Uma canção, a rigor, é um artefato cultural que mobiliza, muitas vezes, toda uma extensa rede de sujeitos que operam de distintas formas no seu processo de fabricação. São variados os anéis da cadeia de criação artística que se enlaçam desde a composição de uma obra, sua produção, as performances vocais, visuais, instrumentais, passando pela sua divulgação e, por fim, pela recepção, responsável, em última análise, pelos sentidos que acabam sendo incorporados socialmente a ela. Lugar de coabitação de diferentes linguagens, a canção popular não se oferece necessariamente ao público, de imediato, como um objeto de fácil decifração.
Nem de longe basta recorrermos à sua partitura para nos darmos conta do que ela é ou de seu significado. Como já observou Mário de Andrade, no longínquo 1928, a execução de uma obra pode diferir radicalmente do que está escrito no pentagrama.1 Que isso valha como uma advertência, a exemplo da formulada por Richard Middleton, ao criticar o império da partitura do qual deriva o “centrismo notacional”.2 Preocupações dessa ordem nos remetem, entre outros, a Christopher Small, para o qual “no hay música aparte de la actuación, sea en vivo o grabada”.3 Ater-se, noutra ponta da gangorra, apenas à sua letra, tornando-a refém da palavra escrita, também é um procedimento que nos faz sucumbir ante umas tantas ciladas, quando mais não seja porque, como afirma Robert Darnton, em outro contexto, “o texto pode ir contra si mesmo” ao fugir às “coerções retóricas que orientam a leitura, sem determiná-la”.4
De fato, uma canção é muito mais que uma canção. Interconectada, por linhas visíveis ou menos perceptíveis, ao seu tempo, ela é, no fundo, produto de sujeitos transindividuais. Tal compreensão está na raiz deste dossiê, como que tecendo um grande arco de convergência entre seus colaboradores, cujo pensamento não se permite coagular em torno de visões com prazo de validade vencido. Não é fruto do acaso que dois dos seus centros de gravitação sejam as questões inerentes à performance e à recepção, por mais que os artigos aqui acolhidos transpassem tempos e lugares diferenciados.
Na sua abertura, Julio Mendívil, da Universität Wien/Áustria, se detém na biografia social de uma canção, com os olhos postos nas modificações sofridas por ela. Paralelamente, girando a roda fora do eixo habitual de análise, ele adverte que até os arquivos musicais se prestam a servir como fator de transformação, para além do cumprimento de seu papel como agência de preservação. Na sequência, Juan Pablo González, da Universidad Alberto Hurtado/Chile, rompe a barreira da concepção de autor único. Em seu lugar, desponta uma multiplicidade de autores de uma peça musical, associada ao que esse etnomusicólogo denomina caráter intermedial da música, que engloba diversificadas materialidades, como música, letra, vocalidade e produção/gravação, em linha de diálogo com o videoclipe e as capas dos discos.
Atento igualmente para os meandros de produção, circulação e consumo no mundo artístico, Sergio Pujol, da Universidad Nacional de La Plata/Argentina e do Conicet, inventaria o terreno movediço no qual, em circunstâncias históricas determinadas, brota um “clássico” ou um cânone no âmbito da música popular, como resultante de todo um processo de comunicação e legitimação cultural. Isso implica compreender as razões que levam certas canções – e não outras – a receberem esse selo de consagração. Já Christopher Dunn, da Tulane University/EUA, mostra como é possível escavar outros sentidos inclusive a respeito de movimentos musicais intensamente estudados, caso da Tropicália. Descortina-se, a partir daí, uma ótica alternativa de matriz mística que aponta para os seus vínculos com a cultura moçárabe e medieval reambientada no sertão nordestino. Para tanto, o tropicalista Tom Zé é a carne de que se alimenta essa construção/desconstrução analítica.
O passo seguinte é o texto de Adalberto Paranhos, da Universidade Federal de Uberlândia/CNPq, que evidencia como “Chão de estrelas”, um clássico do cancioneiro popular brasileiro, foi tomada, nos anos 1970, como um exemplo de dialogismo stricto sensu e submetida a uma inesperada politização por meio de outra canção, “Como 2 e 2”, sem falar da devoração antropofágica, via regração, que provocou um curto-circuito em sua constelação de sentidos. Gabriel S. S. Lima Rezende, da Universidade Federal da Integração Latino-Americana e da Universidade de São Paulo (USP), e Sheyla Castro Diniz, da USP, se debruçam, por sua vez, sobre “San Vicente”, transporta originalmente para o disco em 1972, a fim de assinalar aproximações e distanciamentos em relação a parcela significativa da produção musical da esquerda brasileira e latino-americana em geral. Nesse movimento, cruzam diversas perspectivas de abordagem, que não excluem seus suportes musicológicos e suas referências textuais.
Na busca de outros prismas analíticos, Eliza Bachega Casadei, da Escola Superior de Propaganda e Marketing de São Paulo/CNPq, e Herom Vargas, da Escola Metodista de São Paulo/CNPq, apoiados na semiótica da cultura, enveredam pela pesquisa que privilegia as capas de LPs do rock nacional da década de 1960. Concebidas como textos visuais, elas fornecem subsídios para se flagrar a rebeldia e o conservadorismo que atravessavam as representações de masculinidade nessa época. Por último, Vinicius José Fecchio Gueraldo, da USP, na subseção “Ponto de vista”, rende sensível homenagem ao discorrer acerca da sobrevida artística de Gal Costa e Rolando Boldrin, recentemente falecidos.
Notas
1 ANDRADE, Mário de. Ensaio sobre a música brasileira. 3. ed. São Paulo-Brasília: Martins/INL, 1972, p. 21.
2 MIDDLETON. Richard. Studying popular music. Philadelphia, Open University Press, 1990, p. 105.
3 SMALL, Christopher. El musicar: un ritual en el espacio social. Trans: Revista Transcultural de Música, s. l., n. 4 [s./n], 1999. Disponível em https://www.sibetrans.com/trans/articulo/252/el-musicar-un-ritual-en-el-espacio-social. Acesso em 30 mar. 2021.
4 DARNTON, Robert. O beijo de Lamourette: mídia, cultura e revolução. São Paulo: Companhia das Letras, 1995, p. 167.
Organizador
Adalberto Paranhos – Mestre em Ciência Política pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Doutor em História pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Professor do Programa de Pós-graduação em História da Universidade Federal de Uberlândia (UFU). Pesquisador do CNPq. Autor, entre outros livros, de Os desafinados: sambas e bambas no “Estado Novo”. São Paulo: Intermeios/CNPq/Fapemig, 2015. E-mail: akparanhos@uol.com.br
Referências desta apresentação
PARANHOS, Adalberto. Uma canção é muito mais que uma canção. ArtCultura. Uberlândia, v. 24, n. 45, p. 7-8, jul./dez. 2022. Acessar publicação original [DR/JF]
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