Mulheres no Reino e do Império: aproximações e singularidades (séculos XVI ao XVIII) | M. M. Lobo de Araújo, E. C. D. Fleck

É inegável o espaço consolidado pelas categorias género e mulheres na teoria e conceptualização da história. O estudo das mulheres na longa duração estabeleceu uma metodologia baseada na indagação e crítica de fontes de diversas proveniências, tipologias e suportes, maioritariamente produzidas por pessoas do género masculino no contexto de sociedades patriarcais. O questionamento colocado à história é político e tem a invisibilidade como ponto de partida: qual o papel do género feminino no desenvolvimento das sociedades humanas? A pergunta mantém-se pertinente. O conteúdo das respostas tem acompanhado a evolução do movimento feminista e a consolidação da universalidade do direito à instrução que, nas democracias liberais, diversificou os públicos das universidades.

Mulheres no Reino e do Império: aproximações e singularidades (séculos XVI ao XVIII), organizado por Maria Marta Lobo de Araújo e Eliane Cristina Deckmann Fleck, é um excelente registo estratigráfico na historiografia do género e das mulheres. As organizadoras são professoras universitárias com vastíssimos curricula na história social, história religiosa e história da assistência. Estas linhas de trabalho tangem os onze textos que compõem a coletânea. O espectro temporal cobre a Idade Moderna (séculos XVI a XVIII) numa escala geográfica alargada, pois versam-se, capítulo a capítulo, os territórios europeus e ultramarinos dos impérios português e espanhol. Os documentos compulsados, tanto manuscritos como impressos, são inúmeros. Citam-se processos judiciais, legislação, regulamentos, literatura edificante, crónicas, correspondência, testamentos, entre outros. Um dos pontos fortes da obra é a inclusão de autores júniores e séniores. Esta situação complexifica o posicionamento teórico-conceptual das problemáticas discutidas, pois permite o cruzamento de conceitos consensualizados com campos teóricos recentes como as questões da identidade, interseccionalidade e racialização.

A obra versa sobre mulheres “de diferentes tempos, espaços e contextos” (p. 9) cuja complexidade das suas histórias remete para os mundos multifacetados que as circunscreviam. Conforme salientam as organizadoras, apesar de ser possível uma aproximação às particularidades e singularidades das condições femininas na Idade Moderna, a coletânea também interpela os discursos de teólogos, clérigos, juízes ou escrivães sobre mulheres no âmbito dos normativos que disciplinavam os comportamentos. Do ponto de vista teórico, encontram-se claramente demarcadas as fronteiras entre as experiências e/ou vivências femininas e as narrativas masculinas a respeito das mesmas. As abordagens das autoras e do autor denotam preocupação com a pluralidade na seleção das trajetórias discutidas.

Margarita Torremocha Hernández investigou as mulheres que protagonizaram a Guerra das Comunidades de Castela (1520-1522). A autora reflete sobre os mitos sociais e nacionalistas que envolvem estas figuras femininas confrontando-os com as evidências encontradas nos arquivos (p. 12). Atendendo às potencialidades das fontes judiciais, a autora debate as histórias de vida das grandes protagonistas e das mulheres comuns que, perante o desfecho da guerra e a imposição de penalizações aos revoltosos, procuraram reverter perdas patrimoniais e garantir a subsistência dos seus agregados familiares. Os processos judiciais evidenciam mulheres que, embora sozinhas, tentaram reparar os prejuízos advindos das ações dos homens (p. 32). A capacidade feminina para protagonizar ações junto dos tribunais do Antigo Regime é o tema do capítulo da autoria de Ofelia Rey Castelao. A geografia da análise é atlântica, pois, a partir dos estudos prévios da autora sobre a Galiza, são comparados dez processos judiciais chilenos, produzidos no século XVIII e nos inícios da centúria seguinte. Os documentos têm como denominador a implicação de mulheres em episódios de violência física grave. O aporte teórico e bibliográfico é notável e as conclusões matizam a importância do discurso formal, pois o mesmo era fortemente condicionado pela teatralização judicial. A autora recentra o problema nas condicionantes e nos contextos da violência em sociedades que, mesmo em situação periférica, se organizavam pela diferença.

Ainda com recurso a fontes produzidas por tribunais, salientam-se mais dois estudos. O caso debatido por Maria de Fátima Reis tem contornos cinematográficos: em Lisboa, na segunda metade da centúria de setecentos, uma parteira solicitou, aos seus filho e nora, que, sob nomes e ocupações falsas, recolhessem um exposto na roda dos enjeitados da cidade para depois o entregar a uma mulher que fingira a gravidez (pp. 261-263). O casal a quem foi entregue a criança solicitou o batismo do menor como se de um filho biológico se tratasse. A denúncia do crime de rebatismo à Inquisição de Lisboa permite-nos compreender o envolvimento familiar no encobrimento dos desvios da honra feminina e questionar as fragilidades do modelo assistencial que expunha ao tráfico as crianças abandonadas. Ana Sílvia Volpi Scott problematizou 26 processos de divórcio apresentados, entre 1772 e 1822, ao tribunal eclesiástico de Porto Alegre, no Brasil. Os resultados revelam as transgressões femininas marginais à ortodoxia católica sobre a indissolubilidade do matrimónio e o papel estrutural do casamento na legitimação da família. Os pedidos de divórcio eram muito baixos face ao número de casamentos (p. 296). Os motivos alegados para a dissolução do matrimónio foram a violência conjugal, o adultério ou a dilapidação patrimonial (p. 298), situando-se, por isso, entre as exceções admitidas pelo direito canónico para a resolução daquele vínculo. O léxico utilizado na descrição dos factos esquematizava a hierarquia patriarcal e racial que organizava as sociedades colonizadas.

Ana M. Sixto Barcia produziu uma síntese fundamental para os investigadores da reclusão feminina na Velha e na Nova Espanha. O capítulo debate as semelhanças e diferenças na implementação e no desenvolvimento dos conventos para mulheres na Galiza (Espanha) e no Michoacán (México). São muitas as parecenças apresentadas entre os modos de vida das religiosas do império espanhol nos dois lados do atlântico: aproximavam-nas ideais, obrigações, costumes e a literatura moralizante e simbólica (p. 97). Existiram, também, dissemelhanças na constituição dos patrimónios que condicionaram o financiamento dos cenóbios.

O Convento de Santa Mónica, fundado em 1606, em Goa, é assunto em dois textos da obra. Ambos recorreram à literatura da Ordem dos Eremitas de Santo Agostinho para debater os perfis das fundadoras do cenóbio goês. Estas personagens assumiram características míticas e simbólicas que conformaram os ideais de perfeição e santidade nos territórios orientais do império português. Margareth de Almeida Gonçalves adentra pelas histórias de vida e as genealogias do primeiro grupo de freiras professas tendo privilegiado a análise das suas proveniências familiares e geográficas. A autora afirma uma “forte tendência de interiorização goesa” (p. 118). Rozely Menezes Vigas Oliveira utiliza os conceitos de território, memória, esquecimento e identidade para debater a agência (pp.133 e 134) das fundadoras seiscentistas e das professas sublevadas que, na segunda década do século XVIII, se dividiram em dois grupos antagonicamente posicionados em relação à ação reformadora de Inácio de Santa Teresa, arcebispo de Goa (p.1721-1740). O ambiente de grande complexidade e crispação, vivido na crise de 1722 e 1737, era muito distante das vidas femininas exemplares narradas nos discursos oficias que conformavam o dever-ser das freiras agostinhas e das mulheres da sociedade goesa. Os cronistas favoreceram a memória de mulheres cujos perfis obedientes demonstravam fervor religioso e modelos a mimetizar.

O texto de William de Souza Martins versa os símbolos e os paradigmas espirituais da Ordem Terceira de São Francisco indagando os percursos femininos presentes na obra de Jerónimo de Belém. A discussão faz-se através da visão idealizada e idealizante de um clérigo que, durante a primeira metade do século XVIII, produziu literatura de exaltação daquela ordem religiosa. Maria Cecília de Jesus (p.188), Maria da Cruz (p. 193) e uma dezena de outras mulheres (p. 199), algumas advindas de contextos sociais intermédios e pobres, foram descritas como exemplos. As performances dos seus corpos esquematizavam arquétipos que deviam inspirar as mulheres que decidissem aprofundar a sua experiência religiosa no contexto da Ordem Terceira franciscana. O teatro do corpo, o sancionamento dos comportamentos e o policiamento da gestualidade trespassa ao capítulo de Eliane Cristina Deckmann Fleck. A autora estudou os depoimentos seiscentistas narrados na correspondência anual trocada entre os padres da Companhia de Jesus nas reduções da Província do Paraguai e o seu provincial (as ânuas). “Batismos, confissões, sonhos, visões, curas milagrosas e aparentes” eram usadas pelos jesuítas no sentido de “ressaltar a intensidade do fervor religioso” (p. 180) dos indígenas. Ao invés de demarcar os problemas femininos, a investigação propõe a problematização de mulheres e homens num contexto poliédrico fortemente marcado pela distinção social baseada na discriminação étnica, racial e religiosa.

Maria Marta Lobo de Araújo fixou um marco teórico que problematiza as mulheres enquanto recetoras da assistência protagonizada pelas Misericórdias portuguesas. A autora chama a atenção para o caráter parcelar do seu trabalho, pois os pobres eram muitos mais do que aqueles que eram auxiliados por aquelas instituições (p. 213). A discussão empreendida tem uma grande amplitude analítica e constitui uma referência para investigações que debatam fenómenos complexos como o da pobreza no Antigo Regime. Manuela Machado, partindo do caso da Santa Casa de Braga, compulsa testamentos e outras fontes notariais, para adentrar num tema novo na historiografia especializada: o das mulheres benfeitoras. O problema foi enquadrado na ortodoxia tridentina sobre a salvação da alma que constituía o leitmotiv caritativo transversal aos géneros (p. 232). A questão é compreensível no âmbito de ordenamentos jurídicos que perspetivavam a morte do corpo como uma mera passagem e onde se reconhecia personalidade jurídica a almas proprietárias de bens. O perfil sociológico dos doadores da Misericórdia bracarense, onde consta várias dezenas de mulheres (p. 239), constituiu um marco indelével para a discussão das estruturas de influência das elites femininas portuguesas.

A questão das mulheres (querelle des femmes), a autonomia e a agência femininas são saliências entre os textos da coletânea. Os perfis historizados confrontam-se amiúde com a postura pessimista que encarava as mulheres com desconfiança e postulava a sua menoridade face ao género masculino. Paradoxalmente, uma visão mais otimista, sancionava positivamente um conjunto de atitudes, comportamentos e gestos que proclamavam a honra. Esta virtude, que as opunha ao estado de natureza, postulava-se com práticas de corpo, nomeadamente o cumprimento de penitência, o uso de determinada indumentária e a adoção de uma certa gestualidade. Os capitais e as redes sociais não garantiam autonomia semelhante a todas as mulheres, pois a mesma era condicionada pela posição na hierarquia social, o estado matrimonial, a fase da vida, a raça ou a crença. Contudo, as mulheres tinham capacidade para atuar junto dos poderes públicos de forma autónoma ou supletiva face os homens que as tutelavam. O trabalho, a receção de esmola, o acesso a dotes ou a institucionalização permitiram diversificar as fontes de rendimento agenciadas.

As investigações presentes nesta obra evidenciam as potencialidades de questionar o género com recurso a fontes produzidas em contextos sociais, políticos, económicos e geográficos variados. Os capítulos desvendam hipóteses e levantam questões que podem inspirar outros/as investigadores/as. Mulheres no Reino e no Império é, também, um artefacto da memória coletiva e da visibilidade feminina, pois as autoras e o autor citam os nomes das protagonistas e dos antagonistas sem temer entropias na comunicação dos seus objetos de estudo. Historiar as mulheres da Idade Moderna continua a rasgar o horizonte da utopia: o/a leitor/a é instigado a discutir as estruturas patriarcais que, ainda hoje, organizam a violência, a desigualdade e a discriminação com base nas diferenças étnicas, raciais e de género.


Resenhista

Luís Gonçalves Ferreira – Universidade do Minho, Portugal. E-mail: luis.ferreira.f@gmail.com


Referências desta Resenha

LOBO DE ARAÚJO, M. M.; FLECK, E. C. D. (Orgs.). Mulheres no Reino e do Império: aproximações e singularidades (séculos XVI ao XVIII). São Leopoldo: Oikos Editora, 2022. Resenha de: FERREIRA, Luís Gonçalves. MAGALLÁNICA. Revista de Historia Moderna, v.9, n.17, p.509-514, jul./dic. 2022. Acessar publicação original [DR/JF]

Deixe um Comentário

Você precisa fazer login para publicar um comentário.