Na Estrada da Mata, de Cristiane F. Schuch (Detalhe de capa) | Imagem: Editora Sobre o Tempo
Os caminhos que cortam o sul do território brasileiro entre os séculos XVIII e XX delineiam paisagens que têm sido exploradas do ponto de vista histórico, político, econômico e geográfico, como espaços de fronteira móvel, pelo menos desde a tradição ensaísta brasileira do início do século XX. Ao longo de dois séculos, as transformações socioambientais e econômicas foram constituindo lugares vividos (Thayer Jr., 2003) na interação entre populações humanas e mundo natural, com consequências para a preservação ou erosão de fronteiras estabelecidas entre sociedade e natureza, materializadas em diferentes convivências em espaços de trânsito.
Em Na Estrada da Mata, a historiadora Cristiane Fortkamp Schuch trilha um antigo caminho que corta o atual estado de Santa Catarina para promover o encontro interdisciplinar de história ambiental, história rural e geografia rural. O objetivo da obra é discutir a permanência da pecuária como uma espécie de estrutura que foi paulatinamente deslocando populações humanas e animais para construir uma paisagem de convergência de economia, ecologia e cultura no que hoje é a região do planalto serrano catarinense.
O livro tem, nesse sentido, um enfoque regional, sem deixar de apresentar implicações mais amplas. Estruturado em três capítulos, discute uma história regional de entrelaçamento de ciência zootécnica, medicina veterinária, política e economia, que foi sendo estabelecida na transição entre um Brasil-colônia e, depois, uma ciência republicana, sem deixar de considerar a flutuação sociopolítica dos projetos de modernização pecuária que tomaram conta do Brasil na primeira metade do século XX. Ao mesmo tempo, o apelo para um caso regional, que é a reemergência e a patrimonialização de uma raça bovina brasileira presente na região de Lages, Santa Catarina, certificada como “Raça Crioula Lageana”, é o espaço privilegiado de discussão das relações entre estado e mundo animal, cujo vetor de leitura é o gado bovino, politizado e cientificizado.
No primeiro capítulo, “Sobre a (re)construção de paisagens: fazendas e pecuária no planalto serrano catarinense”, a autora busca discutir a formação socioespacial do planalto serrano de Santa Catarina, considerando simultaneamente a organização da pecuária desde o século XVIII como atividade econômica em meio à diversidade faunística e florística regional. Em um primeiro momento, Schuch retoma a leitura sobre paisagem de um ponto de vista interdisciplinar, pontuando os processos de alteração das áreas de campos e de floresta atlântica no planalto. Ao considerar o ponto de partida apresentado por Alfred Crosby (2011), no qual o processo de conquista ibérica foi o responsável direto por alterações paisagísticas com a introdução de novas espécies animais e vegetais, a autora mapeia parte do mosaico de campos e florestas locais.
Pessoas e paisagem são retomadas na discussão histórica do capítulo que percorre os caminhos de tropa e as taipas regionais do planalto serrano. É nesse espaço de tropas que a pecuária local apresentará um gado antigo, de grandes chifres e muita rusticidade, muito vinculado a uma herança genética ibérica. O cenário de trabalho com esse gado levará a autora a dar atenção a segmentos sociais cruciais e especializados para a efetivação econômica de um cenário pecuarista na localidade desde o século XIX, especialmente os taipeiros, considerando sua falta de mobilidade social e os reflexos periféricos de mudanças econômicas maiores no Brasil e no mundo (Schuch, 2019, p. 38-39).
A consolidação de uma paisagem de pecuária entre um incipiente espaço ocupado por populações não indígenas a partir do século XVIII e a estruturação de fazendas leva a autora ao segundo capítulo, destinado ao trato da modernização pecuária, e intitulado “Campo de demonstração e posto zootécnico de Lages: políticas, desenvolvimento e reconfiguração da economia regional”. Schuch observa que “a necessidade de orientação tecnológica para o desenvolvimento econômico […] resultaria em novas concepções sobre a relação entre terra e seres humanos” (Schuch, 2019, p. 73).
Os campos de demonstração ou estações de experimentação agropecuária foram consolidando uma orientação tecnicista que era inexpressiva no século XIX em toda a região, mas que foi sendo considerada crucial na primeira metade do século XX. Surgia, nesse sentido, em 1913, o Posto Zootécnico de Lages, “abrindo espaço para transformações tanto na qualidade dos rebanhos quanto na cultura de forrageiras, reorganizando a atividade pastoril do planalto” (Schuch, 2019, p. 75). O capítulo chama a atenção especialmente por discutir encontros e distanciamentos entre uma instituição de pesquisa e criadores de gado, bem como os embates que envolvem o financiamento de investigações sobre melhoramento de raças e os processos de deslocamento da importância econômica da criação de gado ao longo do século XX no planalto de Santa Catarina.
No último capítulo, Schuch aborda a revalorização genética da raça “crioula lageana”, que é caracterizada como um plantel bovino fortemente vinculado a traços genéticos de gado que foi trazido da Europa ainda no período colonial e que permaneceu localizado no território do planalto. Ao percorrer a constituição de uniões de criadores de gado, bem como produções da opinião pública regional do planalto serrano catarinense ao longo da primeira metade do século XX, a autora trabalha com a emergência de um debate público em torno da necessidade de modernizar a economia pecuária, entendida como elemento fundamental para a manutenção da identidade regional, por parte do poder municipal, mas também por parte de empresários e fazendeiros.
Esse debate foi se firmando no final do século XX, com a aglutinação de grupos de interesse ligados à revalorização do planalto catarinense como espaço peculiar de modernização e identidade. Nesse sentido, uma das operações significativas que é apontada de maneira provocativa pela autora diz respeito à aproximação entre identidade regional e pecuária, com a ressignificação de uma raça de gado bovino que, em princípio, não é produtiva se comparada à criação de raças produtivas de carne e de leite, mas que carrega algumas características genéticas que se expandem para a descrição de uma sociedade local, valorizadas positivamente, tais como rusticidade, resistência ao clima, perenidade. Assim, Schuch percorre algumas oportunidades ímpares para a construção de novas histórias que dialogam com economia, genética, história animal e história cultural do planalto de Santa Catarina, mas que têm implicações nacionais, que passo a refletir.
A primeira delas diz respeito a um chamamento que já havia sido realizado na obra Centering Animals in Latin American History, coletânea organizada por Martha Few e Zeb Tortorici em 2013, de reposicionar animais não humanos na história humana. Pensar a raça crioula lageana no final do século XX em termos centrais para a história de Santa Catarina, embora ainda de um ponto de vista de convergência entre economia, história rural e geografia, como é o caso do livro de Schuch, constitui uma iniciativa importante no sentido de percebermos as possibilidades teórico-metodológicas de histórias animais de localidades que, mais do que ocupação humana, têm sido marcadas por ocupações de animais não humanos que transitaram entre continentes nos intercâmbios colombianos.
Outra implicação importante da obra é que, mesmo estando lococentrada no planalto serrano de Santa Catarina, a perspectiva de trabalho com a revalorização de uma raça bovina e suas ligações com processos que buscam, via aproximação entre economia e sociedade, refundar identidades permite pensar questões mais amplas para as próprias relações entre humanos e mundo natural. Em certa medida, pode-se ler o livro a partir de uma perspectiva de história que dialoga com o que Ranjan Chakrabarti (em Corona, 2008) entende como uma história ambiental interessada nas “partes historicizáveis da vida dos seres”, na medida em que as imagens de animais e de paisagens que aparecem ao longo do texto não estão apenas contando as leituras e enquadramentos humanos de processos de modernização das raças locais, mas também os impactos, as preocupações, os desafios que elas apresentam aos interesses humanos quando se fala da aproximação entre instituições de pesquisa animal e políticas de desenvolvimento regional ligadas à pecuária.
Uma terceira possibilidade que o livro apresenta está ligada às aproximações possíveis entre história rural e história das ciências, com ênfase nas ciências como Veterinária e Zootecnia. Essas áreas têm sido pouco exploradas na historiografia, quando pensamos na grande profusão de pesquisas ligadas à história da modernização das práticas agropecuárias brasileiras. A autora explora, nesse sentido, um interessante arquivo de fontes que restaram de um posto zootécnico que, localizado no sul do Brasil, diz muito sobre a racionalidade econômico-científica da República na década de 1910 no país. Não faltam indicações sobre um princípio utilitarista de ciência zootécnica em meio ao processo de criação do posto, contudo é importante considerar, e Schuch deixa claro isso, as idiossincrasias de instituições científicas e técnicas em uma região de economia tradicional no período.
Alguns caminhos ficam abertos (não foram trilhados) para pesquisas futuras, tais como as relações entre pesquisas ligadas ao melhoramento animal e seu impacto para a relação entre ciência e economia no Brasil republicano na primeira metade do século XX. Quando prestamos atenção ao terceiro capítulo do livro, sobre revalorização regional e a raça crioula lageana, que obteve certificação recente, é importante pensar ainda mais essa revigorada relação entre ciência e estado, mas também entre ciência e criadores regionais, na luta por uma identidade animal não humana.
Isso porque se descortinam debates em torno da preservação de plantéis, da preservação genética de raças antigas baseadas na rusticidade, mas igualmente a reflexão sobre identidade regional em termos econômicos e culturais alicerçados na pecuária que, talvez, hoje não seja tão importante do ponto de vista econômico como já foi até os anos 1960. Uma outra problematização potencial é tangenciada e pode servir de inspiração futura: trata-se da reflexão sobre o encontro econômico-ecológico-político entre populações escravizadas que trabalhavam com gado na região investigada entre o século XVIII e XIX, e a constituição de paisagens locais.
Nos encontros de história rural, história ambiental e geografia rural de Na Estrada da Mata, deparamo-nos com uma leitura fluida, que intercala amplo uso de fontes primárias regionais de instituições científicas e grupos políticos pecuaristas, em cotejo com uma discussão equilibrada entre História e Geografia, em uma leitura que está direcionada a um público interessado tanto em história regional, mas principalmente em um emergente campo que acaba sendo vislumbrado de maneira indireta, porém instigante: a história animal.
Referências
CORONA, G. et al. 2008. What is Global Environmental History? Conversation with Piero Bevilacqua, Guillermo Castro, Ranjan Chakrabarti, Kobus du Pisani, John R. McNeill, Donald Worster. Global Environment, 2:228-249.
CROSBY, A. W. 2011. Imperialismo ecológico: a expansão biológica da Europa, 900-1900. São Paulo, Companhia das Letras, 376 p.
FEW, M.; TORTORICI, Z. (org.). 2013. Centering Animals in Latin American History. Durham, Duke University Press, 406 p.
SCHUCH, C. F. 2019. Na Estrada da Mata: pecuária e sociedade no planalto de Santa Catarina (séculos XVIII a XX). Fraiburgo, Sobre o Tempo, 158 p.
THAYER JR., R. 2003. LifePlace: Bioregional Thought and Practice. Berkeley, University of California Press, 317 p
Resenhista
Jo Klanovicz – Universidade Estadual do Centro-Oeste (Unicentro). Laboratório de História Ambiental. Bolsista CNPq – Pq2. E-mail: jo@unicentro.br ORCID: https://orcid.org/0000-0002-5110-9028
Referências desta Resenha
SCHUCH, Cristiane Fortkamp. Na Estrada da Mata: pecuária e sociedade no planalto de Santa Catarina (séculos XVIII a XX). Fraiburgo: Sobre o Tempo, 2019. Resenha de: KLANOVICZ, Jo. Animais e História: gado bovino, identidade e economia em Santa Catarina, Brasil. História Unisinos. São Leopoldo, v.26, n.2, p. 372-374, maio/ago. 2022. Acessar publicação original [DR]
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