Mussolini contro Lenin | Emilio Gentile
Emilio Gentile | Imagem: Accenti, 2019
Em agosto de 2017, após um confronto entre neonazistas e antifascistas em Charlottesville, nos EUA, espalhou-se nas redes sociais uma ideia que, anos atrás, talvez só tivesse adeptos entre os cultores de teorias da conspiração e de modernas lendas urbanas: a de que o nazismo teria origem num movimento de esquerda ou seria ele mesmo um movimento de esquerda. O site de notícias UOL publicou, na ocasião, uma reportagem desmentindo essas afirmações. Historiadores foram consultados2, e os argumentos disparatados dos defensores dessa ideia exótica foram refutados pelo site (UOL, 2017).
Um ano mais tarde, em setembro de 2018, a embaixada da Alemanha em Brasília e seu Consulado Geral no Recife publicaram um vídeo em que se explicava como a história é ensinada às crianças alemãs. No material produzido afirmava-se que o nazismo era um movimento de direita. Foi o que bastou para que um grupo de brasileiros tentasse “corrigir” os alemães através de uma enxurrada de críticas: afirmavam que o nacional-socialismo era de esquerda e que o Holocausto não havia acontecido. Damaris Jenner, encarregada dos assuntos de imprensa da embaixada, explicou ao jornal El País que a ideia de falar sobre como se ensina a história na Alemanha surgiu precisamente nos dias em que aconteceram as manifestações neonazistas em Chemnitz (Rossi e Oliveira, 2018). Mas a reação dos internautas os surpreendeu.
Meses depois, em abril de 2019, numa visita ao Memorial do Holocausto em Israel, o presidente da República do Brasil afirmou, em consonância com seu ministro das Relações Exteriores, que “não há dúvida” de que o nazismo era de esquerda, pois o partido de Hitler tinha em seu nome a palavra “socialista” (Jornal Nacional, 2019).
Em tempos normais, aberrações como essas não seriam levadas a sério, nem mesmo postas em discussão. Mas tudo indica que não vivemos em tempos normais. Quando um grande site, como o UOL, além de representantes do governo alemão e o Memorial do Holocausto são constrangidos a desmentir sandices espalhadas por pessoas que ocupam espaços que vão desde caixas de comentários da internet até a cadeira presidencial de um grande país, é porque algo de muito estranho está acontecendo com a consciência coletiva. E soa a distopia – algo como o famoso romance de George Orwell, 1984.
No entanto, o “debate” que relaciona os movimentos de extrema-direita com o comunismo – ou o così detto “socialismo real” – não é absolutamente novo e tampouco carecia da sofisticação dos atuais fabricantes de fake news. Basta pensar, por exemplo, que Friedrich Hayek, guru dos neoliberais tardios, em seu livro O caminho da servidão já sugeria que “o conflito existente na Alemanha entre a ‘direita’ nacional-socialista e a ‘esquerda’ é o tipo de conflito que sempre se verifica entre facções socialistas rivais” (Hayek, 1984, p. 36, grifo nosso). Em face do liberalismo econômico mais extremado, não admira, certamente, que dois movimentos de natureza absolutamente antagônica sejam identificados por traços aparentemente comuns, como a supremacia do Estado na economia e na sociedade, por exemplo. Seria o mesmo que, na mitologia cristã, identificar anjos e demônios, uma vez que, além da mesma origem, ambos têm asas e voam3.
O escrito de Hayek foi publicado na segunda metade dos anos 1940. Mais recentemente, porém, a polêmica tomou novo fôlego; François Furet, considerado um revisionista da historiografia sobre a Revolução Francesa, e Ernst Nolte, para quem o fascismo deve ser entendido como uma reação ao “comunismo” soviético, propuseram interpretações controversas sobre a ascensão e o significado dos movimentos que culminaram nos totalitarismos do século XX (Furet e Nolte, 1999). Porém, mesmo entre esses historiadores preocupados em acentuar os traços comuns ou a interdependência entre os movimentos rivais, não há qualquer pretensão de colocar o fascismo e o nazismo no campo da esquerda política.
No plano do discurso produzido pelo próprio fascismo, no entanto, é possível encontrar afirmações absolutamente surpreendentes a respeito de sua natureza política. Em artigo publicado no jornal La Repubblica Fascista, Enzo Pezzato assim se dirigia aos seus leitores: “Os nossos programas são decisivamente revolucionários, as nossas ideias pertencem àquilo que em regime democrático se chamaria de esquerda’” (Lanna e Rossi, 2003, p. 176, tradução nossa). E prossegue, com uma linguagem que pretende arremedar o discurso socialista, dizendo que o ideal dos fascistas era o Estado do Trabalho [Stato del Lavoro]: não poderia haver dúvidas de que eles eram os proletários em luta de vida ou morte contra o capitalismo, revolucionários em busca de uma nova ordem; não fazia sentido, segundo Pezzato, dirigir-se à burguesia alardeando contra o “perigo vermelho”; e arremata de maneira chocante: “O pesadelo verdadeiro, o perigo autêntico, a ameaça contra a qual lutamos sem parar vem da direita”; por isso, a burguesia não servia como aliada para combater a ameaça comunista, que, no final das contas, era reconhecida como tal (Lanna e Rossi, 2003, p. 176). O artigo de Pezzato4 foi veiculado num periódico da República de Salò três dias antes do 25 de abril de 1945, data da proclamação, pelo Comitê de Libertação Nacional da Alta Itália, da insurreição geral contra os territórios ainda ocupados pelos nazifascistas. No dia 28 de abril Mussolini seria executado.
O artigo publicado pelo jornal La Repubblica Fascista deve ser compreendido dentro do contexto do final da guerra na Itália e da “socialização” das empresas durante a República de Salò – estado ocupado pela Alemanha nazista. Seria um erro, portanto, estender a sua validade para todo o período em que o fascismo esteve no poder, ou seja, de 1922 a 1945. Aliás, uma das mais importantes tarefas do historiador e do cientista social é explicar, através de minuciosa pesquisa, os motivos pelos quais tal ou qual discurso, por mais disparatado que seja, ganha popularidade em determinados momentos e a que fins ele serve.
Em seu livro Os assassinos da memória, Pierre Vidal-Naquet estabelece, de maneira definitiva, como deve proceder o intelectual sério e coerente diante das imposturas fomentadas por charlatães de todos os tipos. Segundo o historiador francês, “podemos e devemos discutir sobre os ‘revisionistas’; podemos analisar seus textos como fazemos a anatomia de uma mentira”, devemos analisar o lugar que ocupam no rol das ideologias e, finalmente, “questionar- -nos o porquê e como apareceram, mas não discutir com os ‘revisionistas’” (Vidal-Naquet, 1998, p. 11, grifo do autor). Ou seja, a única postura válida é aquela que pretende explicar como e por que surgem tais aberrações ideológicas, mas jamais debater com elas. Confrontá-las com a ciência especializada seria, de certa forma, como reconhecê-las.
Em 2017, ano que marcou o centenário da Revolução Russa, e em meio à ascensão generalizada das fake news e da chamada “pós-verdade”, o historiador italiano Emilio Gentile, maior referência no estudo do fascismo atualmente, publicou um livro que contribui grandemente para o debate a respeito das “relações” entre fascismo e bolchevismo; ou, mais precisamente, entre o líder fascista e o líder da Revolução Russa: trata-se de Mussolini contro Lenin (Laterza, 2017, 1ª edição).
Gentile é professor emérito da Università di Roma La Sapienza. Com uma vasta obra sobre o fascismo e a cultura fascista, foi agraciado, entre outros, com o Prêmio Hans Sigrist da Universidade de Berna. Entre suas publicações encontram-se livros fundamentais para a compreensão da recente história política italiana, tais como Fascismo e Antifascismo: I partiti italiani fra le due guerre (Le Monnier, 2000), Contro Cesare: Cristianesimo e totalitarismo nell’epoca dei fascismi (Feltrinelli, 2010) e E fu subito regime: Il fascismo e la marcia su Roma (Laterza, 2012). Em sua obra Mussolini contro Lenin, no entanto, o autor nos ajuda a pensar sobre os motivos pelos quais a história e a memória são moldadas ou instrumentalizadas. Lança luz, assim, sobre o modo como o discurso foi manipulado e como a história foi falsificada para atender aos interesses dos poderosos.
É aqui que o livro de Gentile pode lançar luz sobre os problemas que levantamos anteriormente.
A obra Mussolini contro Lenin é composta de um Prólogo, 14 capítulos e um Epílogo. No capítulo inicial, por exemplo, é possível acompanhar a mudança de versões a respeito de um eventual encontro entre Mussolini e Lenin nos primeiros meses de 1904, quando ambos viviam em Genebra. Naquele momento Lenin já militava no movimento marxista russo havia cerca de 15 anos, enquanto Mussolini tinha se filiado ao Partido Socialista italiano três anos antes. Na cidade suíça frequentavam alguns lugares em comum, embora talvez não ao mesmo tempo ou no mesmo período.
O modo como esse suposto encontro passou à posteridade é curioso – e revelador da manipulação histórica a que nos referíamos. Em 1932, ao entrevistar o então duce no Palazzo Venezia, o jornalista alemão Emil Ludwig lhe fez a seguinte observação: “Lenin deve ter conhecido o senhor. Ele deve ter dito aos socialistas italianos: ‘Por que vocês perderam Mussolini?’” (Gentile, 2017, p. 4, tradução nossa). Ao que o italiano respondeu: “É verdade que ele disse isso. Eu não tenho certeza de tê-lo encontrado com os outros em Zurique. Eles mudavam continuamente o seu nome…” (Gentile, 2017, p. 4).
Cinco anos mais tarde, porém, ao falar com o jornalista francês René Benjamin, mudou o discurso. Agora estava certo de haver se encontrado com o líder bolchevique: “Eu o vi, eu o conheci… tinha um aspecto desumano” (Gentile, 2017, p. 4). Mas em agosto daquele mesmo ano de 1937, ao conversar com Mussolini, seu biógrafo oficial Yvon De Begnac lhe fez uma observação a respeito da discordância entre as suas declarações sobre o encontro com Lenin, ao que Mussolini explicou que havia, então, reordenado suas recordações e muitas circunstâncias se tinham esclarecido em sua memória: ao falar com Emil Ludwig, não tinha excluído as afirmações que fez a Benjamin, anos depois. Ou seja, no círculo de seus conhecidos eslavos talvez estivesse também Lenin: “Encontro ocasional em um daqueles salões revolucionários da emigração russa… Lenin me conhecia muito melhor do que eu a ele” (Gentile, 2017, p. 5), afirmou o duce.
Um mês mais tarde, no entanto, conversando com o mesmo biógrafo, Mussolini falou novamente de um modo incerto sobre o suposto encontro com o líder bolchevique: “Eu não sei se me encontrei com Lenin na Suíça entre 1902 e 1904 […] Os refugiados russos mudavam continuamente de nome na época do exílio” (Gentile, 2017, p. 5).
O mais interessante, contudo, no que diz respeito à mudança no discurso sobre tal encontro, veio mais tarde, pois durante o tempo da República de Salò a recordação sobre esse suposto evento se transformou em certeza, e com o acréscimo de detalhes que, segundo Gentile, eram pura invenção de Mussolini ou de quem a ele os atribuía. Assim falou o chefe da República Social ao médico alemão Georg Zachariae: “Quando estive na Suíça como refugiado político, frequentei por um certo tempo o ambiente de Lenin”. E acrescentou que, à exceção do líder russo, que “sem dúvida era um homem de extraordinária inteligência”, os demais militantes eram todos uns “falastrões”, “estúpidos” e alguns deles eram “dignos de serem trancados num manicômio” (Gentile, 2017, p. 5). Por isso teria procurado afastar-se daquele ambiente e recuperar sua liberdade de movimento. E encontrou, então, a ocasião de repetir a historieta segundo a qual Lenin teria dito: “Como puderam deixar aquele homem ir embora?” E acrescentou à fabula um traço anacrônico, pois, após lamentar a perda de um homem tão valioso, o líder bolchevique teria feito a profecia: “Tenho certeza de que por sua causa e pelas ideias que ele tem, o marxismo será, em um dia distante, batido e definitivamente arruinado” (Gentile, 2017, p. 5).
O que teria motivado a invenção de Mussolini a respeito do “encontro” com Lenin? Mais que a atribuir à compulsão pela mentira por parte do duce, acreditamos que seria interessante relacionar tal invenção ao contexto da República de Salò; contudo, não tomando a relação contexto-discurso como ponto de chegada, mas, ao contrário, como hipótese, como ponto de partida. Segundo o cônsul alemão Eitel F. Moellhausen, no período final da guerra na Itália, às vésperas de sua derrota definitiva, Mussolini chegou a inventar que havia dormido debaixo das pontes de Genebra na companhia de Lenin. Uma fantasia absoluta. Gentile considera, no entanto, muito provável que tenha havido um encontro ocasional entre Lenin e Mussolini no dia 18 de março de 1904, na Brasserie Handwerk, em Genebra, por ocasião de uma comemoração do aniversário da Comuna de Paris promovida por militantes socialistas. Mas isso não quer dizer que se tenham conhecido. Se estiveram presentes na comemoração, o mais provável é que um nem tenha notado a existência do outro.
É possível que não saibamos jamais se esse encontro ocasional teria ocorrido de fato. O que sabemos, com certeza, é que de 1904 a 1914 Lenin e Mussolini percorreram “vias quase paralelas”, que se separaram bruscamente pouco depois do início da Primeira Guerra Mundial. Nas palavras do historiador italiano, os percursos continuados pelos dois líderes políticos foram “diametralmente opostos, antes contrapostos, em uma guerra de morte entre inimigos inconciliáveis” (Gentile, 2017, p. 12). E é justamente essa história entre inimigos inconciliáveis que nos é relatada em Mussolini contro Lenin.
As histórias de vida desses dois personagens são distintas uma da outra, desde a infância. Lenin era filho de uma família, se não rica, com certos recursos. Mussolini, ao contrário, era filho de um humilde trabalhador e militante socialista. Lenin era um estudante exemplar, que conseguia resultados brilhantes nos exames, mesmo sendo submetido a situações desvantajosas em relação aos colegas. Mais de uma vez foi o primeiro aluno da turma. Mussolini, embora não contasse com igual brilhantismo, era reconhecido, desde muito jovem, como um garoto inteligente. Nos apontamentos de um instituto onde fora aluno, o que se destaca são as queixas de “rebeldia”, “altivez” e incapacidade de qualquer disciplina, embora nessa mesma época quisesse ser “o primeiro entre os primeiros” e tenha superado todos os demais alunos nos exames escritos (Gentile, 2017, p. 21).
Antes que tomassem vias opostas, Lenin e Mussolini também tinham em comum a admiração por Karl Marx. Num texto de 1913, Lenin qualificava o marxismo como “onipotente”, pois era uma doutrina “justa”: “Ela é completa e harmônica, e dá aos homens uma concepção integral do mundo, que não pode conciliar-se com nenhuma superstição, com nenhuma reação” (Gentile, 2017, p. 31). Mussolini, por sua vez, definiu Marx, em junho de 1914, como “o Mestre imortal de todos nós” (Gentile, 2017, p. 34). Mas, no outono desse mesmo ano, os dois líderes tomaram direções “diametralmente opostas”, ou seja, Mussolini tomou outra via que “não só o conduziu a uma direção contrária àquela na qual Lenin continuou a caminhar, mas o distanciou sempre mais do socialismo, até repudiar ‘o Mestre imortal de todos nós’” (Gentile, 2017, p. 39).
O fato de que tanto Lenin quanto Mussolini tenham partido de uma posição similar em relação a Marx, sendo originalmente seus seguidores, é revelador do quanto o contexto histórico-político influencia na elaboração discursiva dos líderes. Uma vez comprometidos com a manutenção do poder, Lenin fará Marx falar por sua boca e escrever por sua pena, manipulando ideias, tergiversando sobre temas essenciais, como no debate sobre o “capitalismo de Estado”. Sua preocupação era recorrer a Marx – e distorcê-lo, muitas vezes – para respaldar suas ideias. O contrário se dá com Mussolini, que viria a tornar-se inimigo feroz dos marxistas.
Entretanto, antes desse processo de conversão completa, estourou o processo revolucionário na Rússia em fevereiro de 1917. E os dois líderes já sustentavam posições opostas em relação à guerra. Mussolini estava num hospital para se recuperar dos ferimentos que sofrera num exercício militar. O seu jornal Il Popolo d’Italia, no entanto, reportou, exultante, os eventos de Petrogrado. Segundo a publicação mussoliniana, o descontentamento e a insatisfação do povo russo não eram dirigidos contra a guerra, mas apenas contra a tendência reacionária do governo (Gentile, 2017, p. 46). Comparava-se a Revolução Russa de fevereiro com a Revolução Francesa de 1789: “são gêmeas”, afirmava o jornal em editorial de 20 de março daquele ano. Il Popolo d’Italia interpretava a primeira, ainda, como a manifestação da vontade popular de prosseguir a guerra pela democracia; assim, o jornal a apresentava como uma convalidação do intervencionismo de Mussolini, “que considerava a Grande Guerra como uma aceleração revolucionária pelo triunfo da liberdade” (Gentile, 2017, p. 48). E assim parecia pensar também um dos pioneiros do marxismo na Rússia: Gueorgui Plekhanov. Entrevistado por Il Popolo d’Italia em Sanremo, no dia 24 de março, o teórico afirmava que “graças à revolução, a Rússia asiática tinha sido vencida”. Sustentava, ainda, a necessidade de combater a Alemanha, considerando-a como “porta-bandeira do princípio imperialista moderno” (Gentile, 2017, p. 49).
Lenin, por sua vez, tinha ideias bem diversas. Depois de voltar à Rússia, sustentou, num discurso realizado na sede do partido bolchevique, que a guerra era desejada apenas por um punhado de exploradores do povo; argumentou que a “defesa da pátria”, naquele momento, significava apenas a “defesa dos interesses dos capitalistas contra outros capitalistas” (Gentile, 2017, p. 58-59). Ao falar para os militantes políticos, “repetiu que a revolução mundial tinha começado, proclamou que nenhum apoio deveria ser dado ao governo provisório, e que nenhuma colaboração era consentida com os outros partidos socialistas”; expôs, ao mesmo tempo, a sua ideia de governo: “Não temos necessidade de uma república parlamentar, não temos necessidade de uma democracia burguesa, não temos necessidade de nenhum governo, exceto aquele dos Sovietes dos deputados operários, dos soldados e dos assalariados agrícolas” (Gentile, 2017, p. 59-60). Em relação aos soldados russos no front, exprimiu a opinião de que esses deveriam confraternizar com os alemães para constranger os governos a uma paz imediata (Gentile, 2017, p. 60). O líder bolchevique repetia, assim, as suas “Teses de Abril”5 . Era preciso, segundo ele, iniciar a guerra civil contra a burguesia. E suas posições veementes e extremadas foram alvo de críticas. Um antigo membro do comitê executivo do partido bolchevique “observou que o programa da guerra civil enunciado por Lenin era ‘perigoso e insensato’” (Gentile, 2017, p. 60-61), e afirmava que o Lenin marxista, o Lenin que fora líder do partido social-democrata, não existia mais (Gentile, 2017, p. 61).
Como se sabe, essa imagem depreciativa de Lenin não sobreviveu – ou, pelo menos, não imediatamente – após os eventos de 1917. O contrário, na verdade, é o que se deu: uma vez no poder, Lenin tornou-se o grande líder da Rússia revolucionária. Após a sua morte, em 1924, ganhou um status mítico dentro da União Soviética. Discutia-se se sua “genialidade” era maior que a de Marx; proclamou-se o “marxismo-leninismo”, um monstrengo teórico manipulado de tempos em tempos pelos escribas do Estado e elaborado segundo as conveniências da política soviética. O pensamento de Lenin, que fora influente6 durante o século XX, com o fim da URSS foi ganhando um aspecto de artigo exposto em mausoléu; e sua múmia – seu corpo real – continua embalsamada e exposta à visitação até os nossos dias.
Mussolini, por sua vez, não teve melhor sorte, embora os ecos do fascismo se tenham feito ouvir na Itália em vários episódios após a Segunda Guerra Mundial7. Mussolini foi transformado em relíquia, cujos suvenires são vendidos em feirinhas de antiguidades nas praças italianas. Mesmo os atuais “populistas” de direita, como Matteo Salvini e companhia, proferem um discurso que passa por ser a representação farsesca da tragédia original. Afinal, a própria origem da Lega de Salvini está vinculada a uma proposta de secessão do território italiano, algo totalmente inconcebível para o pensamento fascista.
Contudo, num momento em que a extrema-direita avança nos países onde a democracia liberal parecia consolidada e em que as fake news passaram a fazer parte das disputas eleitorais, o conhecimento preciso do passado, das teorias políticas e do modo como os poderosos manipularam (e ainda manipulam) o discurso histórico, é decisivo para orientar as práticas e ações que construirão o nosso presente e o nosso futuro. A obra do professor Emilio Gentile certamente representa uma grande contribuição para isso.
Notas
2 Os professores consultados foram Estevão Chaves Martins, do Instituto de Relações Internacionais da Universidade de Brasília (UnB), e Izidoro Blikstein, da Universidade de São Paulo (USP), especialista em linguística e discurso nazista.
3 A esse respeito vale lembrar a arguta observação de Sigmund Freud: “Não é preciso muita perspicácia analítica para adivinhar que Deus e o Diabo eram inicialmente idênticos, uma só figura que mais tarde se decompôs em duas com características opostas” (Freud, 2011, p. 245).
4 Há quem diga, porém, que essas palavras são o extrato de um discurso de Mussolini proclamado em Milão na mesma data (Mussolini, 1993).
5 As “Teses de Abril”, com seu radicalismo – ao alertar ao partido para o fato de que este deveria preparar-se para a tomada do poder –, transformavam a postura tática adotada pelos bolcheviques desde fevereiro de 1917; é possível que elas tenham aberto caminho para a revolução de outubro daquele ano.
Referências
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Resenhista
Anderson Vinicius Dell Piagge Piva – Universidade Estadual Paulista (Unesp-FCLAr), Pós-Graduação em Ciências Sociais. E-mail: andersonvpiva@gmail.com ORCID: https://orcid.org/0000-0003-4766-1415
Referências desta Resenha
GENTILE, E. Mussolini contro Lenin. Bari: Laterza, 2017. Resenha de: PIVA, Anderson Vinicius Dell Piagge. Mussolini: um precursor das “fake news”? História Unisinos. São Leopoldo, v.25, n.3, p. 562-566, set./dez. 2021. Acessar publicação original [DR]