Narrativas do exílio: cosmopolitismo além da imaginação liberal – TIHANOV (B-RED)
TIHANOV, Galin. Narrativas do exílio: cosmopolitismo além da imaginação liberal. Série Diálogos dirigida por Maria Isabel de Moura. Trad. Camila Caracelli Scherma; Marina Haber de Figueiredo; Mateus Yuri Passos; Michele Viana Trevisan; Nanci Moreira Branco; Rômulo Augusto Orlandini; Tatiana Aparecida Moreira. São Carlos: Pedro e João Editores, 2013, 186 p. Resenha de: AMÉRICO, Ekaterina Vólkova. Bakhtiniana – Revista de Estudos do Discurso, v.9, n.2 São Paulo, July/Dec. 2014.
A literatura russa costuma ser dividida em três etapas: a literatura russa clássica e modernista até a revolução de 1917, a literatura soviética e a pós-soviética. No entanto, nesse esquema falta um elo muito importante: a contribuição valiosa de escritores, poetas e críticos literários que por diversas razões, predominantemente políticas, deixaram a Rússia pré-revolucionária e depois a União Soviética e passaram a escrever no exílio. A história da literatura russa e da literatura da sua emigração como uma “realidade paralela” tornou-se foco de várias palestras proferidas recentemente por Galin Tihanov, professor de Literatura Comparada e História Intelectual da Universidade de Londres, nas universidades brasileiras (entre elas USP, PUC-SP e UNESP). Narrativas do exílio: cosmopolitismo além da imaginação liberal é um conjunto de quatro ensaios escritos em diferentes ocasiões, mas unidos por um tema central: cosmopolitismo como característica principal da cultura de emigração. Como o exílio é analisado tanto como um fenômeno universal quanto concreto (no caso dos literatos que emigraram da Rússia), o livro certamente atrairá um número significativo de leitores interessados nesse tema.
Seria um equívoco muito grave tratar a literatura da emigração, ou do exílio, segundo o termo utilizado por Tihánov, como secundária e menos importante em relação à literatura-mãe. Muitos dos autores emigrantes tornaram-se mundialmente conhecidos, entre eles Ivan Búnin (1870-1953), laureado com o prêmio Nobel de literatura de 1933 e Vladímir Nabókov (1899-1977), que escreveu muitas das suas obras em inglês. Já na área da crítica literária, foi importantíssima a contribuição do também emigrante Roman Jakobson, responsável inclusive pela descoberta e divulgação da obra de Mikhail Bakhtin, e de muitos outros autores fora da União Soviética. Dessa forma, trata-se de um fenômeno original, que não só possui muito em comum com a cultura russa e soviética, mas também diverge dela e, portanto, merece uma análise profunda. Infelizmente, até os tempos recentes esse assunto era muito pouco estudado, principalmente devido à proibição da literatura de emigração na União Soviética e o seu desconhecimento subsequente pela grande maioria dos russos. O livro de Tihanov supre essa lacuna oferecendo um trabalho sério e detalhado, que confronta vários equívocos e mitos em relação a esse fenômeno tão importante.
No ensaio “Narrativas do exílio: cosmopolitismo além da imaginação liberal”, Tihanov afirma a necessidade de se criar uma metodologia que possa ser aplicada à análise do fenômeno da emigração. Sua proposta é libertar o conceito de exílio de todos os mitos existentes sobre ele, principalmente no que diz respeito à sua posição periférica e dependente em relação à literatura de origem.
O menosprezo e até a “exclusão” da literatura de emigração se deve também à eterna dicotomia da cultura russa entre o “seu próprio” e o “alheio” (é um dos temas fundamentais da obra do semioticista Iúri Lotman), que tem como resultado o fato de que todos os elementos da cultura “estrangeira” passam a ser vistos como estranhos e potencialmente perigosos. Tal conduta diante do desconhecido origina-se no isolamento histórico da Rússia em relação aos outros países europeus no decorrer de vários séculos, interrompido com a europeização do país na época de Pedro, o Grande, e retomado durante o regime soviético com o fechamento da “cortina de ferro”.
Segundo Tihanov, um dos principais equívocos ao se tratar da literatura do exílio é a ideia de que a cultura de emigração seja voltada inteiramente para a pátria perdida, almejando o reencontro e o reconhecimento pelo leitor russo. De acordo com essa visão, condenada pelo autor como muito limitada, as relações entre a União Soviética e a emigração seriam as de centro e periferia. Voltando à questão da literatura da emigração, seria ela realmente periférica em relação à literatura-mãe? A complexidade da correlação centro/periferia é agravada mais ainda pelo fato de que a Rússia, por sua vez, durante centenas de anos se sentiu e ainda continua a se sentir como periferia em relação à Europa e a cultura ocidental em geral. Vista por essa ótica, a literatura do exílio deixa de ser periférica e torna-se mais próxima do centro do que a literatura-mãe, que, então, passa a ser “periférica”. A filosofia, a literatura e a cultura alemã e francesa foram, desde o século XVIII, grandes norteadores da cultura russa e não por acaso os primeiros emigrantes se concentram justamente em Berlim e em Paris.
Combatendo a ideia da emigração como um afastamento e isolamento, Tihanov sugere que se trate de uma inserção da cultura russa dentro de outra(s) cultura(s), o que resulta em um enriquecimento mútuo. Por exemplo, se Nabókov nunca tivesse deixado a Rússia, sua obra certamente não seria a mesma que conhecemos.
Uma das áreas que mais se beneficiaram com a emigração foi a teoria literária. O formalismo russo teve seu renascimento na obra de Víktor Chklóvski e Roman Jakobson. Em Praga, juntamente com o folclorista Piotr Bogatyriov (1893-1971), Jakobson continuou as tradições da OPOIAZ (Sociedade do Estudo da Linguagem Poética) de São Petersburgo e do Círculo Linguístico de Moscou. Foi assim, graças à emigração, que surgiu o Círculo Linguístico de Praga: “O trabalho do Círculo Linguístico de Praga, em particular, atuou numa situação de verdadeira poliglossia (…); Jakobson, Trubetzkoy e Bogatyrev estavam, cada um, escrevendo em pelo menos duas ou três línguas ao mesmo tempo (russo, alemão, tcheco)”. Um dos trabalhos mais importantes do Círculo foi escrito em 1929 por Bogatyriov e Jakobson. Trata-se do ensaio “O folclore como forma específica de arte”2 em que os autores defendiam a necessidade de tratar os estudos do folclore e os estudos literários como ciências diferentes, bem como a de aplicar uma combinação do método sincrônico e diacrônico em ambos os casos. Dessa forma, o trabalho do Círculo de Praga é uma premissa do estruturalismo e da metodologia estrutural-tipológica desenvolvida pela escola semiótica de Tártu-Moscou. A emigração teve um enorme significado para a teoria literária moderna. Utilizando o termo de Chklóvski, Tihanov observa que, ao se afastarem da Rússia, os intelectuais tiveram oportunidade de “estranhar” a cultura russa, isto é, olhar para ela a distância. “O exílio, em vez de agir como um fator de entrave, foi o coração de desenvolvimentos salutares que promoveram o crescimento da teoria literária no período entre-guerras” (TIHANOV, 2013, p.78).
Já no campo da crítica literária, ocorreu uma reavaliação da herança da literatura clássica do século XIX, principalmente a de Púchkin e Lérmontov. Se na União Soviética os futuristas propunham jogar ambos “fora do barco da modernidade”, a emigração discutia, nos anos 1930, qual dos autores clássicos seria mais importante para o futuro literário. Enquanto Georgui Adamóvitch (1892-1972) afirmava a primazia de Lérmontov como um poeta mais “ocidental”, cujo espírito romântico, revoltado e solitário, era mais próximo ao dos emigrantes, outro literato emigrante proeminente, Vladislav Khodasiévitch (1886-1939), defendia a supremacia de Púchkin.
Como uma das consequências do “estranhamento” e da possibilidade de olhar a cultura do seu país à distância, nos anos 1920-30, entre os emigrantes russos, surgiu o movimento chamado de eurasianismo (evrazíistvo), que visava repensar a posição cultural e política da Rússia não como uma cisão entre a Europa e Ásia, mas como parte de um único continente Eurásia e, portanto, como uma combinação peculiar dos traços ocidentais e orientais. Hoje, as ideias do eurasianismo ganharam muitas repercussões na mídia russa.
O artigo “Cosmopolitismo no panorama discursivo da modernidade: duas articulações do Iluminismo” é uma análise das transformações sofridas pelo conceito “cosmopolitismo” ao longo de sua existência, desde suas origens, na filosofia kantiana, até os dias de hoje. A atualidade desse tema é comprovada pela frequência do seu uso, assim como de outros termos com significados semelhantes: “internacionalismo”, “universalismo”, “multiculturalismo”, “transnacionalismo” e “globalização”.
A história da modernidade, assim, pode ser descrita como uma oscilação entre dois polos, o nacionalismo e o cosmopolitismo. Como exemplo, Tihanov lembra a trajetória dos estudos comparativos na Rússia e na União Soviética. Em decorrência do processo geral de integração entre a Rússia e os países europeus, no final do século XIX se firmou o método comparativo, cujos princípios foram relatados por Aleksandr Vesselóvski (1838-1906) em obra monumental, apesar de não ter sido concluída, Poética histórica (Историческая поэтика) de 1899. Entre outros fundadores dos estudos comparativos estava o formalista Iúri Tyniánov (1894-1943), que em seus artigos “O fato literário” (1924) e “Da evolução literária” (1927) expôs as leis que determinam a sucessão de gêneros literários na história da literatura mundial. Em 1928 foi lançada a Morfologia do conto maravilhoso3 de Vladímir Propp (1895-1970), que empregava o método comparativo aos estudos dos contos maravilhosos de diferentes países. Outro grande estudioso da cultura e literatura russa e universal, Mikhail Bakhtin, também utilizava o método comparativo como uma das principais ferramentas de sua análise. Assim, no livro Problemas da obra de Dostoiévski de 1929, ele aborda a questão do gênero na obra do clássico russo e encontra suas origens na literatura antiga e medieval.
Porém, meio século depois da fundação dos estudos comparativos, nos últimos anos do governo de Stalin, iniciou-se uma campanha ideológica realizada contra os comparativistas, denominada “luta contra os cosmopolitas”. As perseguições eram direcionadas principalmente contra os intelectuais judeus, embora isso nunca tenha sido dito oficialmente. A luta teve seus motivos políticos, entre eles o estabelecimento das relações diplomáticas entre Israel e os Estados Unidos em 1948. Em fevereiro de 1949, os mais conhecidos e importantes comparativistas soviéticos, todos judeus, foram acusados de pregarem as tendências antirrussas. Entre eles estavam: Boris Eichenbaum, Víktor Jirmúnski, Mark Azadóvski e Grigóri Gukóvski. Todos eles perderam o emprego; já Gukóvski foi preso e morreu sem nunca ter sido liberado. Esse estreitamento dos limites do Estado por meio da perseguição dos elementos “alheios” foi uma consequência da volta do nacionalismo como a principal ideia do país, assim como acontece na Rússia de hoje.
No contexto brasileiro, a emigração do Leste Europeu na primeira metade do século XX também foi de grande valia: basta citarmos nomes como Clarice Lispector, Tatiana Belinky e Boris Schnaiderman, este último responsável pela fundação dos estudos russos no Brasil. Graças a essa contribuição, hoje testemunhamos uma verdadeira explosão de traduções diretas dos grandes autores da literatura e crítica literária russa e dos trabalhos acadêmicos dedicados às questões literárias e culturais. A emigração russa, vista como um fenômeno importante da cultura universal, tampouco passa despercebida pelos pesquisadores no Brasil4.
Ao que tudo indica, a conclusão sobre o efeito enriquecedor do cosmopolitismo cultural foi inspirada na experiência pessoal do autor: nascido em 1964 na Bulgária, que naquela época fazia parte do bloco soviético, nos anos 1990 Tihanov muda-se para a Inglaterra em busca de aperfeiçoamento acadêmico. Ele, assim como outras gerações de historiadores da cultura e literatura emigrantes, entre eles os seus conterrâneos Tzvetan Todorov e Julia Kristeva, é um mediador da cultura do Leste Europeu que contribui para a sua recepção no Ocidente. É inegável o fato de que o cosmopolitismo tornou-se a principal característica do nosso tempo e todos nós lidamos constantemente com influências das diversas culturas. E é justamente por esse motivo o estudo realizado por Tihanov em seus quatro ensaios é muito bem-vindo no Brasil.
1 Embora sendo estrangeira e não estando inteiramente apta para avaliar a fluência e a clareza da tradução, tive oportunidade de comparar a tradução brasileira dos ensaios de Tihanov com a sua versão em russo e, em alguns casos, notam-se lacunas na transmissão das ideias do autor. Além disso, infelizmente, os tradutores não observaram as normas de padronização da transliteração dos nomes russos, utilizadas convencionalmente em todas as traduções diretas recentes de autores russos, como, por exemplo, no caso de Vladímir Maiakóvski (que aparece como Mayakovsky), Víktor Chklóvski (transliterado como Shklovsky), Iúri Tyniánov (Yuri Tynianov) e assim por diante.
2 BOGATYRIOV, P., JAKOBSON, R. O folclore como forma específica de arte. In: Mitopoéticas: da Rússia às Américas. Org. de Aurora Fornoni Bernardini, Jerusa Pires Ferreira; coorganização Programa de Pós-graduação em Literatura e Cultura Russa – USP e Núcleo de Poéticas da Oralidade – PUC-SP. São Paulo: Humanitas, 2006, p.29-44.
3 PROPP, V. I. Morfologia do conto maravilhoso. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1984.
4 BYTSENKO, A. Imigração da Rússia para o Brasil no início do século XX. Visões do Paraíso e do Inferno. 2006. 134 f. Dissertação. (Mestrado em Literatura e Cultura Russa) FFLCH, USP, São Paulo; MIKAELYAN, Y. Serguei Dovlátov no contexto da terceira onda de emigração russa. RUS, São Paulo, v. 02, p.87-97, 2013; SCHNEIDER, G. Vladímir Nabókov: As Artes da Tradução. Tradterm, São Paulo, v. 18, p.103-122, 2011.
Ekaterina Vólkova Américo – Universidade de São Paulo, São Paulo, São Paulo, Brasil; katia-v@yandex.ru.