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Mulheres intelectuais: práticas culturais de mediação | Estudos Ibero-Americanos | 2021

Em tempos de pandemia, organizar um dossiê sobre as práticas culturais de mediação, especificamente sobre o lugar e o papel das mulheres intelectuais, obrigou-nos a refletir sobre nossas próprias práticas mediadoras, como professoras e pesquisadoras. Lendo os artigos enviados, pensando em pareceristas e lendo os pareceres, quer dizer, atuando como editoras (uma prática de mediação cultural), íamos nos dando conta das temáticas, períodos e possibilidades de ação das mulheres, quando se dedicavam à mediação cultural. Nessa atividade editorial, fomos também nos apercebendo do nosso papel como intelectuais mediadoras. Por isso, iremos começar essa apresentação, usando o nosso próprio exemplo de mulheres professoras universitárias para pensar a categoria de intelectual mediador(a). Isso porque, se tal categoria é bastante operacional, não deve ser banalizada, correndo o risco de perder seu valor cognitivo.

Desde que o isolamento social se fez necessário, fomos desafiadas a, não só transformar nossas práticas de ensino, que de uma sala de aula “real” foi para uma sala “virtual” de mídia eletrônica; como também, nossas práticas de divulgação do conhecimento, que passaram a se voltar para públicos mais amplos e diferenciados, além do público de pares e estudantes costumeiro. Foi necessário reinventar formas de continuar ministrando aulas, de realizar e publicizar pesquisas, mas nos acostumando – não sem dificuldades – com tipos de comunicação a distância e com novos públicos. Assim, muitos de nós experimentamos, pela primeira vez, os procedimentos da produção de vídeos, podcasts, aulas abertas e entrevistas, disponibilizadas em plataformas digitais, que além de alcançar nossos alunos e pares, ultrapassam em muito o mundo acadêmico.

Ou seja, como professores(as) de qualquer nível de ensino, somos definidos(as) pela medição cultural que fazemos, enquanto docentes voltados(as) para um público específico de alunos(as). Todos(as) os/as professores(as) são, assim, mediadores culturais como autores(as) de suas aulas, mas nem todos(as) atuam como intelectuais mediadores(as). Do mesmo modo, como pesquisadores(as), nós produzimos bens culturais variados nas áreas das artes, das ciências etc., sendo reconhecidos(as) como intelectuais. Mas os(as) intelectuais podem não se voltar para o desenvolvimento de projetos politico-culturais dedicados a um grande e diversificado público, que exijam o exercício de práticas de medição cultural, sempre diversas e complexas. E é o envolvimento com tais projetos e práticas de mediação que definem quem “é” intelectual mediador. Aliás, seria melhor dizer, quem “está” atuando como intelectual mediador, já que essa condição depende das práticas culturais em que a(o) intelectual atua e nas quais pode se especializar. Estamos, portanto, entendendo como intelectuais mediadores(as), aqueles(as) que constroem projetos, individuais ou coletivos, visando conscientemente criar produtos culturais capazes de alcançar públicos diferenciados, o que, no nosso caso concreto, inclui o público acadêmico, mas pode e deve ultrapassá-lo.

A pandemia acabou gerando uma grande demanda pela multiplicação de intelectuais mediadores(as), que podiam ser professores ou ter várias outras profissões. Na área do ensino e da divulgação do conhecimento, tal demanda incidiu fortemente, embora não exclusivamente, sobre os(as) professores(as). Assim, muitas e muitos de nós também passamos a agregar a identidade de intelectuais mediadores e mediadoras, a de professor(as) e de autor(as) de livros, artigos científicos etc. para públicos especializados. Passamos, cada vez mais, a elaborar projetos, que exigiam falar e escrever para públicos que demandavam mudanças em nossa linguagem, uso do tempo, estratégias narrativas etc.

É claro que já convivíamos com várias iniciativas importantes e valiosas, realizadas por professores(as) que assumiram a identidade de intelectuais mediadores. Desde os exemplos da Revista de História da Biblioteca Nacional, ainda na mídia impressa, aos sites e blogs, Café História, Conversa de Historiadoras, entre outros; e edições das revistas acadêmicas, observamos que esse processo estava em curso, sendo acelerado e disseminado pela situação de pandemia. Dessa forma, pudemos entender muito melhor as dificuldades e as especificidades constitutivas de várias práticas culturais de mediação, bem como dimensionar a centralidade da utilização de vetores/mídias variadas. Ser/estar intelectual mediador nada têm de simples, muito ao contrário. Exige conhecimentos e treinamento, além de parcerias, sempre tendo em vista os diversos públicos. Talvez estejamos em um momento privilegiado para desmontar a afirmação, tão compartilhada, de que os intelectuais mediadores(as) são intelectuais “menores” em relação a um paradigma de intelectual “maior”, que vem do século XIX e se materializa no poeta, filósofo, enfim, em um grande homem das letras. E aqui a palavra homem é masculina mesmo, porque raras eram as mulheres que conseguiam quebrar as barreiras explícitas para serem reconhecidas como intelectuais.

Este dossiê procura abrir espaço para observarmos a atuação dessas mulheres. Como será possível perceber, foram muitas as que criaram bens artísticos, científicos e culturais, mas de forma diferenciada, e rebaixada, face aos “grandes nomes” de artistas ou intelectuais, os quais são rapidamente identificados como criadores, enquanto elas são tidas apenas como replicadoras, em uma chave conservadora da produção cultural e intelectual. O que se propõe neste dossiê é justamente ver de outra forma as potencialidades da mediação, retomando o que Roger Chartier nos ensina sobre as práticas e as representações culturais, em que cada apropriação consiste igualmente em um trabalho de criação de significado.

As personagens que são objeto de estudo dos artigos desse dossiê sofreram mais de uma forma de invisibilidade: por serem mediadoras, por serem mulheres e por serem marginalizadas dentro das estruturas sociais e de poder vigentes.

A atividade de divulgação do conhecimento, como projeto político-cultural claro, surge já no século dezenove, com mulheres que estavam na imprensa, por exemplo. Algumas delas eram de elite, ou conseguiam algum grau de instrução ou formação superior, atuando nas causas femininas/feministas, em defesa dos seus direitos. Elas ocuparam a arena pública como vanguardistas, abrindo caminhos para novas gerações de feministas. É o caso dos três primeiros artigos que abrem o número, que analisam as trajetórias de Carmen Dolores, Myrthes de Campos e Harriet Martineau. Outras mulheres carregaram projetos políticos e educacionais em condições muito adversas, mediando públicos que se encontravam “fora” do circuito cultural e/ou, afastados das esferas de produção do conhecimento. Transformaram-se, assim, em “pontes”, como no caso da professora carioca cuja escola se situava em área habitada por populações vulneráveis, submetidas à violência; das inovadoras escritoras argentinas, durante a censura militar, que desejavam chegar ao público infantil; das maestrinas e pianistas, que atuavam entre o mundo masculino da música erudita de fins de século XIX, e a música que era consumida por um público maior, inclusive, de mulheres; e da mulher negra, que transforma sua casa em “salão”, um lugar de sociabilidade intelectual para aqueles(as) ligados à cultura do samba. Todas essas protagonistas investigadas pelos artigos reunidos nesse dossiê.

A abordagem por um recorte de gênero possibilita vislumbrar como essas intelectuais acabam por ocupar posições estratégicas, pois, sendo a mediação cultural vista como um tipo de prática menor e de menos destaque e importância, elas disso se aproveitam, encontrando nessas práticas de mediação uma brecha que lhes possibilita acesso ao mundo intelectual. Nesse dossiê, como se verá, essas intelectuais atuam criando lugares de sociabilidade que conectam produtores e produções culturais classificadas como distantes entre si e, dessa maneira, constroem possibilidades para novos perfis de intelectuais. Homens e mulheres que escapam da imagem mais consolidada do que é um(a) intelectual, e que vão ser reconhecidos(as) pelo exercício de valiosas e influentes práticas de mediação que, em grande parte e durante muito tempo, passaram desapercebidas. Quer dizer, encontramos até mesmo exemplos de intelectuais mediadores(as) que se caracterizam pelo projeto de formar novos intelectuais, em especial mulheres, já que elas eram impedidas, formal ou informalmente, de alcançar esse status. Poderíamos assim pensar em como esse tipo específico de prática de mediação evidencia uma explícita ação política de inclusão, nos levando a aproximá-la da lógica atual das políticas de ação afirmativa.

Parte das protagonistas dessas histórias atuaram dentro das instituições científicas, culturais, ou artísticas frequentemente nos bastidores, apesar de seus trabalhos serem de qualidade e carregados de significado. Presentes na produção no cinema, nos projetos educacionais em museus, nas pesquisas em laboratórios e em estudos universitários, não obtiveram o mesmo prestígio de seus pares homens, e seus trabalhos foram relegados a um círculo restrito de recepção, como os artigos sobre Beatriz Bojunga, Sigrid Pôrto de Barros, Dyrce Lacombe e María Rosa Lida indicam. As dificuldades e a marginalização experimentadas pelas mulheres artistas se mostram extremas no último artigo desse dossiê, quando o apagamento se torna físico, corpóreo, no limite do que podemos pensar como possibilidade intelectual e expressão artística delas.

Como é prática da revista de Estudos Ibero-Americanos, em cada número se faz uma entrevista com pessoa ligada à temática do dossiê. No momento em que vivemos, assolados por uma pandemia e com muitas indagações sobre o futuro que queremos, nossos olhos se fixaram em uma mulher em especial, na medida em que ela se tornou a primeira presidente de uma instituição centenária e reconhecida nacional e internacionalmente na área da saúde. Estamos nos referindo a Nísia Trindade de Lima, doutora em Sociologia pelo Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (IUPERJ), reeleita para seu segundo mandato na presidência da Fundação Oswaldo Cruz, em 2020. Os desafios para conduzir uma instituição do tamanho e da importância da Fiocruz são sempre muito grandes, e se tornaram imensos com o enfrentamento do COVID-19, sob um governo que, sabidamente, resistiu a tomar as iniciativas necessárias para seu combate. Ainda assim, Nísia encontrou tempo para conversar conosco sobre sua trajetória de vida, contemplando sua formação intelectual e carreira profissional na Fiocruz, como pesquisadora, professora e gestora. Nesse último aspecto, ela nos mostra como a prática da gestão propicia valiosas ações de mediação cultural – por vezes pouco valoradas e percebidas – mas cujos efeitos podem ser decisivos para se vencer obstáculos formais e informais que dificultam (ou até impedem) a ascensão de mulheres a postos de direção. Nísia é um exemplo bem-acabado de mulher que rompeu “o teto de vidro”, tornando-se uma figura pública respeitada e admirada. Então, agradecemos muito sua colaboração amiga ao nos conceder essa entrevista, que, não temos dúvida, será apreciada pelos leitores e leitoras. Organizar um dossiê como esse seria impossível sem a colaboração imprescindível dos(as) pareceristas e das editoras da revista, a quem agradecemos enormemente. O número de artigos recebidos, todos com proposições extremamente ricas para refletirmos sobre a categoria das mulheres intelectuais e mediadoras, ultrapassou em muito a possibilidade de publicação no dossiê. Mas, por outro lado, o acolhimento da chamada nos enche de estímulo, nos fazendo acreditar na importância do tema diante dos desafios urgentes em nossos dias.


Organizadores

Angela Maria de Castro Gomes – Doutora em Ciência Política pelo Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (IUPERJ), no Rio de Janeiro, RJ, Brasil; professora titular de História do Brasil da Universidade Federal Fluminense (UFF) em Niterói, RJ, Brasil; e professora emérita do Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil (Cpdoc) da Fundação Getúlio Vargas (FGV), no Rio de Janeiro, RJ, Brasil. orcid.org/0000-0002-1911-760X E-mail: angelamariadecastrogomes@gmail.com

Kaori Kodama – Doutora em História Social da Cultura pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (Puc-Rio), no Rio de Janeiro, RJ, Brasil; professora da Casa de Oswaldo Cruz (Fiocruz), no Rio de Janeiro, RJ, Brasil. orcid.org/0000-0002-5327-2689 E-mail:  kaori.kodama@fiocruz.br  kaori.flexor@gmail.com

Patricia Tavares Raffaini – Doutora em História Social pela Universidade de São Paulo (USP), em São Paulo, SP, Brasil; professora visitante da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP), em São Paulo, SP, Brasil. orcid.org/0000-0003-1921-6269 E-mail: raffaini@unifesp.br


Referências desta apresentação

GOMES, Angela Maria de Castro; KODAMA, Kaori; RAFFAINI, Patricia Tavares. Apresentação. Intelectuais mediadoras: os desafios de ontem e hoje. Estudos Ibero-Americanos. Porto Alegre, v. 47, n. 3, set./dez. 2021. Acessar publicação original [DR]

Acessar dossiê

Itamar Freitas

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