Narrativas sobre África(s) a partir do Brasil | Aedos |2022
Boi Caprichoso | Foto: Bianca Paiva/Agência Brasil
Em toda a sua história, este é o primeiro dossiê da revista Aedos dedicado exclusivamente aos estudos relacionados ao continente africano e/ou às populações, culturas e tradições deste espaço geopolítico. Desde o final do século XX, muitas narrativas acadêmicas sobre a(s) África(s) têm sido produzidas a partir do Brasil, tendo um papel relevante na divulgação desses conhecimentos as revistas: ABPN, África e Africanidades, AbeÁfrica (UFRJ), Afro-Ásia (UFBA), África (USP), África(s) (UNEB), Dados de África(s) (UNILAB/UNEB), Cadernos de África Contemporânea (UNILAB), Kwanissa (UFMA) e a Revista Brasileira de Estudos Africanos (UFRGS). Contudo, tais divulgações ainda ocorrem em periódicos específicos e especializados nos estudos africanos, quando o almejado é que tais comunicações circulem também em revistas não especializadas, garantindo assim maior difusão e visibilidade dos vários espaços, tempos e povos no curso da história, associando os conhecimentos sem fundi-los, distinguindo-os sem separá-los (MANFREDO, 2012, p. 1-3).
Nesse sentido, o presente dossiê objetiva construir novos espaços de divulgação de saberes em relação às Áfricas, reunindo produções acadêmicas geradas no Brasil que lançam seus olhares para as múltiplas formas existenciais da África e dos(as) africanos(as), contribuindo para a descentralização acadêmica dos debates sobre essas temáticas.
Para o dossiê foi selecionado artigos que tinham como enfoque temporal “ocidental” os séculos XX e XXI, que realizassem análises sobre os processos pré-coloniais, coloniais, pós-coloniais e decoloniais no território africano, sobre as relações interafricanas e dessas sociedades para com outros países externos ao continente africano, e produções frutos de análises das mais diversas fontes históricas, como a literatura, história oral, jornais, cinema, entre outras fontes. A proposta deste dossiê também dialoga com pesquisas que problematizam as representações das Áfricas e dos(as) africanos(as) no mundo ocidental, as quais são fixadas “pelos nossos códigos culturais”, mutáveis ao decorrer do tempo, abertos à “produção de novos sentidos, novas interpretações” (HALL, 2016, p. 60).
Em consonância com essa vontade e necessidade de ampliação representativa de sentidos e interpretações, buscou-se valorizar as produções que levassem em consideração aquilo que Stuart Hall (2016, p. 212) nomeou de transcodificação, ou seja, o ato de ressignificação das representações pejorativas e estereotipadas, e apresentação de imagens e narrativas positivadas sobre as sociedades africanas (movimento que já vem ocorrendo nos artigos publicados nas revistas supracitadas).
Estamos no estado da arte no qual a vitimização dos(as) africanos(as) dá lugar à percepção da agência dos(as) mesmos(as). No campo acadêmico, não se trata meramente da construção de narrativas sobre os(as) africanos(as), mas sim, de narrativas a partir de África (PIMENTA; MOUTINHO, 2017, p. 9-12). Destarte, utilizando as palavras de José Rivair Macedo (2021), os estudos africanos atuais buscam desconstruir a ideia de uma única função da África, ou seja, “a de constituir um repositório humano subalternizado, uma área periférica que por si só estaria condenada à dependência, ao imobilismo, ao subdesenvolvimento” (MACEDO, 2021, p. 11). Refere-se aqui à tentativa de abandono da perigosa e famigerada história única (ADICHIE, 2019). Em síntese, este dossiê coaduna com as ideias de Macedo (2021, p. 24), o qual afirma que “não se trata mais de provar que a África tem história, mas adentrar nela”. Foi nesse sentido que vários dos artigos das próximas páginas foram elaborados.
Apesar de ser proposto no intuito de reunir trabalhos sobre as histórias das Áfricas, o presente dossiê acabou angariando também artigos sobre história e cultura afro-brasileira, área de estudo dissemelhante da proposição inicial. É inegável a existência de componentes de origem africana nos debates sobre as relações étnico-raciais ou sobre a história e cultura afro-brasileira. Todavia, essa história protagonizada por negros e negras no Brasil não diz respeito à história da África. Mesmo que seja de muita importância, a diluição dos estudos africanos nas discussões afro-brasileiras acaba, mais uma vez, eclipsando o fazer dos(as) africanos(as) em seus respectivos locais de agência. Nas palavras de Müller & Araújo (2020, p. 11), “a existência de uma origem ancestral comum não dota de perspectivas semelhantes sujeitos que vivem em diferentes contextos”.
Desde os escritos de Raimundo Nina Rodrigues, Manuel Quirino e Oliveira Viana (responsáveis pelas primeiras publicações científicas no Brasil sobre as populações de origem africana), o enfoque narrativo esteve nas relações raciais. Como apontou Zamparoni há quinze anos, no campo acadêmico brasileiro, o que tem ganhado volume de produção “até os dias de hoje [é] os negros e mestiços no Brasil com pouca ou nenhuma referência à África” (ZAMPARONI, 2007, p. 46). Isso porque, tanto a abordagem acerca do continente africano como dos “estudos Afro-Brasileiros, tiveram como motivação preencher lacunas na compreensão da africanidade da população negra brasileira” (MÜLLER; ARAÚJO, 2020, p. 12).
Dito isso, o dossiê está organizado em duas seções: uma que considero fazer parte dos estudos africanos e outra que dialoga mais com as reflexões sobre o contexto étnico-racial do e no Brasil. O primeiro artigo que vos apresento, intitulado Crônicas da ‘arabidade’ leste-africana: uma análise historiográfica comparativa acerca do Kitāb al-Zunūj e do Kawkab al-Durrīyah al-Aḫbār Ifrīqīyah de alBawrī (c. 1890-1913), de autoria de Gabriel dos Santos Giacomazzi (UFRGS), analisa duas crônicas do leste africano (uma do final do século XIX e outra do início do século XX). O autor, com toda sua erudição, identifica criticamente nas obras as questões relacionadas à suposta “arabidade” da região proveniente as crônicas,2 à presença europeia neste espaço, às tensões intersociais, à tradição literária local, à tradução das crônicas para o italiano e inglês e, por fim, à análise dos objetivos, circulação e recepção de Kitāb al-Zunūj e Kawkab al-Durrīyah al-Aḫbār Ifrīqīyah.
Realizando exercício epistemológico semelhante, Débora Fogliatto (UFRGS), em Quando elas migram: interseccionalidade em pesquisa com mulheres migrantes, faz uma densa revisão bibliográfica sobre o fenômeno da imigração de mulheres senegalesas para o estado do Rio Grande do Sul nos dias atuais. Para isso, a autora lança mão de uma perspectiva interseccional de perscrutação, considerando os conceitos de gênero e raça, a partir da concepção do sul global. Fogliatto afirma que boa parte dessa migração feminina senegalesa é de caráter financeiro-laboral e familiar; e que, quando da chegada das mesmas ao Brasil, estas se deparam com o racismo, o machismo e a xenofobia. Neste cenário, de acordo com a autora, as mulheres senegalesas, assim como os homens, são vistas como outsiders, geradoras de desconfortos na população local que valem-se da herança imigratória europeia para destilar o racismo.
Partindo para o campo das ideias, Paulo Anós Té (UFPel) realiza uma análise bibliográfica sobre a violência política colonial a partir do pensamento de Fanon e Mamdani, os quais, segundo o autor, coadunam na afirmação de que essa violência teve e continua tendo consequências em várias dimensões do cotidiano africano, ainda que com outras roupagens coloniais. Ao final do artigo A violência política colonial na África: um diálogo entre Mahmood Mandani e Frantz Fanon, Anós Té pontua que a contraviolência foi uma das ferramentas africanas para a sobrevivência à violência europeia.
Também abordando sobre as violências coloniais e pós-coloniais, José Manuel da Silva (UFPel) e Orlando Pedro Quintas (UAN – Angola) põem em debate o cenário angolano de repressão e opressão estatal em relação a movimentos sociopolíticos da segunda metade do século XX e início do século XXI. Consoante às prerrogativas de Anós Té, em seu artigo de revisão bibliográfica Silva & Quintas afirmam que os movimentos sociais nacionalistas do período colonial angolano valeram-se da violência como forma de resistência à colonização e que esses mesmos grupos, após 1975, ano de independência da Angola, reproduziram a violência física, simbólica e institucional colonial contra a população local. Em síntese, é colocado que o Estado angolano foi estruturado sob um véu de violação dos direitos e liberdades fundamentais.
O quinto artigo deste dossiê foge dos debates sobre África, mas traz a importante discussão sobre as relações étnico-raciais no âmbito brasileiro. Intitulado Representações e relações étnico-raciais nos registros escolares da Educação Básica, de autoria de Maria Rita de Jesus Barbosa (PUC-SP), o artigo lança luz sobre algumas dinâmicas de funcionamento de duas escolas de ensino fundamental do interior de Minas Gerais. Barbosa analisa fichas de matrículas, aplica questionários e realiza entrevistas no intuito de interpretar as apropriações dos funcionários e discentes daquelas instituições em relação à categoria cor/raça. É explicitado ao decorrer do escrito que, no processo de matrícula, os(as) funcionários(as) das escolas têm receio de abordar a cor/raça dos estudantes com os pais e que tal situação pode mascarar as necessidades pedagógicas e políticas das instituições pesquisadas, assim como contribui para o esvaziamento da questão racial no ambiente escolar.
Seguindo na seção mais próxima dos debates afro-brasileiros, em Negros a bumbar: Boi Caprichoso, sociabilidade e resistência em Manaus (décadas de 1920 a 1940), Josivaldo Bentes Lima Júnior (UFAM) realiza uma análise das experiências de pessoas negras na constituição da sociedade amazônica no pós-abolição a partir da brincadeira do “Boi Caprichoso”, no segundo Quilombo Urbano do Brasil. Para isso, Lima Júnior recorre à fonte jornalística, mais especificamente algumas publicações do Jornal do Commercio do Amazonas. O autor afirma que a supracitada brincadeira possibilitou a sociabilidade e lazer de muitos negros da periferia de Manaus, sendo assim, um instrumento de resistência. Por outro lado, as representações imagéticas que a fonte midiática utilizada por Lima Júnior evidenciam estão carregadas de teor negativo sobre os ditos “bois” e sobre a população negra participante da brincadeira no início do século XX.
Em seguida, em O 20 de Novembro (1971-2021) e a emergência de uma data afro-brasileira: da Princesa a Zumbi, José Augusto Zorzi (UFRGS) realiza um apanhado histórico sobre a idealização e consolidação do 20 de novembro no Brasil, dia da Consciência Negra. O autor pontua dois momentos desse processo: até 1978, momento da virada histórica da luta negra e de construção do 20 de novembro; e o a partir da década de 1990, época de difusão e institucionalização da data da consciência negra no Brasil. Zorzi conclui que a supracitada data é uma oportunidade de reflexão e debate público sobre o racismo e agência dos(as) negros(as) na ex colônia portuguesa na América. Também no cenário brasileiro da segunda metade do século XX, Maria Lídia de Godoy Pinn (UFOP) realiza um estudo sobre as contribuições de Maria Beatriz Nascimento para a compreensão do passado afro-diaspórico, ou seja, para interpretações não hegemônicas e menos oficiais/estatais da história afro no Brasil.
Já Livia Maria Silva (UFPB) e Antônio Manoel Elíbio Júnior (UNICAMP) partem para o questionamento do desenvolvimentismo e da globalização ocidental que constroem e impõem uma padronização sociocultural e histórica racista ao mundo. Como saída desse cenário, Silva & Elíbio Júnior apresentam cosmovisões afrodiaspóricas e afro-ameríndias, como por exemplo: Maat (pressuposto do equilíbrio entre a humanidade e o ambiente natural) e Ubuntu (princípio da importância da existência de tudo e do elemento colaborativo da existência humana).
Visibilizando um dos momentos no qual a humanidade não esteve colaborativa, muito menos equilibrada, Francisco Flávio Eufrazio (UFCG) apresenta em Do genocídio da criança e do adolescente negro durante e após a escravidão uma revisão bibliográfica e documental sobre o genocídio precoce de negros no Brasil e sua relação com a estrutura econômica estatal nos séculos XIX e XX. No Brasil, conforme o autor, o genocídio infantil é inseparável daquele genocídio cometido às mulheres e homens negros, pois esses dois públicos, principalmente os mais pobres, são alvos centenários de violência. De modo geral, a contribuição que Eufrazio realiza consiste na seguinte afirmação: se no sistema escravista a criança/adolescente era tratada como mercadoria, força de trabalho e destituída de direitos, o século XX vai ser palco de importantes avanços no que tange à atuação estatal na proteção das crianças e adolescentes, pelo menos no setor legislativo, já que a infância será vista como um período de formação para o mercado de trabalho.
Por fim, no décimo primeiro artigo, cognominado Contribuições para uma descolonização das teorias da história: Capoeira Angola, ancestralidade e tempo espiralar, Ângelo de Oliveira Gomes Teixeira (UFOP) também questiona a cosmovisão implicada na disciplina de História do mundo ocidental, ou seja, sua noção de tempo e espaço. Propondo uma cosmovisão alternativa, Teixeira exemplifica a Capoeira Angola, um espaço que pode apresentar uma temporalidade específica (tempo espiralar) resultante da diáspora africana para o Brasil e dissemelhante da temporalidade adotada na disciplina de História hodiernamente. De tal forma, o artigo do autor dialoga com as proposições de Hall (2016) e Adichie (2019) sobre a necessidade de reorganização teórica e metodológica para romper de vez com a história única imperialista que está em vigor.
Espero que o presente dossiê seja degustado com bastante atenção, sirva de base para reflexões sobre o nosso ensino básico e superior, e que contribua para descentralização da divulgação dos saberes orquestrados no Brasil sobre a múltiplas Áfricas existentes.
Mais Áfricas para mais brasileiros(as)!
Nota
2 Narrativa de arabização que Giacomazzi vai chamar de mitogênica.
Referências
ADICHIE, Chimamanda Ngozi. O perigo de uma história única. São Paulo: Editora Companhia das Letras, 2019.
HALL, Stuart. Cultura e representação. Rio de Janeiro: Editora PUC-Rio: Apicuri, 2016.
MANFREDO, Maria Teresa. Da hiperespecialização à integração de saberes. ComCiência, n. 138, 2012.
MÜLLER, Paulo; ARAÚJO, Melvina. Apresentação do dossiê – coetaneidade, pós-colonialidade, diáspora(s) e africanidade(s). Mediações, v. 25, n. 1, 2020
PIMENTA, Denise; MOUTINHO, Laura. África no plural: um dossiê. Cadernos de Campo, n. 23, 2017, p. 09-12.
MACEDO, José Rivair. Antigas sociedades da África negra. São Paulo: Contexto, 2021.
ZAMPARONI, Valdemir. A África e os estudos africanos no Brasil: passado e futuro. Ciência e Cultura, v. 59, n. 2, 2007.
Organizador
Rafael Barbosa de Jesus Santana – Graduado em História (Universidade Federal do Pampa), Especialista em História e Cultura Afro-brasileira (Faculdade de Educação São Luis), Especializando em Relações Internacionais (Universidade Federal do Pampa) e Mestre em História (Universidade Federal do Rio Grande do Sul); atua como vice- coordenador do Grupo de Trabalho em História da África da ANPUH/RS (2020-2022); estudioso das questões relacionadas às guerras civis da Serra Leoa e Nigéria em obras literárias.
Referências desta apresentação
SANTANA, Rafael Barbosa de Jesus. Apresentação. Aedos. Porto Alegre, v. 14, n. 31, p. 5-9, jul./dez. 2022. Acessar publicação original [DR]