Mulheres inovadoras no Ensino (São Paulo, séculos XIX e XX) | Diana Gonçalves Vidal e Paula Perin Vicentini

A composição predominantemente feminina da profissão docente é uma característica facilmente perceptível, sobretudo da educação básica. Segundo o Censo do Professor (2007), cerca de 82% do professorado brasileiro é composto por mulheres. Essa média se mantém no Estado de São Paulo (MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO, 2007). Esses mesmos números foram retomados em matéria do site UOL (HARNIK, 2011), que apresentou as diferentes percentagens dessa característica de acordo com os segmentos de ensino. Destacou-se, nessa investida, a disparidade entre o número de professoras nos anos iniciais do ensino fundamental (82%) e no ensino médio (64%).

Em que pese a produção acadêmica sobre a História e a Sociologia da profissão docente e o seu recorrente foco nas condições de seu desenvolvimento profissional, proletarização2 e profissionalização3 (XAVIER, 2014, p. 830), são de longa data as colocações acerca da ocupação feminina da docência. É nesse esteio que Cláudia Vianna, ao tematizar “O sexo e o gênero da docência” (2001, p. 81-103), assinala para os contornos históricos desse processo. A autora liga a ocupação da carreira pública do magistério por mulheres à expansão do ensino primário público de modo que, já em inícios do século XX, as mesmas são maioria do contingente profissional. A despeito da efetiva publicação de estudos sobre o tema, a autora destaca que a incorporação do conceito de gênero aos estudos sobre a feminização do magistério no Brasil é relativamente recente (Ibidem, p. 87). A mesma destaca sua pouca tematização até meados dos anos 80 e, especificamente no campo de estudos educacionais, a demora na passagem do “feminino ao gênero”, movimento esse já percebido nos estudos sobre o trabalho na década de 90 (Ibidem, p. 88).

Propor uma leitura da profissão docente que problematize sua constituição histórica como profissão predominantemente feminina implica não somente em uma elaboração conceitual condizente. Ela acarreta também na organização e investigação de fontes que, quando inquiridas em meio à operação historiográfica4, permitam apreender aspectos da atuação professoral de mulheres pouco notabilizadas. Foi esse o escopo do projeto “Mulheres e inovação docente5 (São Paulo e França, nas décadas de 1860 a 1960)”, cujos objetivos apreendiam a elaboração de biografias de professoras que inovaram no espaço da sala de aula e cuja atuação foi pouco tematizada na historiografia. Foi apresentado como um de seus resultados a publicação do livro “Mulheres inovadoras no ensino (São Paulo, Séculos XIX e XX), organizado por Diana Gonçalves Vidal e Paula Perin Vicentini, ambas docentes da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (Feusp).

Seu cuidado “estético, epistemológico e documental” é anunciado já em seu prefácio, de autoria de Maria Teresa Santos Cunha, professora vinculada ao Centro de Ciências Humanas e da Educação da Universidade do Estado de Santa Catarina (Faed/Udesc). É também nele que a prefacista destaca a busca sistemática de fontes em arquivos públicos e pessoais para que se fizesse possível a tematização das vidas das dezesseis professoras normalistas ali biografadas. As mesmas são apresentadas em ordem alfabética e são, em grande parte dos casos, ladeadas por fotografias suas ou de sua atuação docente. A opção por sua apresentação conversa com um dos convites que o livro faz, segundo Diana Vidal (VIDAL, 2019, p. 13), ao leitor: o de pensar a importância do registro das práticas. Nesse caso, da prática sistemática de trabalho no magistério.

Para além disso, é também Vidal que, já na introdução da obra, destaca ser sua leitura uma forma de revisitar “inovações pedagógicas pretéritas” (Ibidem). Ele o faz tematizando inserções pedagógicas e educacionais que vão da educação infantil – como é o caso de Alice Meirelles Reis – ao ensino superior, tendo como exemplo a trajetória de Amélia Americano Franco Domingues de Castro. A primeira, ex-aluna da Escola Normal Caetano de Campos e membro de uma família da elite paulistana, ganhou destaque em seus estudos acerca do jardim de infância. Suas práticas foram acessadas através, sobretudo, de fotografias que noticiaram as inovações encampadas em seu espaço de atuação. Amélia, por sua vez, traçou trajetória no ensino superior e auferiu o grau de Doutora em Educação na Faculdade de Educação da USP em 1950 com a tese “Princípios do método no ensino de história”.

A diversidade de iniciativas encampadas pelas professoras assinala também para um vasto leque de atuação. Elas variam das tentativas de integração do “aluno diferente”, protagonizadas por Maria José Tristão Parize6 em capítulo de Paula Perin Vicentini (VICENTINI, 2019, p. 171-200), às propostas de ensino rural de Noêmia Cruz7, apresentadas em texto de Ariadne Lopes Ecar (ECAR, 2019, p. 203-217).

O cuidado conceitual a respeito do uso do termo “inovação” se faz ver a cada artigo. Ele é importante já que, em cada professora biografada, suas inovações ganham roupagens distintas de acordo com sua inserção social, profissional e política. A esse respeito, vale a retomada da definição fornecida por Wiara Rosa Rios Alcântara (ALCÂNTARA, 2019, p. 61-82) ao tratar, em capítulo de título “Botyra Camorim: imagens e memórias da carreira do magistério em São Paulo (1917- 1962)”, das práticas dessa professora normalista formada na Escola Caetano de Campos em 1928. Para a autora, “são aqui consideradas inovadoras as pessoas que se valem da escrita para engendrar um outro lugar de onde falar aos demais professores e à sociedade” (ALCÂNTARA, 2019, p. 70). Assim, é inovadora a atuação professoras que estabelecem um lugar próprio de enunciação. Essa noção resvala, inevitavelmente, na valorização de uma maior diversidade de fontes na iniciativa historiográfica de biografar professoras.

Merece também destaque a análise da trajetória de Carolina Ribeiro, professora paulista que ocupou também cargos administrativos estaduais e municipais. É Rachel Duarte Abdala (ABDALA, 2019, p. 83-96) quem destaca sua inserção em esferas administrativas de gerenciamento da instrução predominantemente masculinizadas. A mesma salienta a importância da análise da rede de relações estabelecidas pela educadora. Para ela, as mesmas foram importantes para alavancar a ascensão na carreira e ampliar inovações encampadas no interior da sala de aula (ABDALA, 2019, p. 85). Assim, são evidenciadas as manobras operacionalizadas por professoras para estabelecimento de uma movimentação funcional e uma trajetória profissional de destaque. A ocupação feminina de postos predominantemente masculinizados é também avultada quando o assunto é a atuação de Noemy Rudolfer, responsável pela chefia de laboratórios de psicologia e reconhecida no campo da psicologia educacional em artigo de autoria de Rafaela Silva Rabelo (RABELO, 2019, p. 221). No caso dessa professora, mereceram destaque as viagens internacionais feitas pela mesma. Elas são consideradas pela autora uma forma de intercâmbio intelectual que influenciou em sua atuação docente.

Em que pese a diversidade das trajetórias apresentadas, os capítulos presentes na edição destacam a diversidade dos percursos e as variáveis que compuseram a atuação política e pedagógica dessas professoras. São, porém, como enunciou Vidal (2019, p. 13) ao introduzir a publicação, notáveis as semelhanças nas atuações e propostas decorrentes de um perfil profissional que também se faz no contato com os pares. Ou, nesse caso, no contato com as pares. Para além disso, a diversidade de manobras faz ver semelhanças nas interdições impostas, sobretudo quanto à ascensão na carreira docente. Faz também pensar sobre a inventividade da ação cotidiana dessas professoras, responsável por contornar privações materiais e profissionais.

Esse último aspecto, porém, é aquilatado sem incorrer na ligação acrítica da profissão docente com uma imagem ligada ao altruísmo e vocação, comumente percebida em jornais e periódicos citados na maioria dos artigos. Nesse sentido, demonstra um cuidado metodológico preciso ao tratar como fonte muitos dos documentos responsáveis pelo endosso de uma interpretação missionária da profissão professora.

“Mulheres inovadoras no ensino” traz consigo o esforço de pensar a inovação no interior da sala de aula. Desloca assim o espaço de produção das renovações educacionais e o aproxima das professoras responsáveis pelo mesmo. Sua leitura traz também a possibilidade de pensar a longa duração de algumas das pautas e práticas do ser e fazer-se professora, conforme destaque de Vidal (2019, p. 12 – 14) já em suas considerações introdutórias.

Por fim, essa leitura da atuação docente em sala de aula faz cruzamentos com demais categorias para entendimento dessas práticas. É então possível pensar os cortes de classe e raça, bem como o papel da religião na formação dessas professoras normalistas. A esse respeito, vale conferir capítulo sobre Olinda Margarotto dos Santos, de autoria de Angelica Pall Oriani (ORIANI, 2019, p. 241-257), no qual a autora retoma os escritos de Rebeca Rogers e Michelle Perrot para tematizar a influência religiosa na educação feminina em países católicos (Idem, p. 245).

A obra, ao convidar o leitor a revisitar inovações pretéritas, desloca o cenário de descrição de análise das práticas educacionais ao valorizar não somente os espaços acadêmicos da formação docente. Nesse sentido, considerar o espaço escolar um ambiente prenhe de pulsantes renovações desloca o eixo produtor de saberes acerca da profissão professora. Coloca então as mesmas como produtoras de práticas, sobretudo de práticas perenes. Isso se dá já que os sentidos que elas empregam às ações cotidianas e aos fazeres em classe são próprios. E é essa especificidade que, aquilatada em dezesseis biografias de mulheres, faz pensar no protagonismo e centralidade da atuação professoral em meio às propostas de mudança e permanência na instrução.

Notas

2 A autora se utiliza do termo para destacar a assimilação da profissão docente à lógica do trabalho assalariado. Para tanto, cita, dentre outros, Apple (2006), Enguita (1991) e Jaen (1991). Conferir: Xavier (2014, p. 838-839).

3 Para aquilatar esse conceito, Xavier faz uso das delimitações teóricas já apresentadas por António Nóvoa (1987). Destaca, nesse sentido, a relevância da aquisição de um corpo específico de saberes e fazeres típico de um grupo profissional.

4 Termo utilizado por Michel de Certeau (2002) para caracterizar a atuação do historiador.

5 O projeto, que integrou a Faculdade de Educação da USP (Universidade de São Paulo) e universidades francesas associadas à USPC (Université Sorbonne Paris Cité). Trata-se de um subprojeto do Núcleo Interdisciplinar de Estudos e Pesquisas em História da Educação (Niephe/Feusp). Para mais informações, conferir: http://www4.fe.usp.br/acessorapido4/espacos-de-ensino/nucleo-interdisciplinar-de-estudos-e-pesquisas-em-historia-daeducacao-niephe; http://www4.fe.usp.br/mulheres-e-inovacao-docente-sao-paulo-e-francanas-decadas-de-1860-a-1960.

6 Professora que recebeu destaque pela inclusão de alunos portadores de necessidades educacionais especial em classes regulares no início da década de 1960 (VICENTINI, 2019).

7 Professora paulista responsável pelo estabelecimento de um programa de ensino rural no Grupo Escolar do Butantan, sendo pra isso designada por Sud Menucci em 1932 (ECAR, 2019, p. 215).

Referências

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ALCÂNTARA, Wiara Rosa Rios. Botyra Camorim: imagens e memórias da carreira do magistério em São Paulo (1917-1962). In: VIDAL, Diana Gonçalves; VICENTINI, Paula Perin (org.). Mulheres inovadoras no Ensino (São Paulo, séculos XIX e XX). Belo Horizonte: Fino Traço Editora, 2019. 290 p.

APPLE, Michael. Ideologia e currículo. Porto Alegre: Artmed, 2006.

BRASIL. Ministério da Educação. Censo do Professor. Disponível em http://portal.mec.gov.br/plano-nacional-de-formacao-de-professores/censodo-professor. Acesso em: 19 abr. 2019.

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ECAR, Ariadne Lopes. Noêmia Saraiva de Mattos Cruz e o ensino rural paulista na década de 1930. In: VIDAL, Diana Gonçalves; VICENTINI, Paula Perin (org.). Mulheres inovadoras no Ensino (São Paulo, séculos XIX e XX). Belo Horizonte: Fino Traço Editora, 2019. 290 p.

ENGUITA, Mariano Fernandes. A ambiguidade da docência: entre o profissionalismo e a proletarização. Teoria e Educação, Porto Alegre: Pannonica, n. 4, p. 41-61, 1991.

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RABELO, Rafaela Silva. Noemy da Silveira Rudolfer e a vanguarda da psicologia educacional no Brasil. In: VIDAL, Diana Gonçalves; VICENTINI, Paula Perin (org.). Mulheres inovadoras no Ensino (São Paulo, séculos XIX e XX). Belo Horizonte: Fino Traço Editora, 2019. 290 p.

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VICENTINI, Paula Perin. Quando inovar é incluir: a professora Maria José Tristão Parise e o trabalho de integração do “aluno diferente” (1931-1985) In: VIDAL, Diana Gonçalves; VICENTINI, Paula Perin (org.). Mulheres inovadoras no Ensino (São Paulo, séculos XIX e XX). Belo Horizonte: Fino Traço Editora, 2019. 290 p.

VIDAL, Diana Gonçalves; VICENTINI, Paula Perin (org.). Mulheres inovadoras no Ensino (São Paulo, séculos XIX e XX). Belo Horizonte: Fino Traço Editora, 2019. 290 p.

XAVIER, Libânia Nacif. A construção social e histórica da profissão docente. Revista Brasileira de Educação, v. 19, n. 59, out./dez. 2014.


Resenhista

Carolina Cechella Phillipi – Doutora em Educação pela Universidade Estadual de Campinas. Tem formação em Pedagogia pela Universidade do Estado de Santa Catarina e História pela Universidade Federal de Santa Catarina. E-mail: carolinacechella@gmail.com  http://orcid.org/0000-0001-6121-254X


Referências desta Resenha

VIDAL, Diana Gonçalves; VICENTINI, Paula Perin (Orgs.). Mulheres inovadoras no Ensino (São Paulo, séculos XIX e XX). Belo Horizonte: Fino Traço Editora, 2019. Resenha de: PHILLIPI, Carolina Cechella. História da Educação. Santa Maria, v.24, 2020. Acessar publicação original [DR]

 

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