Nas ruas: abolicionismo/republicanismo e movimento operário no Recife | Felipe Azevedo e Souza
Há livros que costuram temas apaixonantes. Esse é um deles. Temas já clássicos na história do Brasil, como o abolicionismo, o republicanismo, o movimento operário, foram discutidos com o aporte de novos conceitos, base documental sólida e uma abordagem sensível às fontes, sem plainar no alto de teorias grandiloquentes que, não raro, deixam de escrutinar as experiências vividas pelos sujeitos. A História Política, que praticamente funda a História como ciência, tem em Felipe Azevedo e Silva um sopro renovador, um frescor que traz sujeitos subalternos ao centro de suas próprias inquietudes e projetos políticos. E aqui já expresso uma contribuição inestimável: o escrutínio do autor sobre as eleições nos últimos anos do Império e primeiras décadas da República tem muito a ensinar para nós, contemporâneos de uma República em crise, onde, para muitos, votar parece um fardo.
O autor escreve uma História Social que nos faz enxergar experiências da liberdade na escravidão, experiências negras na classe operária, conexões complexas entre rural e urbano, entre senzalas e fábricas. No livro, agitam-se velhas dicotomias, ainda que não escancaradamente mostradas, como o liberalismo e o personalismo das redes de clientela. A política (partidária, eleitoral, de organizações operárias) adentra o mundo comezinho das relações cotidianas, e volta para si com novos significados. Esse olhar sensível de Felipe Azevedo e Souza para gestos, para escolhas dos sujeitos, para a cultura política brasileira, vem de uma acuidade para dimensões antropológicas da dinâmica histórica. Ele está atento aos significados da ação: o braço, a facada, a proteção, o gesto político coletivo, o favor.
Velhos estereótipos de uma política sem povo são estilhaçados. A visão recorrente do elitismo, de campanhas políticas decididas de pronto pelas escolhas de chefes políticos tradicionais, cede lugar aos movimentos coletivos, a lideranças que agitam novas demandas sociais na aurora da República. Como esquecer o tipógrafo negro João Ezequiel, liderança política que lutou pela abolição e pelo socialismo na cidade do Recife? Como omitir o povo nas ruas durante a campanha política de 1884 em um Recife que assustou escravocratas trazendo o abolicionismo para os holofotes da política eleitoral? O autor não esquece, não omite.
O voto? Quem pode? Existe resistência e pressão política para além do voto? Sim. As reformas eleitorais conduzidas por uma classe política acuada persistiam no propósito de reduzir o eleitorado sob a desculpa do combate à corrupção eleitoral. A República do pós-abolição teme o novo. Um Estado tutelar acima do povo, tido por ignorante, inapto para o voto, para a cidadania. E, no entanto, demonstra o autor, clubes republicanos foram criados em diversos bairros do Recife; entidades operárias lançavam candidatos e faziam greves; os candidatos precisavam se mostrar populares em suas campanhas… não era um jogo de resultado previsível. Em 1884, mesmo aqueles que não estavam habilitados para votar, tomaram as ruas recifenses, inflamaram os discursos de um Joaquim Nabuco, de um José Mariano, lideranças políticas cujo maior mérito é o de trazerem a Abolição como projeto capaz de aprimorar a democracia. Lideranças políticas conservadoras, por outro lado, viam na massa de negros livres e libertos um aglomerado perigoso sobre o qual o Estado precisaria construir controles, regulamentos, exigências de maços de papéis para comprovar que podiam ser cidadãos. A burocracia como elitismo puro e simples.
A facada, mortes, engenho invadido. A campanha política de 1884, no Recife, teve debate público, escancarou a oposição entre abolicionistas e escravocratas, teve meetings (comícios), teve violência. Sim. O abolicionismo foi uma onda que tragou a política local. Uma onda que tragou os próprios Nabuco e José Mariano? Felipe Azevedo e Souza delicia os leitores e leitoras de diversos modos. Ao saber de rumores de que conservadores estavam fraudando as eleições, o “povo de Mariano” segue para a Igreja da Matriz de São José, conservadores correm com as urnas. Caos. Os ativistas abolicionistas adentram o recinto. O “povo de Mariano” tinha facas, os conservadores portavam revólveres. As facas fizeram mais estrago. Dois conservadores mortos. Que leitoras e leitores encontrem no livro mais detalhes do fatídico episódio.
O autor oferece ainda uma leitura cativante da chamada “sociedade do favor”. Abrir negócios, manter casas de jogo, manter casas “de feitiço”, evitar prisões ou multas, a proteção da honra. Nada era fácil sem o suporte das relações pessoais. Os “laços e redes” alimentavam aliados, pela exclusão, ao menos provisória, de adversários. Nesse contexto, desrespeitar leis ou aplicá-las de modo seletivo era norma. Ao conceito de clientelismo – vertical, hierárquico –, o autor contrapõe a Sociologia de Marcel Mauss. A dádiva como um sistema de trocas implica em prestações e contraprestações necessárias à manutenção e fortalecimento de vínculos sociais. E assim as máquinas partidárias se erguiam não necessariamente acima dos sujeitos, mas a partir das trocas e malhas que conectavam líderes partidários com a comunidade de sujeitos políticos: subdelegados, capangas, homens livres e libertos de cor. Em tempos de “precariedade estrutural da liberdade” (e Sidney Chalhoub adentra o texto), os negros viviam suas experiências no risco permanente do arbítrio. Por isso a burla, os arranjos miúdos com o poder, as trocas de favores. Muitos homens livres e libertos negros não poderiam viver tranquilos nos anos finais do Império e início da República. Mas não se trata apenas disso. Vejamos.
Os anos iniciais da República, no Recife, viram florescer espaços associativos diversos. Os clubes republicanos dos partidos que disputavam o voto dos eleitores se espalhavam pelos bairros, mesmo aqueles mais afastados dos mais famosos e ricos. Republicanos históricos (aqui mais associados aos antigos senhores de escravizados) e marianistas (mais federalistas e associados ao povo chamado de “turba inconsciente” pelos adversários) protagonizaram disputas intensas. Mesmo enfrentando comentários racistas, foi nesse cenário que um homem negro como Feliciano André Gomes assumiu diversos mandatos de deputado estadual. Da luta abolicionista à luta por direitos, o jogo político ganha contornos de uma luta contra o racismo e por direitos. Mais uma vez o autor escancara a porta. A historiografia tradicional fez o caminho de falar do que nos dificultava o caminho da cidadania: corrupção, mecanismos de controle do voto, adulteração de resultados… mas havia algo mais. O autor traz esse algo mais: as pessoas reais estavam praticando política não obstante coerções e limites, construindo um debate público sobre problemas reais. Mesmo que a solução para eles fosse engendrada na cultura política de “concessão de favores”. Mais uma vez assinalo a maturidade e a sensibilidade antropológica do historiador.
Se o abolicionismo foi uma escola para a política dos anos seguintes, associações de artífices engendraram as lutas operárias do período posterior. Até 1888, a abolição parece tudo absorver, e isso pode mesmo ter deixado o operariado para depois. Contudo, os chamados “artistas” (trabalhadores de arte e ofício, artesãos) puxam para si protagonismos e energias diversos. O pós-abolição não é um mero pós, é um período de luta pela qualificação e dignidade do trabalho, pela educação, pelo direito de fazer greves, por salários, período de construção de solidariedades horizontais entre operários, pautas e mais pautas. Nem sempre os operários alcançaram seus objetivos sem adentrar o terreno complexo do jogo conciliatório com membros das elites locais. E aqui Pernambuco e Bahia se aproximam na escrita do historiador, sensível também a uma história comparada.
Os trabalhadores estavam em movimento. Entre 1890 e 1906, mais de cinquenta greves, algumas delas articulando mais de uma categoria. Não eram apenas os artífices especializados. O socialismo em seus diversos tons não era desconhecido em solo pernambucano. A “questão social” conduz a debates sobre o modelo de sociedade como um todo. A capilaridade do Centro Protetor dos Operários, órgão espalhado por diversos municípios pernambucanos, na primeira década do século XX, sugere um poder associativo nada desprezível, com cerca de 6 mil trabalhadores nele engajados.
Um ponto lacunar do texto é a ausência de uma análise mais extensa sobre as mulheres pernambucanas que lutaram no movimento abolicionista. Decerto modo, falar do Clube do Cupim, do chamado “povo de Mariano” (o que é relevante por si só), de Nabuco e sua voz, e não trazer algumas páginas sobre a Sociedade Ave Libertas, entidade com algumas dezenas de associadas, silencia sobre um movimento hoje já relativamente conhecido. Uma pesquisa nominal poderia dizer quantas das mulheres associadas continuaram, no pós-abolição, a reclamar pelo direito ao voto, pela educação feminina, entre outras pautas.
O livro enfrenta, sem medo, temas muitas vezes imbrincados, manejando instrumentos sutis de percepção. Uma obra assim nem sempre se situa facilmente em algum escaninho do campo historiográfico. E que bom que assim seja. O autor atrai por fazer uma história que é tanto social como política, porque discute os temas na sua totalidade: sujeitos, experiências, significados.
Resenhista
Maciel Henrique Silva – Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Pernambuco. https://orcid.org/0000-0002-2198-2993
Referências desta Resenha
SOUZA, Felipe Azevedo e. Nas ruas: abolicionismo, republicanismo e movimento operário no Recife. Salvador: EDUFBA, 2021. Resenha de: SILVA, Maciel Henrique. Sujeitos políticos em cena. Afro-Ásia, 66, p. 607-611, 2022. Acessar publicação original [DR/JF]