Música & Indústria Fonográfica | ArtCultura | 2008
A indústria da música no Brasil passou por transformações bruscas e profundas nos últimos 40 anos. Pode-se dizer que a primeira grande reviravolta nas estruturas de produção e nos modos de consumo, especialmente da música popular, ocorre no início da década de 1970 no bojo de processos muito mais amplos de consolidação da indústria cultural e de constituição de um mercado de bens simbólicos no país. A partir desse momento, parece que a “promessa de socialização cultura”, cultivada por segmentos intelectuais de esquerda nos anos 60, arrefeceu frente ao aprofundamento da administração e da massificação da cultura.
Alguns anos mais tarde, a indústria musical sofreu nova reviravolta decorrente do advento das tecnologias digitais e da sua difusão com a criação do protocolo MIDI (Musical Instruments Digital Interface), em 1982, que transformou rapidamente a base técnica da produção, promovendo a obsolescência do modelo dos grandes estúdios existentes até então. A montagem de novas estruturas produtivas tornou-se mais barata, abrindo espaços para a emergência de novos selos e pequenas gravadoras que começaram a competir com as grandes empresas monopolistas. Iniciou-se, dessa maneira, um período de reestruturação produtiva no setor musical e de adoção de novas estratégias de gestão do mercado fonográfico.
Desde a década de 1990, com a popularização da internet e o aparecimento de softwares, que permitem o compartilhamento de arquivos de MP3 contidos nos computadores de milhões de usuários, possibilitaram-se a circulação e a aquisição gratuita de fonogramas em escala global. As práticas do download ilegal e da pirataria passaram a representar um fantasma para a indústria fonográfica, uma ameaça a sua própria sobrevivência.
Este minidossiê traz um conjunto de artigos que contribui para uma melhor compreensão dessas questões. São trabalhos que tratam da relação entre indústria fonográfica e os processos de produção, distribuição e consumo da música popular nas últimas quatro décadas.
Rita Morelli demonstra no seu texto que, no decurso desses anos, formou-se no Brasil um mercado moderno de música popular, associado à forte integração e internacionalização da indústria cultural. Mesmo assim, é possível notar a persistência de elementos estético-ideológicos vinculados ao projeto nacional-popular no repertório musical, o que se explica, segundo a antropóloga, pelo longo processo de construção da nação moderna que se revigorou especialmente durante a chamada redemocratização do país. Além disso, Morelli sugere que, mais recentemente, no período marcado pela vigência da “ordem democrática” no Brasil e pelo aprofundamento da globalização e da internacionalização da cultura, não se verificou, no âmbito dessa produção simbólica, a passagem do nacional para o internacional-popular, como propõe o sociólogo Renato Ortiz. Ao contrário, a crise na qual mergulhou a indústria da música sob o impacto das novas tecnologias e as tentativas de reestruturação do setor desde os anos 1990, é acompanhada por novas formas de segmentação do mercado fonográfico que refletem, de certo modo, a fragmentação pós-moderna.
O artigo assinado por José Adriano Fenerick converge, em alguns pontos, com o de Morelli. O foco do trabalho é a análise dos efeitos da globalização sobre a produção musical, notadamente a partir da década de 90. Trabalhando com o conceito de indústria cultural na acepção adorniana, Fenerick põe em questão a tese de que o mercado globalizado leva a uma maior diversificação da produção musical e democratização do acesso aos chamados “sons do mundo”. O autor revela, com base na análise de extensa bibliografia que aborda essas questões, que a indústria fonográfica nesse novo cenário, ao potencializar as estratégias de produção, divulgação e de vendas de música gravada em meio a um processo maior de aprofundamento de administração da cultura, promove, de fato, a pseudodiversidade na medida em que acaba por dar nova roupagem ao já existente ou submeter o diferente a tratamentos padronizantes, contribuindo para acentuar cada vez mais a “decadência do gosto” e a “regressão da audição”.
O texto de Eduardo Vicente traz uma importante contribuição para o estudo do mercado fonográfico no Brasil ao se propor a organizar os poucos indicadores estatísticos disponíveis sobre o assunto. Ele analisa estatísticas de consumo de discos fornecidas pelo Nopem — Nelson Oliveira Pesquisas de Mercado —, agência criada em 1965 com o objetivo de atender exclusivamente à indústria fonográfica. Lastreado nesses dados, Vicente elabora um mapa da segmentação do mercado musical no Brasil entre 1965 e 1999.
Por fim, a complexa relação que se estabelece entre a indústria da música e as indústrias de novas tecnologias a partir do final do século XX é o tema do artigo de Michel Nicolau Neto. O advento e a popularização da internet na década de 90 geraram transformações radicais nos processos de distribuição, divulgação e comercialização do produto musical. A abertura de canais que facultam o acesso gratuito a fonogramas por parte dos consumidores tem provocado quedas sensíveis da lucratividade das gravadoras. Porém, sob o fogo cruzado dos conflitos que se multiplicam entre esses setores, começa a se delinear o que o autor define por “zonas solidárias”, nas quais se busca a convergência de interesses entre indústrias de tecnologia e empresas produtoras de música. São iniciativas que implicam a criação de novos modos de negócio que procuram preservar a legalidade do acesso, transferindo o financiamento do consumo para patrocinadores.
Organizador
José Roberto Zan
Referências desta apresentação
ZAN, José Roberto. Reviravoltas da indústria da música no Brasil. ArtCultura. Uberlândia, v. 10, n. 16, p. 85-86, jan./jun. 2008. Acessar publicação original [DR]