WADI, Yonissa Marmitt (org). Narrativas sobre loucuras, sofrimentos e traumas. Curitiba: Máquina de Escrever, 2016. Resenha de: BATISTA, Gabriela Lopes. Descentrando lugares de enunciação: narrativas sobre loucuras, sofrimentos e traumas. Revista Tempo e Argumento, Florianópolis, v.10, n.24, p.605-610, abr./jun., 2018.
Refletir sobre narrativas de instituições e de pessoas consideradas loucas, ou outras nomenclaturas como “doentes mentais”, “portadores de transtornos mentais” ou “pessoas com sofrimento psíquico” configura-se como intuito principal do livro lançado no ano de 2016, sob o título “Narrativas sobre loucuras, sofrimentos e traumas”. A obra reúne artigos que são resultado dos encontros do projeto “Gênero, Instituições e Saber Psiquiátrico em Narrativas de Loucura”, que contou com financiamento do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e teve seu desenvolvimento na Universidade Estadual do Oeste do Paraná (UNIOESTE).
Yonissa Marmitt Wadi, organizadora do livro, é docente do curso de graduação em Ciências Sociais e dos programas de pós-graduação em História, Poder e Práticas Sociais e Ciências Sociais da UNIOESTE. Sua atuação abrange a História Cultural e a História das Ciências, destacando a história da loucura e psiquiatria.
De acordo com a organizadora da obra, os artigos desenvolvem reflexões acerca de narrativas que surgiram em situações que poderiam ser consideradas limítrofes da existência humana, ou que escapariam do que seria instituído no que se nomeia normalidade cotidiana. Tais situações limítrofes, por serem consideradas pertencentes a uma população que se encontra à margem da sociedade, estariam condenadas ao esquecimento, bem como “gestadas em meio a relações complexas que envolvem políticas, poderes e saberes em temporalidades distintas” (p. 16). Dessa forma, os sujeitos dessas experiências trazem à tona categorias como trauma e sofrimento, a partir das condições impostas em instituições de isolamento como manicômios e leprosários, ou de eventos como guerras.
O livro está dividido em oito capítulos que envolvem tais categorias e que concernem à experiência de sujeitos, ou às políticas das instituições que atuam com esses sujeitos, além do prefácio escrito por Rafael Huertas, doutor em Medicina e Cirurgia pela Universidade Complutense de Madri e professor de investigação no Instituto de História, do Centro de Ciências Humanas e Sociais, do Conselho Superior de Investigações Científicas (CSIC-Madri). A disposição dos oito capítulos foi organizada de forma que temáticas de abordagem similares ficassem próximas. institucionais. O primeiro, intitulado “Assistência psiquiátrica nacional: narrativas para uma política pública no contexto brasileiro (1940 a 1970)” tem como autores Ana Teresa Acatauassú Venancio e André Luiz de Carvalho Braga, ambos historiadores, no qual discutem a forma como diferentes setores do governo brasileiro ofereceram narrativas para consolidar a implementação de um órgão específico, o Serviço Nacional de Doenças Mentais (SNDM), que pudesse desenvolver ações para um projeto de assistência psiquiátrica, que os autores classificam como “indubitavelmente nacional”. Tais narrativas seriam oferecidas em documentos como relatórios governamentais do acervo da Divisão Nacional de Doenças Mentais (DINSAM), e em textos publicados em órgãos de divulgação mantidos pelo SNDM como os “Arquivos do Serviço Nacional de Doenças Mentais” e a “Revista Brasileira de Saúde Mental”. Já no segundo capítulo, a socióloga Teresa Ordorika Sacristán, no texto “Las historias clínicas: narraciones útiles para el análisis de la psiquiatrización de la sociedad”, reflete sobre reverberações de políticas criadas e suas aplicações nas instituições, utilizando, para tal, documentos clínicos. Em ambos os textos é possível perceber que o discurso médico-psiquiátrico possui códigos próprios e que se legitima por meio da propagação de ideias higienistas e eugênicas.
O terceiro e quarto capítulos direcionam-se às discussões de gênero nos discursos e nas instituições do Brasil e de Portugal. No caso brasileiro, Yonissa Marmitt Wadi e Telma Beiser de Melo Zara apresentam um pouco da trajetória de Stela do Patrocínio em “Problematizando o mundo: vida institucional e subjetivação no “falatório” de Stela do Patrocínio”. Como sugere o título, Stela ficou conhecida nas instituições manicomiais pelas quais passou ao longo de trinta anos pelo seu “falatório”, em que falava poeticamente sobre suas experiências e percepções do universo que a cercava, inclusive das instituições pelas quais passou. Diagnosticada como esquizofrênica, teve seu falatório gravado e, deste, originaram-se pesquisas que as autoras citam e utilizam ao longo do texto, principalmente os trechos em que Stela questionava, por meio de seu falatório, o casamento, papéis desempenhados por homens e mulheres na sociedade, ou mesmo a sua fala invisibilizada devido ao fato de ser mulher e interna. Já no caso português, Tiago Pires Marques em “Intimações do êxtase feminino: dois momentos da cultura da histeria em Portugal” analisa significados atribuídos ao êxtase nos âmbitos da religião e da ciência, e quais são os alargamentos ou alterações dos significados quando concernem à expressão do êxtase de mulheres, conferindo, na ciência, o encaminhamento de um diagnóstico do que por algum tempo fora uma patologia atribuída às mulheres: a histeria.
Em “Rastros de vidas: loucura e interdição civil na Comarca de Guarapuava-PR (1940-1950)”, a historiadora Abigail Duarte Petrini utiliza como fontes quatro processos de interdição, de forma que o objetivo descrito pela autora é “dar densidade às vidas das pessoas ditas loucas e aos conflitos e percalços de sua existência” (p. 121), percebendo, neste processo, como se configuraram as redes de relações sociais que operaram valores na Comarca de Guarapuava. A análise dos processos discute a forma que a vida dos sujeitos se transformou a partir de sua interdição, principalmente quando envolveram bens como propriedades, por exemplo, sejam urbanas ou rurais.
Os três capítulos que encerram a obra partem de discussões que utilizam o sofrimento como categoria de análise e privilegiam o uso de narrativas orais em contextos traumáticos. No sexto capítulo, “Lepra e narrativas de sofrimento na Argentina: considerações sobre o livro Dolor y Humanidad”, José Augusto Leandro e Silvana Oliveira analisam a referida obra escrita e publicada em Buenos Aires no ano de 1937. O livro fora uma iniciativa da instituição filantrópica Patronato de Leprosos e conta com 47 textos que foram selecionados através de um concurso literário. Os autores buscam ao longo do artigo estabelecer que a publicação do livro constituiu-se como um evento político de interesse que julgam imediato, que seria a aderência a um discurso em defesa da implementação de uma lei de isolamento compulsório para hansenianos no país. Além disso, buscam nas narrativas analisar “as dores da vida vislumbrada à margem de um mundo sadio na Argentina da década de 1930” (p. 149). Um ponto a ser destacado no trabalho consiste na afirmação de que a consciência da dor e/ou das motivações que a desencadearam colocaram a pessoa portadora de hanseníase em uma condição ativa, que seria de resistência.
O sofrimento e narrativas orais, relacionados à Segunda Guerra Mundial, estão presentes nos capítulos que encerram o livro. Méri Frotscher e Marcos Nestor Stein analisam o testemunho de uma mulher em “E estava tudo bem até começar a guerra: sofrimentos e ressentimentos em narrativas orais de uma refugiada da Segunda Guerra Mundial no Brasil”. Katharina H. fora deportada ainda na adolescência da Iugoslávia e enviada à Ucrânia, onde foi submetida a trabalhos forçados, assim como muitos outros que foram enviados para a URSS com o objetivo de reconstruir o país ainda durante a guerra, como parte de um acordo entre Stalin e os aliados. Debilitada e doente, dois anos e meio depois, fora dispensada, reencontrara seus familiares com os quais migrou para o Brasil, estabelecendo-se na colônia Entre Rios, localizada no município de Guarapuava-PR. Os autores analisam três entrevistas feitas com Katharina, realizadas nos anos de 1984, 2010 e 2012. Concluem que é possível perceber a reivindicação do estatuto de vítima, por conta de suas experiências que narram o sofrimento e trauma que remetem à deportação, expatriação e imigração.
Já no último capítulo, intitulado “Narrativas de sofrimento, narrativas de formação: reflexões sobre a autobiografia de uma refugiada da Segunda Guerra Mundial”, Beatriz Anselmo Olinto e Méri Frotsher analisam a autobiografia de Úrsula B., que, assim como Katharina, veio ao Brasil como refugiada da Segunda Guerra Mundial e estabelecera-se na colônia de Entre Rios. Salienta-se que a narrativa do trauma teria um efeito terapêutico de cura individual, lembrando às gerações futuras dos percalços pelos quais passara. A trajetória descrita por Úrsula perpassa não apenas sua vivência de guerra, mas também situa o leitor do cotidiano de sua família antes da guerra, abordando temas como casamento e maternidade. Relata também a experiência de êxodo e de estabelecimento no país que a abrigaria. As autoras finalizam ressaltando a importância contemporânea dos testemunhos, que emitem narrativas públicas de seus sofrimentos e que se relacionam à constituição de identidades que possuem o ressentimento e a melancolia como características.
O conjunto de artigos presente neste livro compreende uma importante diversidade de pesquisas que se dedicam a analisar narrativas de sujeitos que tiveram suas vozes relegadas ao esquecimento devido a fatores como institucionalização, gênero e guerras. Além disso, é pertinente ressaltar a discussão de políticas e implementação de instituições, como forma de compreender as práticas de marginalização e eugenia que Res estigmatizaram sujeitos a quem atribuíram patologias relacionadas à loucura, como a esquizofrenia, a histeria, entre outras. São experiências e emoções que podem ser ouvidas por meio das pesquisas.
Gabriela Lopes Batista – Doutoranda em História pela Universidade do Estado de Santa Catarina. – Florianópolis – SC – BRASIL E-mail: gabilopes04@yahoo.com.br.
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