Narrativas de si em espaços de privação de liberdade | Revista Brasileira de Pesquisa (Auto)Biográfica | 2022

Rotina de casais homossexuais no Presídio Central de Porto Alegre | Foto: Jean Schwarz/ Agência RBS

Refletir sobre as artes de viver/sobreviver em espaços de privação de liberdade e buscar as diversas significações representadas por dispositivos narrativos oriundos da vida no cárcere podem revelar as vicissitudes e nuances da vida de mulheres e homens represados por instituições penais.

Por meio da escrita, da leitura e até mesmo de relatos orais, encarcerados e encarceradas produzem conhecimentos sobre si, sobre o universo prisional, avaliam dificuldades presentes e projetam sonhos para o futuro. As narrativas de si, elaboradas em condições em que viver é uma luta constante, configuram-se como uma forma de reconstruir a identidade perdida e dar continuidade à vida apesar das adversidades e clausura. Como nos aponta Castillo Goméz (2021, p. 264),1 “[…] trata-se de uma forma de não morrer, em definitivo, de resistência ante a anulação e despersonalização acarretada pelo encarceramento”.

Intitulado Narrativas de si em espaços de privação de liberdade e publicado pela Revista Brasileira de Pesquisa (Auto)biográfica (RBPAB), o presente dossiê busca trazer à tona as histórias de vida de sujeitos quase invisibilizados pelas pesquisas acadêmicas, abrindo perspectivas para se pensarem os sentidos dos relatos pessoais originários do cárcere, a partir da reflexão acerca das trajetórias sócio-históricas e cotidianas dos privados de liberdade e de outros sujeitos que, de alguma forma, vivem a realidade prisional

Através da leitura dos textos aqui contemplados, é possível enxergar esses sujeitos para além do crime cometido e perceber o ser humano em suas fragilidades, emoções e sentimentos. Os privados de liberdade escrevem, reescrevem suas histórias, e surgem testemunhos de sofrimentos durante os dias de aprisionamento, além da imensa solidão pertencente ao cotidiano desses sujeitos. Esses escritos trazem “o elemento biográfico a um alto nível de expressividade tornando-os inteligíveis dentro das convenções de determinado contexto histórico e cultural”2 (CANDIDO, 2000, p. 35) que, neste caso, é o ambiente prisional.

Nesse sentido, a relevância deste trabalho coletivo se dá pela dedicação a ouvir as vozes que emergem de apenados e apenadas em uma sociedade que insiste em ignorar os problemas que perpassam o sistema penitenciário e os sujeitos que dele fazem parte, como nos aponta Angela Davis (2018, p. 16-17)3:

A prisão, dessa forma, funciona ideologicamente como um local abstrato no qual os indesejáveis são depositados, livrando-nos da responsabilidade de pensar sobre as verdadeiras questões que afligem essas comunidades das quais os prisioneiros são oriundos em números tão desproporcionais. Esse é o trabalho ideológico que a prisão realiza – ela nos livra da responsabilidade de nos envolver seriamente com os problemas de nossa sociedade, especialmente com aqueles produzidos pelo racismo e, cada vez mais, pelo capitalismo global.

São tantos jovens, pretos e pobres, mulheres, mães, também pretas e pobres, que sobrelotam as nossas prisões; são pessoas com suas subjetividades, sentimentos e histórias de vida marcadas por racismo, desigualdade social e inúmeras dificuldades materiais, psicológicas e emocionais. E se queremos uma sociedade mais justa, precisamos ouvi-las em suas demandas e anseios. Pois é isso o que se oferece agora à leitura, a começar por A escrita e o desvelamento da realidade vivida nos presídios brasileiros: uma leitura amorosa do livro ‘Além das grades’, de Samuel Lourenço Filho, assinado por Socorro Calháu e Angelica Raimundo Nogueira. No artigo, as autoras tomam um livro de crônicas em que um autor egresso do sistema prisional narra, por assim dizer, sua autobiografia carcerária, expondo de forma contundente os horrores do encarceramento, entendido não apenas como a punição entre celas e trancas.

Ao se avançar para Ressignificando memórias: quando a (auto)biografia anuncia a luta pela vida, de Rose Fernandes de Souza e Alexandre Vanzuita, radicaliza-se a especificidade da abordagem de narrativas autobiográficas. Nesse caso, diminui ao extremo a distância costumeira entre quem estuda e o que é estudado, vista a relação de parentesco entre quem analisa e quem protagoniza a biografia analisada.

Mas se a especificidade anunciada pelo título do dossiê e logo confirmada pelos dois primeiros artigos pode fazer pensar numa observação muito restrita da realidade, os dois textos já serão também os primeiros a desautorizar tal impressão. Se o artigo inicial aponta para as inevitáveis relações entre encarceramento e racismo, o seguinte comenta como a privação de liberdade não diz respeito apenas à vida da pessoa objetivamente presa. Assim, o dossiê já se revela como análise de conjunturas e estruturas que extrapolam o perímetro de cadeias, bem como de fenômenos que, embora presentes em tal perímetro, não são usualmente considerados como parte integrante dele pelo senso comum e por governos. Daí Sobre o inferno, a prisão e a sala de aula: narrativas, testemunhos e outras histórias, de Maria Luzineide Pereira da Costa Ribeiro, afirmar que pensar a prisão é pensar o significado de escola, e o quanto esta pode ser decisiva para reverter o processo de desumanização inerente à privação de liberdade.

A reflexão sobre o cárcere traz à luz uma camada mais profunda da exclusão social desde sempre norteadora da vida brasileira, demonstrando como o sistema prisional repete e adensa formas excludentes anteriores à detenção – aí incluindo as segregações marcadas por gênero. Conforme explicita seu título, Que mulheres você é? narrativas de si entre mulheres em situação de cárcere no âmbito do projeto ‘Mulheres possíveis’, de Vânia Medeiros, Verônica Veloso e Leticia Olivares, parte de dinâmicas pedagógicas e artísticas voltadas à produção de relatos para fornecer subsídios ao conhecimento público sobre o encarceramento feminino.

Se a discussão em torno da prisão por um lado expõe feridas sociais e humanas por vezes inimagináveis a quem não conhece o cotidiano prisional, por outro, põe em relevo o que pode haver de inimaginável como contraponto e mesmo sublimação de contextos tão marcados pela barbárie estatal e pela dor pessoal. Este é o enfoque de Andréa de Freitas Paixão que, em Amor entre mulheres: afetividades e violência no contexto prisional, pensa relações homossexuais num presídio feminino para, a partir delas, pensar também simbologias institucionais de poder e brutalidade.

A síntese realizada até aqui refere estudos de pauta contemporânea, redigidos por profissionais de pesquisa que estabeleceram algum grau de proximidade com quem produziu as narrativas de si tomadas para objeto de reflexão. Mas a diversificação deste dossiê é também de ordem temporal, e isso se vê em As correspondências enviadas pelos presos da cadeia da cidade de Goiás na década de 1930, com que Rildo Bento de Souza e Milena Bastos Tavares noticiam e analisam um importante e ainda pouco explorado arquivo de fontes para investigações.

Um outro fator de diversidade do dossiê diz respeito aos sujeitos que se narram e aos espaços em que a privação de liberdade transcorre. Se o artigo anterior se inicia fazendo menção a uma delegacia e a um delegado, Daiane de Oliveira Tavares, em As facetas de Victório Caneppa: narrativas sobre a trajetória de um diretor penitenciário (1930-1955), concentra-se exclusivamente nessa figura profissional, demonstrando que a reflexão sobre encarceramento tende a se aprofundar na medida em que seleciona e interpreta também o discurso de seus agentes.

Os trabalhos aqui trazidos mostram cenários de desigualdades, vulnerabilidades e opressões vividos por apenados e apenadas, além de como a realidade prisional se desvela em nossa história recente por meio da trajetória de agentes que nela atuaram. Por tais trabalhos, verifica-se a necessidade de o sistema prisional ocupar espaço diferente do debate público e da agenda de governos, a fim de que se discuta o papel ideológico da prisão e se construam novos caminhos para os sujeitos sociais, que, sob o rótulo da ressocialização, são comprimidos por ferros e por estigmas. Para isso, ouvi-los e lê-los é ação prioritária.

Rio de Janeiro, 25 de abril de 2022.

Notas

1 CASTILLO GOMÉZ, Antonio. Grafias do Cotidiano: Escrita e Sociedade na História (séculos XVI a XX). Tradução: Cristina do Rego Monteiro Bomfim, Fabiana Calixto. Rio de Janeiro: Eduerj/Eduff: 2021.

2 CANDIDO, Antonio. Na sala de aula: caderno de análise literária. São Paulo: Ática, 2000.

3 DAVIS, Angela. Estarão as prisões obsoletas? Tradução: Marina Vargas. Rio de Janeiro: Difel, 2018.


Organizadores

Daiane de Oliveira Tavares – Universidade do Estado do Rio de Janeiro.

Marcos Estevão Gomes Pasche – Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro.


Referências desta apresentação

TAVARES, Daiane de Oliveira; PASCHE, Marcos Estevão Gomes. Apresentação. Revista Brasileira de Pesquisa (Auto)Biográfica. Salvador, v. 07, n. 20, p. 15-17, jan./abr. 2022. Acessar publicação original [DR]

Acessar dossiê

Itamar Freitas

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