósofos Gilles Deleuze e Pierre-Félix Guattari, além do “dispositivo” de Foucault. Essas formulações contribuem para a crítica de certos estigmas que pesam sobre as ideias latino-americanas, e permeiam os capítulos que, além do mais, revisitam conceitos caros à história dos intelectuais, como “campo”, “geração” e “influência”. Outra contribuição da obra é a consistente bibliografia que acompanha cada trabalho, permitindo, aos leitores interessados, o aprofundamento do tema exposto ou o desvio pelas múltiplas arestas que lhes são abertas. Algumas referências, não obstante, são de difícil acesso aos pesquisadores brasileiros, que frequentemente se deparam com as dificuldades em conhecer a historiografia produzida nos países vizinhos. Tendo isso em vista, a divulgação de trabalhos de autores do Brasil, Argentina e Chile, já atesta outro mérito da coletânea.

Apesar de Crespo, em termos gerais, estruturar o livro sobre quatro eixos básicos, sendo eles: epistolários, exílios, revistas e instituições, não há nenhuma divisão interna da obra. Estudos de caso se misturam a capítulos mais teóricos e os objetos trabalhados dão espaço, como mencionado, a outras possibilidades de classificação, seja pelo caráter das fontes ou pelo problema proposto. Dessa forma, a utilização de uma separação menos flexível seria problemática.

De los cuasi-grupos a los colegios invisibles: distintos modos de pensar la interacción entre intelectuales latinoamericanos durante el siglo XX, escrito por Paredes, aborda os diferentes conceitos que são mobilizados para tratar das tramas intelectuais. Em ordem de nível de organização, o autor destaca desde as relações mais espontâneas até as mais institucionalizadas.

Os capítulos de Croce, Iniciación en la utopia de América: la correspondencia como soporte del proyecto intelectual, e de Myers, El epistolario como conversación humanista: la correspondencia intelectual de Alfonso Reyes y Genaro Estrada 1916-1939, tratam das especificidades das cartas intelectuais. Demonstram, valorizando os elementos intangíveis, como a partir das correspondências é possível restituir os vínculos intelectuais, os debates, a formação do pensamento e da projeção dos intelectuais, além de depreender aspectos de personalidade, de biografia e dos climas de época.

Referência para os estudos eidéticos, Devés-Valdés, em La circulación de las ideas, una conceptualización: el caso de la teologia latinoamericana en Corea del Sur, propõe uma metodologia para a análise da circulação das ideias, a partir de “canais” e “energizadores” (remetendo, sinteticamente, ao uso de biografias), tendo por objeto a Teologia da Libertação latino-americana e sua chegada à Coreia do Sul nos anos 1970. O capítulo escrito por Maíz, La re(d)vistas latinoamericanas y las tramas culturales. Redes de difusión en el romanticismo y el modernismo, privilegia a análise dos processos de configuração de movimentos literários, em detrimento da pesquisa de produtos culturais acabados. O autor observa que, pelo caráter de contemporaneidade que apresentam, refletindo a cultura e a sociedade do momento, as revistas potencializam uma investigação por meio das redes e, assim como as correspondências, também podem ser ferramentas úteis para mapear as relações intelectuais.

O tema do exílio está presente nos estudos de Costa, Uma proposta teórico-metodológica para o estudo de redes intelectuais latino-americanas formadas nos exílios nas décadas de 1960 e 1970, e de Wasserman, Democracia e ditadura no Brasil e na Argentina: o papel dos intelectuais. O primeiro propõe pensar as especificidades da atuação dos intelectuais e das redes formadas no exílio, sugerindo um exame amparado na história intelectual e dos intelectuais em conexão com as redes, com a teoria sobre o exílio e com a história transnacional. O segundo se ocupa, comparando Argentina e Brasil, da volta dos exilados aos seus países de origem, pós-ditaduras – momento em que muitos espaços de sociabilidade haviam se modificado ou desaparecido – e dos debates em volta da democracia. Destaca como as diferentes tomadas de posição se relacionaram, muitas vezes, à maneira pela qual esses sujeitos se inseriram nas esferas de poder.

Capítulo de cunho mais teórico, História intelectual, contextos de la escritura y redes, escrito por Armani, discute o conjunto de contextos que forma uma produção textual e sua historicização a partir das filosofias de Martin Heidegger e Jacques Derrida. O autor se preocupa em demonstrar a necessidade de um tratamento mais aberto e relacional na construção do contexto pelas análises históricas.

Monte Alto, em Redes de Estudos Andinos, um marco da comarca latino-americana, faz uma apresentação da rede sobredita, formada em 2014, caracterizando-a como um projeto de descolonização que busca criar um diálogo verdadeiramente latino-americano. Para tanto, dialoga com os conceitos de “colonialidade do poder”, formulado por Aníbal Quijano, e de “heterogeneidade cultural”, de Antonio Cornejo Polar. Já Dias, em América Indígena e Boletín Indigenista: as publicações oficiais do Instituto Indigenista Interamericano e as vicissitudes da formação de uma rede intelectual transnacional em torno da instituição indigenista continental (1941-1945), debate a reconfiguração e os conflitos do Instituto Indigenista Interamericano, com a passagem da direção de Moisés Sáenz para a de Manuel Gamio, por meio de suas duas publicações.

Tarefa coletiva e de diálogo latino-americano, Nas tramas da “cidade letrada”, através de um panorama da mobilização das redes – seja como objeto de estudo ou como ferramenta heurística – revela, sob as lentes dos intelectuais, o desejo de apreensão da América Latina, valorizando os processos, os discursos e as representações que compõem a historicidade e que exprimem, sobretudo, a singularidade do território.

Referências

ALTAMIRANO, Carlos. Introducción general. In: MYERS, Jorge. (Ed.). Historia de los intelectuales en América Latina. La ciudad letrada, de la conquista al modernismo. Buenos Aires: Katz, v. 1, 2008, p.9-27.

WASSERMAN, Claudia. Apresentação. Anos 90: Revista do Programa de Pós-Graduação em História/UFRGS. Porto Alegre: PPGH, v. 20, n. 37, p.11-16, jul. 2013.

RAMA, Ángel. A cidade das letras. Trad. Emir Sader. São Paulo: Boitempo, 2015.


Resenhista

Karina de Oliveira Oyakawa – Mestranda em História Universidade Federal de São Paulo. E-mail: karinaoyakawa@gmail.com

Referências desta resenha


COSTA, Adriane Vidal; MAÍZ, Claudio. (Orgs.). Nas tramas da “cidade letrada”: sociabilidade dos intelectuais latino-americanos e as redes transnacionais. Belo Horizonte: Fino Traço, 2018. Resenha de: OYAKAWA, Karina de Oliveira. Temporalidades. Belo Horizonte, v.12, n.1, p.905-910, jan./abr. 2020. Acessar publicação original [DR]

Deixe um Comentário

Você precisa fazer login para publicar um comentário.