Narrativas (auto)biográficas no cinema | Revista Brasileira de Pesquisa (Auto)Biográfica | 2021

A temática “Narrativas (auto)biográficas no cinema” desperta e desafia diversas problemáticas inerentes às relações entre linguagem, pensamento, temporalidade, espacialidade e vida. Tratando de um conceito antigo, a história do termo “narrativa” produziu incontáveis polêmicas e nuanças quanto às suas possíveis definições. No campo das Artes, a narrativa implicou desafios poéticos e estéticos responsáveis por dúvidas e enigmas sobre o alcance de seu estatuto ontológico. Perguntas simplistas dirigidas às sete artes acerca de suas capacidades ou condições de produzirem ou de serem – ontologicamente – narrativas marcaram uma série de debates ligados a batalhas políticas e econômicas acerca da edificação de hierarquias relativas aos níveis do sublime acerca da representação suprema do bem e da beleza. Por vezes, a narrativa foi estabelecida como o critério fundamental para se definir classicamente a prática e a obra artísticas por excelência.

Essas ponderações têm como solo a dimensão do sentido – ou da síntese – em meio às experiências mundanas da vida – de todos os seres – estarem submetidas aos acontecimentos promotores de descontinuidades e rupturas. O destino, por exemplo, consiste no principal objeto das narrativas na medida em que ele coloca como enigma a hipótese das causalidades entre acontecimentos reais ou aparentemente desconectados. O destino, portanto, pode ser considerado o liame principal entre o real (documental) e o fantasioso (ficcional) em uma narrativa, já que lhe cabe o desafio da construção ou do desvelamento de nexos entre um ponto de partida e um ponto de chegada, constando que no entremeio há uma série de acontecimentos biográficos – acontecimentos que marcam a vida – possíveis ou impossivelmente coerentes entre um ponto e outro da história ou da estória. Às artes foi atribuída a responsabilidade para dar sentido a biografias marcadas por fragmentos, rupturas, disparates, júbilos, catástrofes cujo ser da experiência, muitas vezes, não pode reconhecer uma episteme, um saber capaz de unir, sintetizar ontologicamente a filogênese da humanidade ou a ontogênese do indivíduo.

Contemporaneamente se compreende que esses pressupostos narrativos fundamentam as ciladas históricas e políticas em torno das chamadas metanarrativas ou grandes narrativas então apoiadas nas figuras heroicas divinas e humanas que marcaram a hipótese da História Geral ou a História Universal desde um ponto de vista ocidental ou, especificamente, europeu. No eixo dos debates decoloniais e pós-coloniais, portanto, o conceito de narrativa se tornou objeto de contundentes críticas, ao mesmo tempo em que foi associada ao critério de racionalidade também ocidental. Em termos epistemológicos, essa crítica foi erguida para atacar a historiografia entre os séculos XVIII e XX, associada às narrativas pictóricas, literárias, teatrais e cinematográficas, pois estava a serviço, especialmente segundo o modelo francês, dos desafios políticos e econômicos de forjar na Europa e em suas colônias a realidade dos Estados Nacionais.

As biografias de reis, de clérigos, de aristocratas, de burgueses e de heróis militares foram eleitas como o principal fio condutor de narrativas coerentes e sem contradições; construindo ficções biográficas em que os pontos de partida e de chegada estavam logicamente concatenados por acontecimentos teleológicos, isto é, a serviço do destino e da predestinação sob o signo do desenvolvimento civilizacional e cultural das sociedades e dos indivíduos em identidade com a História ocidental.

As reflexões e os estudos contemporâneos sobre a temática da narrativa ganham centralidade atualmente, como herdeiros dos abalos e crises vivenciados pelas concepções realistas modernas e positivistas acerca das experiências humanas. No campo da Educação em especial, como também nas arenas dada História, da Filosofia, da Antropologia, da Sociologia, da Psicologia, da Psiquiatria, da Psicanálise e da Arte, a narrativa toma a cena das cogitações acadêmicas na posição de protagonista da realidade humana. Com o propósito de contribuir para essa discussão e expandi -la, o Dossiê Narrativas (auto)biográficas no cinema reúne trabalhos na confluência da temática da narrativa (auto)biográfica com a arte cinematográfica, em diferentes abordagens, vértices analíticos, sensibilidades e imaginação, horizontes do pensamento. Os 13 textos que compõem o dossiê envolvem discussões que contemplam a narrativa (auto)biográfica em seus atravessamentos com o cinema do passado e do presente, reunindo as elaborações de pensadores(as) clássicos(as) e contemporâneos(as) dos terrenos do cinema e da narrativa, colocando em diálogo perspectivas e possibilidades de compreensão da narrativa (auto)biográfica e da arte cinematográfica em seus contornos, atravessamentos, reverberações e interpelações.

De modo heterodoxo e em larga compreensão das narrativas (auto)biográficas, a proposição abarca as “histórias de vida” ou “narrativas vivas” de personagens ficcionais e documentais individuais e/ou coletivos sob o olhar cinematográfico, como também (auto)biografias que envolvem diretores, atrizes, roteiristas, críticos e outros personagens do universo do cinema. A decisão sobre a narrativa de ser fictícia ou documental, mítica ou histórica, mentira ou verdade, parece ter passado pelo mesmo cansaço ontológico e epistemológico quanto a origem do ser e da linguagem, pois implicam não apenas momentos inacessíveis, mas indecifráveis e, portanto, contornáveis, a proposta contempla a discussão de obras cinematográficas do cinema mundial, e do cinema latino-americano, em especial, nas quais a arte de si narrar e de ser narrado pelas lentes das câmaras, contorna tramas de sujeitos que se (re)inventam em textos e contextos.

Conjeturando sobre as “visões narrativas” no cinema, a sétima arte não é composta apenas por uma estética (receptiva), mas também por uma poética (produtiva), ao passo que, no âmbito do “extracampo” e do “antecampo”, existem inúmeras tramas e dramas tecidos pelos olhares cruzados de atrizes, atores, roteiristas, câmeras, diretores, maquiadores, figurinistas, montadores, editores e um sem fim de “biografias” a serem reconstruídas, arguidas, investigadas, interpretadas, analisadas e perquiridas desde diversas perspectivas teórico-metodológicas organizadas na arena acadêmica. O dossiê envolve tanto discussões ontológicas, epistemológicas, teóricas e metodológicas relativa às narrativas (auto) biográficas em seus encontros com o cinema, quanto a análise de obras da cinematografia mundial clássica e contemporânea, especialmente, do cinema latino-americano. Com esta proposição, esperamos mobilizar e instigar questionamentos e cogitações criativas e heterodoxas variadas acerca de narrativas (auto) biográficas no cinema.

Envolvendo cinemas documental, ficcional e suas interseções, a proposta alcançou temas transversais diversos, como identidade, alteridade, gênero, política, loucura, deficiência, educação, etnia, trabalho, luta, memória, colonização, loucura dentre outros mais discretos a serem descobertos nos textos pelos sentidos atentos de pesquisadores perspicazes e leitores curiosos. De um ponto de vista panorâmico, os trabalhos atuam segundo dois extensos eixos articulados, as (auto)biografias de sujeitos e de coletivos, de modo que no primeiro encontramos complexos contextos sociais ligados a uma personagem central, ao passo que no segundo notamos complexos singulares no seio de tecidos sociais diferentes em seus lugares e épocas.

Com exceção do primeiro artigo resumido na sequência, os demais, do primeiro eixo, elegeram a figura de um cineasta como fio condutor de reflexões e ações teóricas e metodológicas.

Em Violeta parra e suas arpilleras decoloniais, Adriana Fresquet e Wilson Cardoso Junior, à luz do documentário Violeta Parra, Pintora Chilena (2007), de Ignacio Agüero, abordam a produção de arpilleras da folclorista e multiartista chilena e sua contribuição para a herança artística e cultural decolonial latino-americana e para resistência de mulheres de camadas populares no Chile e no Brasil.

O artigo Narrativas sobre Mauro: vozes/ intérpretes do legado do cineasta ao cinema brasileiro, de autoria de Andrea Vicente de Toledo Abreu, Milene de Cássia Silveira Gusmão e Rosália Maria Duarte, reflete sobre Humberto Mauro e suas implicações na emergência do Ciclo de Cinema de Cataguases (MG) e ao Polo Audiovisual da mesma cidade. Como fontes biográficas, foram eleitos diferentes trabalhos produzidos Ronaldo Werneck, André Di Mauro, Paulo Emílio Salles Gomes, Sheila Schwartzman e Glauber Rocha.

A produção documental de Antônio Olavo: lutas e memórias do povo negro, escrito por Luciene Maria da Silva e por Daiane Rosário, versa acerca do realizador baiano cuja trajetória deixou marcas no cinema e na televisão mediante curtas e médias-metragens, bem como documentários de longa-metragem. As maiores atenções foram destinadas à série documental Travessias negras (2017) sobre universitários cotistas e discriminação racial. Entrevistas com o cineasta revelaram percepções acerca das lutas históricas de resistência em que participa o cinema negro.

Carlos Eduardo Japiassú de Queiroz e Paloma da Silva Santos, em Uma ‘nãobiografia’ ‘nãonarrativa’ de Agripina é roma-manhattan, de Hélio Oiticica, ousam tratar do problemático conceito crítico de “nãonarração” como uma analogia de uma possível noção de “nãobiografia”. A hipótese foi articulada a alguns teóricos da história, do cinema e das artes que trataram dos conceitos de narrativa, biografia e personagem de maneira crítica e relativa. Analisaram o filme, cujo título figura no título do trabalho, identificando estratégias cinematográficas responsáveis por extrair os laços históricos da protagonista.

“A glória ao nosso redor”: o cinema autoral de Terrence Malick, de Sander Cruz Castelo, tratado pela metodologia de análise fílmica de Bordwell e Thompson, identifica os elementos narrativos e estilísticos, considerando o aspecto do mutismo, dos oito primeiros longas-metragens ficcionais do cineasta da Nova Hollywood, que também era filósofo.

No texto O cinema de Kiarostami na formação inicial de professores por matizes ético -estéticos, Tania Micheline Miorando e Valeska Maria Fortes de Oliveira inserem os matizes ético-estéticos do cineasta no âmbito de rodas de conversa, sob o prisma do conceito de instituinte, mediadas pela Língua Portuguesa e pela Língua Brasileira de Sinais, que fizeram parte de processos formativos docentes na formação inicial.

Escritas de si ‘entre’ mulheres: da intimidade no presente à Distância histórica em Teko Haxy – ser imperfeita, nas letras de Roberta Veiga e de Clarisse Alvarenga, estudam a poética da escrita de si elaborada pela interação da cineasta Mbya Guarani Pará Yxapy (Patrícia Ferreira) com a artista visual Sophia Pinheiro que deu origem ao filme epistolar Teko Haxy – ser imperfeita, gravado no decorrer do ano de 2018 na aldeia Ko’enju, no extremo sul do Brasil.

Daqui em diante, o eixo estabelecido a partir de (auto)biografias coletivas relativas a contextos sociais específicos oferece como pano de fundo um certo recorte cartográfico regional de nosso país, ao mesmo tempo em que revela suas familiaridades e estranhezas.

Gerson André Albuquerque Ferreira e Elenise Faria Scherer, em Narrativas capitalistas em Parintins (AM): biografias, cinemas, perfumes e etnocídios, narram, pelos desvios da prática ensaística, o processo de inserção da economia de mercado que concatena fragmentos do trabalho de extrativismo florestal e das salas de cinema nas décadas de 1970 e 1980 na cidade. O texto está organizado conforme quadros de memória dos autores e em referências históricas e antropológicas.

No escrito A máquina de costura e os fios da memória: aspectos (auto)biográficos engendrados pelo cinema, Giovana Scareli repensa aspectos de biografia não escolar então tecidas pelas artes manuais. Para tanto, engendra o texto pelo encontro com alguns artefatos culturais, principalmente através do filme Costureiras (2018).

Iranilson Buriti de Oliveira discute no texto O pai, o filho e o historiador: diálogos entre cinema, história familiar e doentes de Alzheimer questões relacionadas às memórias familiares, o cinema e a história cultural de um sujeito com Mal de Alzheimer, inspirado na historiografia (auto)biográfica de Ivan Jablonka, cujos avós foram vítimas de Auschwitz. Estabelecendo nexos entre objetos pessoais e o filme Diários de uma paixão (CASSAVETES, 2004)1, propõe uma narrativa com base na história, no testemunho e em novos objetos de pesquisa no bojo do ofício do historiador e relações afetivas, escrita acadêmica e inventividade.

Um olhar cronotópico sobre as narrativas biográficas relacionadas às pessoas em situação de deficiência no cinema expressa a perspectiva de Maria Jaqueline de Grammont sobre certa tradição cinematográfica responsável por abordar a problemática da pessoa com deficiência mediante a produção cinematográfica de dramas biográficos. Partindo da classificação bakhtiniana dos romances literários e do conceito de cronotopo, encontrou dois grupos de filmes: um em que os sentidos da deficiência se restringem ao significado da superação; outro em que filmes oferecem múltiplas vozes sociais que tensionam o contexto social considerando o corpo, a sexualidade e a inclusão que se projetam no devir.

Celia Maria Fernandes Nunes, Karla Cunha Pádua e Regina Magna de Araújo trabalharam em torno do enunciado “Tô aprendendo a sonhar”: narrativas de jovens e sua relação com a escola. O cinema foi implicado na diversidade e na singularidade das narrativas produzidas segundo as expectativas de vida e de futuro de jovens que frequentam as escolas públicas brasileiras. As autoras procuraram uma análise narrativa hermenêutica que lança luz às falas dos jovens inserindo-as em uma história significativa, preservando os elementos singulares e almejando um entendimento de sua particular complexidade.

Integra o dossiê a entrevista realizada por Jorge Larrosa com Pablo García – Cada intento es un nuevo comienzo. Cine y biografía en camino incierto, de Pablo García – sobre processos de criação e produção de filmes pelo diretor. A entrevista tematiza sobre o último trabalho do diretor, o filme Camino incierto, numa conversa implicada sobre temas banais e fundamentais da vida, voltados para o efêmero, o que se desfaz e permanece, o fim, o começo, movimentos, tempos e recomeços, espaços, lugares e pulsões da vida. A entrevista tematiza também sobre questões relacionadas às escritas do eu ou a literatura do eu e notadamente do cinema do eu, como referência aos processos biográficos e a produção cinematográfica.

O dossiê sistematiza experiências dos autores com o cinema, seja na condição de criadores, expectadores ou de modos de apropriações do cinema como dispositivo pedagógico, formativo e transformador da vida humana.

Aracaju/Belo Horizonte, 30 de agosto de 2021

Nota

1 The notebook; Nick Cassavetes, Estado Unidos, Averry Pix, 2004, digital.


Organizadores

Renato Izidoro da Silva – Universidade Federal de Sergipe.

Inês Assunção de Castro Teixeira -Universidade Federal de Minas Gerais.


Referências desta apresentação

SILVA, Renato Izidoro da; TEIXEIRA, Inês Assunção de Castro. Apresentação. Revista Brasileira de Pesquisa (Auto) Biográfica. Salvador, v. 06, n. 18, p. 444-448, maio/ago. 2021. Acessar publicação original [DR]

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