É notório que durante muito tempo de nossa história as mulheres não possuíram uma voz pública. Mantidas no âmbito doméstico, privado, em silêncio, por muito tempo nos indagamos se teriam mesmo as mulheres uma história. No entanto, a ampliação do campo da História das Mulheres nos faz constatar que elas sempre estiveram presentes na História: basta olhar com cuidado para as entrelinhas. Surgindo na década de 1960 e ganhando notoriedade ao longo dos trinta anos seguintes, compreendemos a História das Mulheres como um campo de estudo atualmente consolidado.
Já inserida no atual contexto de consolidação e discussões historiográficas, filosóficas e também presente no âmbito das ciências sociais, Mary Beard publica, em 2018, o livro “Mulheres e Poder: um manifesto”, uma adaptação de duas palestras ministradas por ela nos anos de 2014 e 2017. Beard é uma autora inglesa com formação em artes e filosofia voltada para o período clássico. Sob essa ótica, utilizando dos exemplos das Antiguidades grega e romana, a autora tem por principal objetivo demonstrar em que medida os mecanismos de silenciamento e cerceamento feminino permanecem incorporados na sociedade ocidental dos dias atuais.
Dividido em dois grandes capítulos, “A voz pública das mulheres” e “Mulheres no poder”, que buscam traçar um paralelo entre a tradições clássicas greco-romana e exemplos concretos de mulheres contemporâneas, o livro pretende refletir sobre as premissas culturais que a sociedade ocidental herdou em relação à noção de poder e ao espaço público e político.
O livro apresenta um breve prefácio no qual a autora revela suas motivações tanto para a realização das palestras, como para a composição desta obra escrita. Beard se propõe a esclarecer a sociedade contemporânea a partir dos exemplos dos antigos gregos e romanos que, a seu ver, auxilia a esclarecer algumas das estruturas de poder consolidadas na contemporaneidade. Nesse sentido, a autora defende que, apesar de ser evidente o progresso em relação à condição feminina, a desigualdade existente entre homens e mulheres ainda é nítida e define as relações sociais. A nosso ver, Beard não está tratando da noção de poder que influencia as mulheres individualmente, mas sim enquanto conjunto. A autora se propõe a fazer uma reflexão de longa duração acerca das concepções de poder e como essa se relaciona com as mulheres, ainda que a mesma possua uma concepção homogeneizada da categoria mulher.
O início do primeiro capítulo – A voz pública das mulheres – explora o princípio da tradição literária ocidental, fazendo menção à obra de Homero, Odisséia. Nela, a figura que ganha destaque é Telêmaco e a forma como ele, ao longo de seu amadurecimento, se relaciona com sua mãe Penélope. De acordo com a autora, na visão homérica, parte do amadurecimento masculino dava-se a partir do momento em que se assumia o controle do pronunciamento público e do silenciamento da mulher.
A autora apresenta exemplos de mulheres que obtiveram destaque e voz no mundo antigo, mas fundamentalmente a partir de dois aspectos: incorporando características masculinas – compatível com a posição de voz e poder –, ou vistas como aberrações. Assim, a autora deixa claro que a concepção de poder era um atributo próprio do masculino, incompatível com o feminino. Apesar da correlação direta – e sem muitas ressalvas – que Beard faz entre a sociedade antiga e a contemporânea em seus ensaios, ela reconhece que a herança deixada pela primeira não foi totalmente incorporada pela segunda, mas defende que é nítida certa influência da cultura greco-romana nas nossas tradições políticas.
Repito, não somos apenas vítimas ou joguetes na herança clássica, mas ela nos forneceu um poderoso gabarito para pensar a respeito do discurso público e decidir o que se define como oratória boa ou ruim, persuasiva ou não, e qual discurso deve ser dado espaço para ser ouvido. E o gênero é, sem sombra de dúvida, parte importante dessa mistura.1
Ainda argumentando sobre as exceções presentes no mundo clássico acerca do discurso público feminino, a autora comenta dois exemplos: as mulheres teriam permissão para se manifestar publicamente a partir do advento do cristianismo para anunciarem a própria morte enquanto mártires, ou enquanto vítimas. Beard exemplifica ambas as situações a partir de um único exemplo, o de Lucrécia, que, ainda que não fosse uma mártir, quando estuprada por um príncipe romano recebeu permissão para falar. Lucrécia então denuncia seu estuprador e logo em seguida anuncia seu suicídio.
O final do primeiro capítulo reforça a argumentação feita pela autora com comparações entre a atualidade e misoginia cultural e política da Antiguidade. Nessa etapa do livro, Beard expõe suas considerações com exemplos de mulheres que ocuparam cargos de poder na sociedade atual – a maior parte deles proveniente do continente europeu, como Elizabeth I ou Margaret Thatcher –, demonstrando que, mesmo com tal posição, elas eram entendidas como intrusas. Nessa direção, estratégias foram traçadas para que assumissem características consideradas masculinas a fim de conferir legitimidade às suas posições.
No entanto, apesar dessas táticas, fica evidente que existe um local para o “feminino” no poder, cargos e pastas que estão ligados à “esfera tradicional dos específicos interesses femininos”.2 Por isso, Beard afirma que a voz feminina no âmbito público é ouvida quando trata de assuntos relacionados a seus ditos interesses como família, educação e assistência social. Por fim, a autora encerra o capítulo defendendo que o problema na concepção de poder não é solucionado por esses artifícios, visto que a figura de autoridade continuaria sendo masculina. “Falando sem rodeios, ter mulheres fingindo ser homens pode ser um paliativo, mas não chega a ser o cerne do problema”.3
Para a autora, as mulheres devem passar a levantar questões relativas à voz pública feminina, que tendem a ignorar. Trata-se, a seu ver, de questionar sobre o modo como as mulheres falam em público, os motivos de suas falas e quais são as vozes que se adequam a esse cenário, criando uma conscientização feminina coletiva sobre o que seria uma “voz de autoridade” e como essa veio a ser construída.
No segundo capítulo, como diz o nome – Mulheres no poder – a autora se propõe a tratar mais diretamente de casos em que mulheres ocuparam as posições de poder em diferentes sociedades e refletir sobre elas. Apesar dessa proposta, Beard não analisa contextos tão discrepantes entre si, uma vez que a maior parte dos exemplos é europeia e estadunidense.
O capítulo se inicia com uma análise do conto de Charlotte Perkins Gilman, denominado Herland, em que se narra a história de uma sociedade composta – e, por conseguinte, comandada – apenas por mulheres. Três homens, então, chegam ao local e o comando das mulheres passa a ser questionado. É um conto oportuno para a argumentação da autora que pretende, nesta parte do livro, tratar das mulheres que de fato têm alguma posição de poder e liderança, e como elas são encaradas pelo mundo masculino. Nesse sentido, a autora aponta que é evidente o crescente número de mulheres na política, em comparação às décadas anteriores, mas defende que essa presença – ainda minoritária – não mudou o “modelo mental e cultural”4 de poder e autoridade na sociedade ocidental, que continua a ser masculino. Sob essa ótica, ela comenta expressões usadas pela grande mídia para se referir a essas mulheres como “tomar o poder”. Beard, então, deixa essa ideia clara no seguinte trecho: “As mulheres no poder são vistas como tendo ultrapassado os limites ou se apossado de algo a que não têm direito”.5
A autora defende que a mulher poderosa que está no imaginário popular se associa à imagem de uma mulher – branca, em nossa análise – revestida de atributos masculinos. Fica evidente uma masculinização das figuras femininas que ocupam cargos de notoriedade. Essas mulheres precisariam se adequar ao lugar que elas ocupam, originalmente masculinos. Beard compreende que a superação desse panorama não está ligada apenas à chegada das mulheres nos cargos públicos, mas em uma mudança nas premissas culturais de poder na nossa sociedade. É preciso, para a autora, entender as bases do poder, para que possa ser ressignificado, já que “poder”, como o conhecemos, é atributo masculino.
Vale ressaltar a personagem mitológica “Medusa”, uma das últimas figuras da Antiguidade trazidas pela autora, mas não menos importante para sua argumentação, uma vez que representa o “[…] domínio masculino sobre os perigos destrutivos representados pela simples possibilidade do poder feminino”.6 Beard pouco explora a questão da violência sexual que esse conto expressa, fazendo apenas um comentário de que a personagem teria sido vítima de um estupro em um templo da deusa grega Atena e punida por esse ato. O que é destacado pela autora é que a decapitação da personagem se tornou “um símbolo cultural de oposição ao poder feminino”.7
Sob esse ponto de vista, Beard novamente cita exemplos de mulheres da atualidade, como Dilma Rousseff, Angela Merkel e Theresa May, que tiveram suas imagens associadas à de Medusa em tentativas de contestação ao poder que essas mulheres exercem. Nas eleições estadunidenses de 2016 circularam imagens de Hillary Clinton também associadas à Medusa, segundo Beard, “…em seu aspecto mais gritante e sórdido.”8 Em uma tentativa de desmoralização política através da violência de gênero, circularam através de camisetas, canecas e sacolas imagens de Donald Trump segurando a cabeça gotejante de uma Clinton-Medusa sob a palavra triunfo em letras garrafais. A partir disso Beard comenta os modos como a imagem de Medusa foi utilizada diversas vezes para “decapitar” mulheres políticas proeminentes.
Ao se encaminhar para o final deste capítulo, a autora trata das possíveis soluções para essa questão. Beard comenta que sua perspectiva de poder trabalhada no livro está relacionada ao prestígio público que, segundo ela, na verdade, seria apenas uma das esferas de poder. Assim, para a autora a saída estaria relacionada à redefinição da própria noção de poder. Nesse sentido, ela argumenta que, com a concepção de poder que temos – como algo que se possui –, a mulher, por mais que esteja cada vez mais presente em contextos de autoridade, sempre ocupará um lugar masculino. Para que o poder esteja de fato aberto às mulheres – e novamente aqui ela não faz distinções dentro do grupo feminino – é preciso transformar a concepção que nós temos a respeito do próprio poder.
Não se pode, com facilidade, inserir as mulheres numa estrutura que já está codificada como masculina; é preciso mudar a estrutura. […] Significa, mais que tudo, pensar no poder como um atributo ou mesmo como um verbo, não como posse.9
O posfácio do livro trata-se de breves comentários feitos pela autora sobre algumas questões políticas, uma vez que os contextos das palestras eram diferentes das configurações políticas na ocasião da publicação dessa obra. Ela ressalta, citando o exemplo de Diane Abbott e Boris Johnson, que as mulheres, ocupando cargos de notoriedade, são julgadas com mais rigor do que os homens. E, por fim, Beard reafirma, argumento que esteve presente ao longo de todo o livro, que olhar para a Antiguidade nos ajuda a entender o que pensamos e como pensamos.
No entanto, a autora traz também uma perspectiva interessante, levantada também por Edward Thompson, de que as mulheres são capazes de mobilizar as próprias amarras sociais em seu favor, para “jogar o jogo político”.10 No decorrer do livro, até esse momento pelo menos, ela parece trazer um tom muito passivo para as mulheres. Essa argumentação, no entanto, revela que as mulheres são ativas, que muitas têm consciência da opressão a qual estão submetidas e que buscam estratégias para tentar transformar o cenário sociopolítico. Em suas palavras, “[a]lgo que muitas dessas mulheres têm em comum é a capacidade de usar a seu favor os símbolos que em geral enfraquecem o poder feminino”.11
Por seu caráter ensaístico, didático, objetivo e por se voltar a referências relativamente comuns e empregadas no imaginário Ocidental, a obra-manifesto é indicada a quem tiver interesse em um primeiro contato com a temática. Contudo é necessário olhar criticamente para os exemplos expostos ao longo do livro. Nota-se que Beard possui como principais referências de mulheres possuidoras de uma voz pública, mulheres brancas. Em dado momento é utilizado o exemplo de Sojouner Truth, mulher negra ex-escravizada e abolicionista norte-americana, dona do famoso discurso “E eu não sou uma mulher?”, entretanto, Beard questiona a autenticidade do discurso.12 Comparando a fala da própria autora sobre uma também possível farsa no discurso de Elizabeth I em Tilbury13, é notório o desdém e uma dúvida maior sobre a legitimidade tratando-se do discurso de Sojouner Truth:
Eu afirmaria que, por mais importantes que tenham sido essas palavras, são apenas um pouco menos míticas que as de Elizabeth em Tilbury. A versão autorizada foi escrita mais ou menos uma década depois de Sojouner Truth ter dito o que quer que tenha dito. Foi quando o agora famoso refrão, que ela com certeza não proferiu, foi inserido, e, ao mesmo tempo, suas palavras foram traduzidas para um arrastado sotaque sulista a fim de combinar com a mensagem abolicionista – mesmo que ela fosse do norte e tenha crescido falando holandês.14
A autora não menciona o fato de que as conquistas femininas de espaço abordadas no segundo capítulo, ainda que vistas como usurpação pelos homens, são menos frequentes em casos de mulheres negras do que brancas.15 Não existe a mesma abertura e legitimidade a todas as mulheres de forma igual, isso fica evidente nos próprios exemplos usados pela autora, que menciona majoritariamente mulheres brancas. Uma análise racial não está incluída na análise de Beard, que trata o gênero como o grande empecilho para as mulheres.
Outra crítica que se faz fundamental é relativa aos exemplos de mulheres no poder fornecidos por Beard. A autora critica as profundas estruturas culturais que legitimam a exclusão feminina da política e dos demais espaços, mas não aplica nenhuma ressalva aos exemplos de Margareth Tatcher e de Theresa May no poder, tendo essa última utilizado seu espaço político para proferir inúmeros discursos racistas e xenófobos durante os debates do Brexit. Compreende-se, portanto, que a autora não pondera sobre as estruturas de poder existentes, sobre o lugar das mulheres brancas nessas estruturas e sobre como os atos de mulheres brancas e conservadoras afetam as vidas de homens e mulheres negras e racializadas.
Beard pouco explora outros âmbitos de poder, que têm grande importância na vida da maior parte das mulheres. Expressões de poder, entre homens e mulheres, que não estão na esfera pública são tão significativas para a construção da misoginia quanto às poucas mencionadas pela autora. As relações de poder no que tange ao gênero estão presentes nas mais variadas esferas e contextos, e influenciam diretamente na condição feminina da sociedade ocidental. Esse assunto, dada a importância, poderia ter sido mais bem explorado pela autora. Ao longo da leitura do livro, percebe-se, portanto, que a autora não realiza uma crítica e nem aplica recortes raciais e sociais contemporâneos, o que, apesar de propor um debate de longa duração, a torna uma obra incompleta.
Notas
1 BEARD, Mary. Mulheres e Poder: um manifesto. São Paulo: Editora Planeta do Brasil, 2018, p. 32.
2 Ibid, p. 41.
3 Ibid, p. 49.
4 Ibid, p. 61.
5 Ibid, p. 64.
6 Ibid, p. 77
7 Ibid, p. 80.
8 Ibid, p. 82.
9 Ibid, p. 93.
10 THOMPSON, Edward P., A venda das esposas. In: ______. Costumes em comum: estudos sobre a cultura popular tradicional. São Paulo: Cia. Das Letras, 1998. p. 305-348.
11 BEARD, Mary, op. cit, 2018, p. 87.
12 DAVIS, Angela. Classe e raça no início da campanha pelos direitos das mulheres. In: _____. Mulheres, raça e classe. São Paulo: Boitempo, 2016, p. 71.
13 BEARD, Mary. Op. Cit, 2018, p. 33.
14 Ibid, p. 36. Grifo nosso.
15 DAVIS, Angela. O legado da escravidão: parâmetros para uma nova condição de mulher. In: _____. Mulheres, raça e classe. São Paulo: Boitempo, 2016, p. 15-41
Referências
BEARD, Mary. Mulheres e Poder: um manifesto. São Paulo: Editora Planeta do Brasil, 2018.
DAVIS, Angela. Classe e raça no início da campanha pelos direitos das mulheres. In: Mulheres, raça e classe. São Paulo: Editora Boitempo, 2016, p. 57-78.
______. O legado da escravidão: parâmetros para uma nova condição de mulher. In: _____. Mulheres, raça e classe. São Paulo: Boitempo, 2016, p. 15-41.
THOMPSON, Edward P., A venda das esposas In: ______. Costumes em comum: estudos sobre a cultura popular tradicional. São Paulo: Cia. Das Letras, 1998. p. 305-348. 137
Resenhistas
Gabriela Conceição de Oliveira
Letícia Alves Jordão
Referências desta Resenha
BEARD, Mary. Mulheres e Poder: um manifesto. São Paulo: Editora Planeta do Brasil, 2018. Resenha de: OLIVEIRA, Gabriela Conceição de; JORDÃO, Letícia Alves. Revista Outrora. Rio de Janeiro, v. 4, n. 1, p. 131 – 136, jan./jun. 2021. Acessar publicação original [DR]
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