Mulheres, gênero, feminismos: a reescrita da história a partir do Sul global/ Temporalidades/2022
Em 2008, Joan Scott redigiu um ensaio introdutório para um conjunto de textos originalmente apresentados em um fórum promovido pela American Historical Review para marcar os 20 anos de publicação de seu influente artigo Gênero: uma categoria útil de análise histórica. 1 Sob um título que poderia ser traduzido como Perguntas não respondidas, a conhecida historiadora estadunidense se voltou para a própria trajetória e avaliou o impacto que suas teorizações sobre o gênero e a diferença sexual haviam tido ao longo dessas duas décadas – em um caso raro, diga-se de passagem, de reflexão teórica feita no âmbito da história disciplinar que foi “exportada” para outros setores das humanidades. Scott abriu o balanço crítico dos destinos de seu trabalho mais conhecido com uma expressão de descontentamento perante o fato de que, em 1986, quando submeteu ao mesmo periódico o artigo então celebrado, ela fora obrigada a alterar seu título. A autora queria que o texto se apresentasse ao público não com uma afirmação contundente, mas com um questionamento sobre a utilidade do conceito de gênero – um questionamento cuja resposta não poderia e não deveria ser conhecida de antemão. A revista alegou, porém, que não permitia o emprego de pontos de interrogação nos títulos, e o artigo terminou publicado despido de parte de sua força retórica (SCOTT, 2008, p. 1422), sob uma designação em certa medida contraditória com seus propósitos.
Essa dissonância foi ressaltada por Judith Butler e Elizabeth Weed (2011, p. 1-2) na introdução de uma coletânea dedicada ao feminismo crítico de Scott. Butler e Weed identificaram na atitude de uma das principais publicações acadêmicas da área de história nos Estados Unidos uma resistência ao potencial subversivo dos questionamentos. A forma interrogativa sugeria uma provisoriedade e um esforço de desestabilização, mais condizentes com o projeto teórico de Scott que a postura assertiva sobre a “utilidade” (um termo curioso e de sentido pouco claro, como destacam Butler e Weed) do conceito de gênero com que suas reflexões terminaram por ser editadas.
A própria Scott, na mesma conjuntura, expressou certo enfado com os rumos que os estudos de gênero vinham tomando. Para ela, essa “parecia ser uma questão resolvida, uma palavra que tinha-se tornado parte de um vocabulário comum” (SCOTT, 2012, p. 327). O debate proposto pela American Historical Review a teria deixado “tanto lisonjeada quanto entediada – lisonjeada pois percebe-se que o ensaio ainda é útil para os historiadores e entediada pois eu senti que tinha exaurido tudo o que eu havia para dizer sobre o assunto” (SCOTT, 2012, p. 328). Entre os elementos que levariam Scott a reavaliar o suposto esgotamento do eixo de estudos pelo qual se notabilizara, estavam polêmicas envolvendo um manual de biologia adotado na França, que continha uma unidade intitulada Tornar-se homem ou mulher, e ataques a Judith Butler (tristemente ecoados no Brasil meia década mais tarde, quando uma das maiores figuras em atuação na filosofia veio ao país falar sobre democracia, justamente quando mergulhávamos em uma tormenta política que se mostraria duradoura).
O que ocorre, então, quando as indagações históricas sobre o gênero, as mulheres e os feminismos se entrecruzam com questionamentos que, se não são recentes, ao menos contam com uma renovada ressonância no mundo contemporâneo? O que esses controversos conceitos teriam a contribuir para debates prementes como a crítica à colonialidade, a busca por geopolíticas do saberpoder-prazer (para me apropriar algo livremente de temas caros a Michel Foucault)2 mais igualitárias, as especificidades das experiências de pessoas que são minorizadas também por questões outras que o gênero, disputas de memória, usos públicos da história e variados negacionismos, ou mesmo a catástrofe climática que, cada vez mais, faz-se presente e não futura? Embora lidem com questões bastante variadas, seja do ponto de vista teórico, seja do temático, ou ainda quanto às fontes mobilizadas e aos recortes cronológicos adotados, os artigos reunidos no dossiê agora publicado por Temporalidades trazem, se não exatamente respostas a problemas tão vastos e complexos, importantes explorações dos possíveis caminhos que se abrem a partir deles.
A leitura conjunta dos doze artigos permite perceber algumas linhas de força, que convidam a leituras transversais e interações entre diferentes estudos. Ressalto, primeiramente, os textos que contêm chamados à pluralização teórica. O artigo de Felipe Cromack de Barros Correia propõe um panorâmico e informativo debate sobre as relações entre colonialidade e gênero, que tem entre seus méritos o diálogo com autoras relativamente pouco visitadas, como Karina Bidaseca, ao lado de figuras bem conhecidas, como María Lugones, Oyèrónkẹ́Oyěwùmí ou Gayatri Spivak. Já Carla de Oliveira Romão, recorrendo ao célebre discurso de Sojourner Truth, proferido ainda em meados do século XIX e tido como uma das primeiras expressões militantes de preocupações com a especificidade das vivências das mulheres negras, avalia as contribuições dos feminismos negros para os estudos históricos e a militância – sem, naturalmente, os dissociar. Ana Cristina Figueiredo de Frias, por sua vez, propõe cruzamentos entre teorizações de autoras ligadas às perspectivas decoloniais e aspectos da militância, indagando-se sobre que histórias poderemos contar sobre o nosso presente e quais seriam as especificidades latino-americanas. Para tanto, tematiza, em particular, as mobilizações feministas que se valem de hashtags como #niunamenos e #nãoénão.
Outro instigante eixo é constituído pelos estudos que propõem interfaces com a literatura. Maria do Carmo L. de O. Cavalcante se ocupa da trajetória de Maria Firmina dos Reis, escritora negra maranhense que viveu entre 1822 e 1917, levantando ao menos duas questões fundamentais: a importância das lutas pelo acesso à educação nos projetos de emancipação feminina e a historicidade dos cânones (no caso, literários, mas poderíamos discutir também os historiográficos), com todas as injustiças e ocultamentos que promovem. José Endoença Martins propõe uma instigante análise de duas obras publicadas com mais de um século de distância, Incidents in the Life of a Slave Girl, Written by Herself, de Harriet Jacobs (1861) e Beloved, de Toni Morrison (1987), de modo a ressaltar laços entre escritas da e sobre a escravidão, autobiografia e romance na literatura afro-americana. Bruna Gonçalves Ferreira traz o estudo histórico da literatura para o cenário propriamente contemporâneo, valendo-se do conceito de “racismo genderizado” para interpretar o livro de contos No seu pescoço, originalmente publicado em 2009 pela escritora nigeriana radicada nos Estados Unidos Chimamanda Ngozi Adichie.
Com alguma proximidade com essas análises literárias, dois dos trabalhos põem em relevo os laços entre imprensa, militância e escritas de si. Danyela Barros Santos Martins de Queiroz propõe um estudo do jornal Nzinga Informativo, ligado ao coletivo cujo nome homenageava igualmente a rainha dos reinos de Ndongo e Matamba, que teve Lélia Gonzalez como um de suas fundadoras. Circulando entre 1985 e 1989, o periódico cumpriu um importante papel na postulação da insuficiência da classe na luta contra opressões, bem como na reflexão sobre as especificidades de ser mulher e negra, em uma perspectiva aproximável do que vem, contemporaneamente, sendo chamado de feminismo interseccional. Tatiana de Carvalho Castro, por sua vez, volta-se para a vida e os escritos de Carmen Santos, nascida em Portugal em 1904, mas que viveu desde a infância no Brasil. Atuando nos primórdios do cinema no país, tanto como atriz quanto como diretora, Santos manteve no início dos anos 1930 uma coluna no Jornal das Moças em que expressava, por meio de uma escrita confessional, seu sofrimento perante uma carreira acidentada, ao longo da qual jamais conseguiu ver reconhecido o pioneirismo com que representava a si própria.
As expectativas em torno dos papéis de gênero e as frequentemente violentas vivências concretas ligadas a elas atravessam os quatro trabalhos remanescentes, que tematizam produções do espaço urbano, possibilidades de ação política e disputas pela memória, na maior parte dos casos lançando luz sobre geografias pouco visitadas pela historiografia. José Humberto Carneiro Pinheiro Filho tematiza as representações da prostituição, a elaboração de divisões territoriais e expectativas sobre corpos na Fortaleza da primeira metade do novecentos, momento em que a cidade passava por um forte crescimento populacional e se transformava de forma profunda. Alessandro Cerqueira Bastos propõe revisões críticas do conceito de “masculinidades hegemônicas”, conhecido sobretudo a partir das teorizações da socióloga australiana Raewyn Connell – uma mulher trans – a partir de um estudo de setores populares em Feira de Santana na Bahia nas últimas décadas do século XX. As fontes privilegiadas, processos criminais, põem em relevo a importância dos mecanismos jurídicos nas produções e reproduções do gênero.
Bruna Ferreira Lopes desenvolve um estudo das trajetórias em grande medida cruzadas de mulheres ligadas a movimentos estudantis e que lutaram contra a ditadura brasileira. Helenira Resende de Souza Nazareth, Suely Yumiko Kanayama e Catarina Meloni Assirati passaram, todas, pelo curso de Letras da Universidade de São Paulo. As duas primeiras, ambas mulheres racializadas (Nazareth era negra; Kanayama, nissei) foram mortas na Guerrilha do Araguaia, ensejando um ainda hoje inconcluso luto para suas famílias, que jamais receberam seus corpos. Já Assirati foi obrigada a viver longos anos no exílio. Por fim, Betina Gamalho coloca em relevo processos de patrimonialização e de construção de monumentos. Numa análise centrada em alguns espaços públicos de Porto Alegre, a autora demonstra como a representação de mulheres é virtualmente inexistente – e, quando elas são homenageadas, aparecem ora em uma romantização impessoal da maternidade, ora como uma subordinada “esposa de”.
Mesmo diante de uma gama tão variada e rica de temáticas, não pude deixar de me perguntar sobre as questões que o dossiê não levanta, ou ao menos não aborda centralmente. A ausência mais notável é, a meu ver, a dos chamados estudos trans. Essa perspectiva certamente poderia trazer importantes contribuições para a historiografia a partir de seus convites para “contar além de dois” nos modos de vivenciar o gênero e a diferença sexual e tensionar expectativas normativas projetadas sobre corpos e subjetividades – para me apropriar algo livremente de algumas provocações de Susan Stryker (2006). Os debates sobre o descentramento do humano e a controversa hipótese do antropoceno tampouco se fazem presentes, mesmo sendo marcados por consolidadas contribuições explicitamente feministas ou ao menos feitas por mulheres – Donna Haraway, Anna Tsing, Ewa Domańska, Déborah Danowski, para citar apenas alguns exemplos. Por outro lado, as próprias noções de “colonialidade” e de “Sul global” mereceriam ser interrogadas em maior profundidade, de modo a trazer à tona mais nuances – a primeira, para dar conta de formas de dominação que, se guardam linhas de continuidade, também se alteram significativamente ao longo do tempo; a segunda, para melhor contemplar as divisões internas e o caráter eminentemente relacional das topografias da desigualdade.
A violência sexual, embora apareça pontualmente em diversos dos artigos, não chega a se tornar um foco específico de análise. 3 Essa seria, quero crer, uma via fundamental para que os estudos históricos pudessem contribuir com os feminismos e mesmo com lutas por direitos humanos de forma mais ampla. Como postulou Elizabeth Jelin (2017, p. 219), em uma instigante análise da tensão entre a qualificação do uso de violações como prática de tortura como crime contra a humanidade e o respeito à intimidade: “Houve e há silêncios, mas também vozes e expressões que falaram, mas não foram vistas nem ouvidas. A questão é, então, aprender a olhar e a escutar, porque os indícios estão por todas as partes”. Aprender a olhar e a escutar inclusive por uma necessária e infatigável vigilância para que não cometamos mais violências no nosso próprio ato de narrar (HARTMAN, 2020, p. 15).
Ressalto esses limites e caminhos ainda a percorrer não exatamente como uma crítica ou uma cobrança, mas sim para sugerir que, “longe de estar resolvido, (…) gênero é uma questão perpetuamente aberta: quando pensamos que foi resolvido, sabemos que estamos no caminho errado” (SCOTT, 2012, p. 347). Que venham, então, novas leituras, novas pesquisas, novas interrogações.
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Peço licença à leitora ou ao leitor para encerrar esta apresentação com uma pequena nota pessoal. Foi nesta Temporalidades que publiquei um de meus primeiros artigos, enquanto ainda cursava o mestrado. Tive, por isso, um prazer especial em redigir estas reflexões introdutórias, e uma alegria ainda maior em ler estudos tão sólidos, interessantes e relevantes do ponto de vista ético-político. Vida longa aos periódicos discentes! Afinal, escrever trabalhos acadêmicos é algo que só se aprende fazendo, refazendo, ouvindo críticas, revisando, corrigindo.
Notas
1 Traduzido no Brasil ainda nos anos 1990 (SCOTT, 1995).
2 Para uma introdução esclarecedora, ver: Foucault (2020, p. 7-43).
3 Os estudos históricos da violência sexual deram recentemente origem a um interessante dossiê da revista colombiana Historia Critica. Ver, em especial, a introdução da organizadora e do organizador, Daniel J. R. Grey e Eliza Toledo (2022).
Referências
BUTLER, Judith; WEED, Elizabeth. Introduction. In: BUTLER, Judith; WEED, Elizabeth (ed.). The Question of Gender: Joan W. Scott’s critical feminism. Bloomington: Indiana University Press, 2011, p. 1-8.
FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade: 2 – O uso dos prazeres. São Paulo: Paz & Terra, 2020.
GREY, Daniel J. R.; TOLEDO, Eliza Teixeira de. Histories of Sexual Violence in Nineteenth andTwentieth Century Latin America: An Introduction. Historia Critica, n. 86, p. 3-16, oct-dic. 2022.
JELIN, Elizabeth. Los abusos sexuales como crímenes de lesa humanidad y el respeto a la intimidad. In: La lucha por el pasado: Cómo construimos la memoria social. Buenos Aires: Siglo XXI, 2017, p. 227-236.
HARTMAN, Saidiya. Vênus em dois atos. ECO-Pós, v. 23, n. 3, 2020.
SCOTT, Joan. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Educação & Realidade, v. 20, n. 2, p. 71-99, jul-dez. 1995.
SCOTT, Joan. Unanswered questions. American Historical Review, v. 113, n. 5, p. 1422-1429, Dec. 2008.
SCOTT, Joan. Os usos e abusos do gênero. Projeto História, n. 45, p. 327-351, dez. 2012.
STRYKER, Susan. (De)Subjugated knowledges: an introduction to transgender studies. In: STRYKER, Susan; WHITTLE, Stephan (ed.). The Transgender Studies Reader. New York: Routledge, 2006, p. 1-17.
Organizadora
Mariana de Moraes Silveira – Professora do Departamento de História da Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG. E-mail: marianamsilveira@gmail.com
Referências desta apresentação
SILVEIRA, Mariana de Moraes. Que questões o gênero ainda pode suscitar? Algumas reflexões a partir do dossiê “Mulheres, gênero, feminismos: a reescrita da história a partir do Sul global”. Temporalidades. Belo Horizonte, v. 14, n. 2, p.16-21, set. 2022/jan. 2023. Acessar publicação original [DR/JF]