Narcotráfico e segurança humana | Argemiro Procópio
Nas relações internacionais, como em outros campos das ciências sociais, o Estado apareceu, constantemente, como referencial importante, senão como o principal, nos estudos e pesquisas empreendidos. Durante a Guerra Fria, para os especialistas norte-americanos em estudos internacionais, por exemplo, ele era o ponto de partida das análises ideológicas. Com a derrubada do Muro de Berlim, a qual simbolizou a queda do regime socialista, novos campos de estudos, que ultrapassam as circunscrições geográficas e territoriais tradicionais, vieram a lume, possibilitando a ampliação dos estudos sobre determinados temas, até então considerados de importância secundária ou vistos como de política interna.
Havia a expectativa, após o fim do conflito bipolar, do encerramento da era dos embates ideológicos e, desta forma, os povos, fossem por meio de seus Estados, fossem por meio das organizações internacionais, assumiriam o combate contra o subdesenvolvimento, ao pugnar pela elevação do bem estar social de todos os habitantes do planeta (e assim contemplar a Carta dos Princípios Fundamentais dos Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas) e não apenas por altas taxas de crescimento econômico, por si mesmas.
No entanto, as expectativas positivas arrefeceram e, em seu lugar, emergiram, com vigor, situações e atores que tornam mais sombrios o cenário internacional. Em lugar das tradicionais forças transnacionais, ocupam o espaço mundial os ilícitos transnacionais, que trazem, em seu âmago, desrespeito aos direitos humanos, intromissão na autodeterminação dos povos, interferência no cotidiano social interno e, por fim, consolidação de novas formas de poder.
Costumava-se considerar como forças transnacionais atores que se dividiam de duas formas: organizadamente (corporações multinacionais ou transnacionais e organizações não-governamentais) e difusamente (opinião pública internacional). Os pesquisadores dedicavam pouca atenção à questão dos ilícitos, vistos, geralmente, como um problema de ordem interna, adstrito aos setores policiais. Contudo, o novo delineamento mundial mostra que, em face da reestruturação do papel dos Estados e das forças econômicas mundiais (sujeitas a menos controle estatal), surge, com vigor, a presença dos ilícitos transnacionais, que congregam linhas que vão desde o terrorismo até o tráfico de drogas.
Quanto ao último, o narcotráfico internacional movimenta centenas de bilhões de dólares, passando a influenciar casas bancárias, a impulsionar a fabricação e a venda de armas, a prejudicar a consolidação dos direitos humanos e a interferir na vida política interna de diversos países (vide os casos da Colômbia, Afeganistão, Congo e do Kôsovo, ainda iugoslavo, para citar os mais célebres). Com o desenvolvimento do processo de globalização, reforçado com o fim do bloco socialista europeu, houve a formação de novos espaços e uma lógica de operação realmente mundial. Sua presença é mais significativa em países ou regiões onde há subdesenvolvimento econômico com grandes desigualdades sociais, disputas étnicas ou religiosas.
Outro aspecto importante a destacar é a interação da política interna com a externa, à medida que os conceitos dicotômicos basilares de soberania estatal e de anarquia internacional vão esmaecendo em função da limitação substancial da soberania estatal, fruto do reordenamento de forças do pós-Guerra Fria, que, com a interdependência, não tem mais como lidar com as áreas econômicas, sociais, ambientais, culturais e de segurança de modo isolado.
Se houve um relativo enfraquecimento das estruturas estatais, por seu turno, as organizações internacionais também não conseguiram lograr papel de monta nessa nova ordem mundial, conseqüência, talvez, de serem elas mesmas sustentadas e legitimadas pelos Estados.
Assim, abriu-se, nessa fase mundial de transição (ou de crise sistêmica), um largo campo de atuação para as forças ilícitas que crescem, fortificam-se e assumem áreas sociais tradicionais, outrora ocupadas ou administradas pelo poder público. Apesar da crescente interdependência entre os Estados, facilitada bastante pelos avanços nos campos de transporte e comunicação, os grupos ilícitos avançam mais rápido, proporcionando ao Estado e a seus cidadãos a noção da perda de controle ou de tibieza permanente perante esses “novos” atores.
Um quadro dessa natureza ensejaria, pois, uma ampla análise, que foi contemplada na presente obra, fruto da coordenação de Argemiro Procópio. Este, professor titular do Departamento de Relações Internacionais da Universidade de Brasília, inicia o livro com a investigação dos interesses difusos e semi-ocultos, que permeiam o mundo do narcotráfico, inclusive o Brasil.
Para tal, considera também os aspectos sociais, que, sobremaneira, influenciam os destinos dessas atividades ilícitas. Ao abordar o tema deste modo, o professor Procópio supera o ângulo restrito de resolução e encaminhamento da questão, que advogam soluções policiais ou militares, as quais não atacam os verdadeiros vetores da questão, limitando-se a dar um tratamento superficial, visto que ignoram os verdadeiros “barões” da atividade. Dentro dessa ótica meramente de segurança nacional, há a tentativa de reduzir a oferta de drogas, por meio de solução militarizada, com vistas a eliminar o fornecimento. Sem consumo, não haveria a produção, como poderiam, preliminarmente, pensar alguns.
Isto seria correto apenas em um determinado ângulo à proporção que, em procedendo deste modo, não há o combate da “lavagem”do dinheiro ilegal, proveniente dessas atividades, que atravessa com desenvoltura os paraísos fiscais, onde é legalizado através de transferências on line, o que dificulta o controle desses fluxos financeiros e sua procedência (a ONU estipula entre 3 e 5% do PIB mundial).
Procópio alerta que, sem ajuda real econômica das principais potências às nações vítimas dessas atividades, apenas o uso da manu militari mostrar-se-á insuficiente. Há a necessidade de reforçar os instrumentos democráticos, através da cooperação internacional e não de disfarçadas intervenções, que ferem a autodeterminação dos povos. Por fim, realce-se que o professor Procópio é um pioneiro em temas transnacionais, sendo um dos primeiros a estudar, com sucesso, a região amazônica, sob a ótica das relações internacionais.
Nos capítulos posteriores, há contribuições valiosas de autores de diferentes segmentos, mas de grande representatividade em suas áreas. Destarte, o ex-Presidente da Bolívia (1989-93), Jaime Paz Zamora, repassa as importantes reuniões e conferências sobre o tema, que tiveram repercussão no continente latino-americano. Posto isso, comenta a particular situação da Bolívia, que sofreu influências internacionais consideráveis da parte das grandes potência, em especial dos EUA, para rematar sobre as contribuições que seu país pode propiciar ao mundo, em uma frente internacional que possua uma dinâmica que se contraponha de modo eficiente à situação que aflige o mundo todo.
Outro que contribui para a obra, embora de modo sintético, é Dom Raymundo Damasceno de Assis, Secretário-Geral da Conferencia Nacional dos Bispos para o Brasil, que discorre sobre as medidas concretas que a Igreja católica vem tomando para minorar o fardo das conseqüências do uso dessas substancias ilícitas, tanto no campo da prevenção como da assistência, inclusive espiritual.
Para finalizar o livro, há a valiosa contribuição do também professor titular do Departamento de Relações Internacionais da UnB, Antonio Augusto Cançado Trindade, que, de um modo mais abrangente, aborda a metodologia utilizada para a proteção internacional dos direitos humanos. Cançado Trindade, atualmente Presidente da Corte Interamericana de Direitos Humanos, faz uma precisa exposição sobre os procedimentos e ações adotados para proporcionar às vitimas de violações garantias para a salvaguarda das prerrogativas legais a que fazem jus. Apesar dos avanços, chama o autor a atenção para a necessidade de “ratificação universal” de alguns tratados de direitos humanos (Teerã, 1968, e Viena, 1993) que assegurariam a universalidade de fato dos direitos humanos.
Além da adoção de determinados primados, há, de modo intransigente, que estabelecer um sistema de monitoramento dos direitos humanos, de sorte que o estipulado nas convenções não seja apenas figura de retórica.
Assim, conclui-se que a presente obra reúne esforços multidisciplinares, que tratam de temas atuais com diligência e competência, ofertando ao leitor um amplo painel com informações e análises, que superam o lugar comum. Demonstra-se, desta forma, a excelência da obra, que, sobejamente, propiciará aos leitores e estudiosos farto material de reflexão.
Resenhista
Virgílio Arraes
Referências desta Resenha
PROCÓPIO, Argemiro (Org.). Narcotráfico e segurança humana. São Paulo: LTr, 1999. Resenha de: ARRAES, Virgílio. Revista Brasileira de Política Internacional, v.44, n.1, 2001. Acessar publicação original [DR]