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Mulheres e Poder: um manifesto | Mary Beard

A capa do livro Mulheres e Poder (originalmente publicado: Woman & Power) chama logo a atenção pelo título e pelo seu subtítulo aclamativo: “um manifesto”. Para completar, anuncia: “best-seller nos Estados Unidos e Europa”. Desde esse primeiro encontro, o leitor se vê instigado. Sua autora tem um currículo respeitável: historiadora dedicada aos estudos sobre a Antiguidade Clássica, em especial acerca do Império Romano, a inglesa Mary Beard é professora da Universidade de Cambridge e, além desse livro, publicou outras obras de renome sendo SPQR – Uma História da Roma Antiga a “sua obra prima”, segundo a Editora Planeta, que publicou ambos os livros no Brasil.

Baseado em duas palestras proferidas em 2014 e 2017, Mulheres e Poder, apesar de curto frente à relevância dos temas que aborda, é assertivo ao discutir sobre o quão intrínsecos à sociedade e à cultura ocidental estão os mecanismos que silenciam as mulheres e as excluem dos centros de poder.

No primeiro ensaio, intitulado “A voz pública das mulheres”, partimos da Antiguidade Clássica para compreender que o silenciamento feminino está fortemente enraizado na cultura ocidental e como é desapontador a relação entre a voz das mulheres e a esfera pública. A partir de um trecho da Odisseia, Beard nos informa que os modos pelos quais as vozes femininas são emudecidas, além de antigos, são inúmeros, e salienta que devemos ir além da misoginia para diagnosticar as razões para isso acontecer. De acordo com ela, é preciso reconhecer que o problema é mais profundo e complexo do que parece, afinal mesmo quando as mulheres não eram silenciadas, elas pagavam um preço muito alto para serem ouvidas. Serviam de chacota para famosos autores gregos de teatro e eram reprimidas através de atos violentos, verbais e físicos.

Para falar em público e serem ouvidas, as mulheres deveriam possuir razões bem específicas: no papel de vítimas ou mártires, no limiar de sua morte ou para defender sua família e os interesses de outras mulheres. A historiadora ressalta que elas nunca poderiam falar publicamente em nome de toda uma comunidade e, em especial, pelos homens, afinal, o ato do discurso público não era reconhecido como uma caraterística do gênero feminino, mas sim como prática e habilidade definidoras da masculinidade. Em síntese, uma mulher que falasse em público não era, por definição, uma mulher. A título de exemplificação, podemos destacar um caso trabalhado no livro que diz respeito a uma personagem histórica que só obteve sucesso no tribunal ao defender-se porque, segundo os romanos antigos, ela possuía uma natureza masculina.

Mary Beard destaca que, apesar dos avanços no sistema político, com a derrubada de inúmeros elementos oriundos da Antiguidade, permanecem ainda atuais tradições de debate e discurso público que remontam ao período Clássico. Até os dias de hoje, as falas das mulheres permanecem inseridas em campos específicos: seja para operar na defesa dos próprios interesses ou para colocar-se em condição de vítima. Vale dizer que, ao criticar essa especificidade de temas, a autora não se posiciona contrária a essas abordagens, mas, de certa forma, lamenta que as mulheres, em geral, somente se sobressaiam publicamente falando sobre esses dois assuntos.

A historiadora inglesa segue sua preleção afirmando que apesar de hoje em dia estarem autorizadas a falar em público, as mulheres ainda sofrem com depreciações aos seus discursos. Ela chama a atenção, para além de outros exemplos, aos impropérios de toda sorte proferidos nas redes sociais às mulheres que emitem suas opiniões sobre algo. A própria autora foi vítima disso em alguns momentos. Segundo Beard, por detrás dessa resistência à voz feminina existe uma cultura milenar de não compreender as mulheres como transmissoras de autoridade e há também um desejo implícito de impedir qualquer fala pública por parte das mulheres. Em suma, o objetivo seria silenciá-las por completo.

Avançando no tempo e nas representações do feminino, a autora pauta em seu segundo ensaio, intitulado “Mulheres no Poder”, as dificuldades socioculturais oriundas da misoginia, que estão relacionadas à formulação enraizada nas sociedades atuais de não se visualizar as mulheres em posições de poder. Afinal, atualmente, o estereótipo cultural de uma pessoa poderosa corresponde a representações masculinas. Para elaborar e fundamentar essas assertivas, Beard toma como base ficções literárias, charges, imagens e notícias.

Ao dissertar sobre a imagem de uma pessoa poderosa, Beard aponta que não há um modelo feminino básico, por isso a aparência de uma mulher poderosa remete por vezes a de um homem. Como exemplo, a autora menciona Angela Merkel e Hillary Clinton e o uso dos terninhos – aqui, na América do Sul, podemos citar as ex-presidentes Dilma Rousseff, do Brasil, e Michelle Bachelet, do Chile, que, na maior parte do tempo, utilizaram tal vestimenta durante o cumprimento de suas funções públicas.

De acordo com Beard, é preciso que compreendamos como foi construído esse padrão cultural que, de modo simultâneo, exclui as mulheres do poder em nível do simbólico e do real e atrela a presença delas nesses espaços à masculinidade. Ela notabiliza o mito das amazonas afirmando que, apesar de serem figuras utilizadas por grupos feministas a fim de enaltecer a força da mulher, na realidade, trata-se de um mito grego masculino criado para exaltar o dever dos homens de se sobrepor as mulheres, e, no caso específico da narrativa mitológica, da obrigação política de se superar uma civilização comandada por mulheres.

A historiadora evoca também a figura mitológica da Medusa e enfatiza que ela representa “um dos maiores símbolos antigos do domínio masculino sobre os perigos destrutivos representados pela simples possibilidade do poder feminino” (BEARD, 2018, p. 77). Em outros termos, a personagem simbolizava a falta de legitimidade das mulheres no poder. O que pode surpreender o leitor é o fato de a autora constatar que, até os dias atuais, essa figura permanece sendo utilizada com o mesmo significado. Nesse sentido, Beard expõe quatro exemplos: Theresa May, ex-primeira ministra britânica, que, em 2017, foi chamada de “Maydusa” pelo Partido Trabalhista; Dilma Rousseff, que na época da escrita do livro era presidente do Brasil, e Angela Merkel, chanceler da Alemanha, que foram comparadas com a figura mitológica tendo seus rostos artificialmente colocados sobre a famosa tela de Caravaggio; e, por fim, Hillary Clinton, quem a autora considera ter sofrido o ataque mais sórdido quando, ao final da eleição presidencial de 2016, fizeram montagens da estátua de Benvenuto Cellini com o rosto de Donald Trump substituindo Perseu, segurando a cabeça decepada da ex-senadora como Medusa. Em síntese, isso nos mostra que independentemente do campo ideológico e viés partidário, a Medusa é resgatada para delimitar que mulheres não devem pertencer a instâncias de poder.

Encaminhando o ensaio para uma conclusão, a autora propõe que para modificar as estruturas de poder que excluem as mulheres, não é preciso somente uma maior participação feminina em tais estruturas, é necessário que haja uma redefinição do poder, uma mudança na estrutura. É preciso pensar o poder fora do prestígio público, fora de figuras de lideranças institucionais, sobretudo sendo elas masculinas, e por último, mas não menos importante, “significa pensar no poder como um atributo ou mesmo um verbo, não como posse” (BEARD, 2018, p. 93). Em suas palavras finais, Beard ressalta que apesar de ser possível realizar tais propostas – e devemos manter o otimismo – não podemos nos esquecer que a exclusão feminina está centrada para além de instituições, está posta em narrativas antigas e bem difundidas e que talvez seja por aí que a mudança mais efetiva deva acontecer.

A obra aqui resenhada mostra-se relevante porque nos faz refletir sobre o quão arraigado social e culturalmente está o silenciamento e a exclusão feminina de espaços de poder. Como é importante reconhecermos tal realidade, o livro promove que os leitores reflitam acerca dela e possam propor mudanças e agir para que tais situações sejam de fato modificadas.

Às mulheres, convocadas pela autora a pensar para além da ocupação de espaços de poder, faz-se necessário refazer a(s) estrutura(s). Aos homens, assim como este escritor, fica o alerta subliminar de que somos culpados por termos criado e perpetuado estruturas sociopolíticas excludentes, que remontam à Antiguidade. Do mesmo modo, fica a lição, ainda que implícita, de que será com a participação dos homens, porém não como protagonistas – essa posição cabe às mulheres –, que tais estruturas de poder serão definitivamente alteradas.


Resenhista

Johnatas dos Santos Costa – Mestrando pelo Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Sergipe (PROHIS-UFS). E-mail: johnatassantoscosta@yahoo.com.br


Referências desta Resenha

BEARD, Mary. Mulheres e Poder: um manifesto. Trad. Celina Portocarrero. São Paulo: Planeta do Brasil, 2018. Resenha de: COSTA, Johnatas dos Santos. Para além da misoginia: uma reflexão sobre poder e silenciamento feminino na cultura ocidental. Ars Historica. Rio de Janeiro, v. 18, p. 165-168, jan./jun. 2019. Acessar publicação original [DR]

Itamar Freitas

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