No ano de seu centenário, o Museu Histórico Nacional lança um novo olhar conceitual sobre suas ações e suas coleções. Nesse sentido, o projeto Escuta, Conexão e Outras Histórias pretendeu promover uma aproximação do museu com seus parceiros e com seu público, valorizando a escuta de diversos segmentos sociais, ampliando sua conexão com a sociedade e convidando esses agentes para escreverem outras histórias a serem contadas no, com e pelo museu. Nesse contexto, foi proposto o Dossiê Mulheres e Museus, cujo objetivo é demonstrar o protagonismo de mulheres na construção dos museus e da Museologia brasileira, destacando suas trajetórias biográficas e profissionais, análises e reflexões sobre a elaboração teórica e sobre a prática de mulheres em e com museus.
Os artigos e depoimentos que compõem este dossiê visam seguir um diálogo, que vem se tornando fértil no campo museológico brasileiro da última década, a respeito da presença, participação e representação de mulheres. A partir do acervo, da atuação ou trajetória, indagamos: como essa presença é percebida por quem percorre as salas, as galerias e os corredores das instituições; por quem frequenta os bastidores das articulações, elabora conceitualmente e experiencia a Museologia?
O estado da arte do tema explicita um paradoxo, que contribui para desvelar a relação de dominância: ao mesmo tempo em que somos maioria nas instituições, em contextos de formação e em outros espaços de articulação da Museologia, observa-se também um apagamento desse protagonismo. Sabemos que, como parte daquilo que alicerça as relações de poder na sociedade, o patriarcado não haveria de poupar a construção da memória e suas fontes, a produção da ciência e seus métodos, a elaboração estética e suas escolas, tampouco as vicissitudes da valoração/valorização que a patrimonialização e musealização implicam. Estar ciente de que esse processo se produz e se reproduz também no campo museológico não é o ponto de chegada dessas análises, e sim o de partida. E, tal qual demais autoras e autores têm analisado, observar as relações contextualmente, compreendendo a noção de gênero e mobilizando a categoria “mulher”, fornece perspectivas inéditas para pensar acervos, a história das instituições e os conceitos que as mobilizam. 1
Os artigos que compõem este dossiê enfocam contextos do século passado e deste, período fundamental para: a ampliação do número de museus no Brasil; a criação e ampliação dos cursos de formação e, portanto, da profissionalização do campo; a concepção e implementação de políticas públicas de museus; a construção e enraizamento de ecomuseus, museus comunitários e da museologia social (no âmbito dos movimentos sociais e afetando também os museus tradicionalmente instituídos). Seguindo no diálogo, novamente indagamos: como a presença, participação e trajetória de mulheres figuram nesses processos e o que podem ocasionar em termos de análise a respeito da sociedade em que se inserem?
Tomando a categoria “mulher”, compreendemos a sua transitoriedade contextual. Não há mais espaço teórico e conceitual para pensar o “ser mulher” como uma essência, biologicamente naturalizada. Essa perspectiva já foi refutada, ao menos desde o início do século XX, e é difícil conceder espaço para esses argumentos fora do senso comum, considerando a atual sofisticação da produção intelectual das autoras e escolas de pensamento que tratam da categoria gênero nos diversos campos de conhecimento. Assim, com respeito às diferentes concepções e ângulos de análise, nossa perspectiva não é contribuir com a visão de que somos vocacionadas à Museologia, ainda que reconheçamos as condições sociais que impactam a nossa predominância numérica nesse campo.
Estas e demais questões perpassam, portanto, os textos deste dossiê, que passamos a apresentar aqui. Em “O vestido de Maria Bonita: musealização e discursos concorrentes da feminilidade no Museu Histórico Nacional”, Ana Lourdes Costa analisa os “discursos concorrentes da feminilidade” em torno do vestido de Maria Bonita. Cotejando com outros acervos, a autora observa como a indumentária, que passou a integrar a coleção do Museu Histórico Nacional em 1970, foi invisibilizada. Conforme Ana Lourdes, marcada pelas relações de classe, a peça foi considerada inferior em sua dimensão estética, desprovida das qualidades estilísticas da roupa que vestiu (e veste) a classe economicamente dominante. Nessa perspectiva, observando a vida social do vestido, a autora toma a musealização enquanto um exercício de poder.
A musealização também é o mote para a análise de Mayra Carvalho Ferreira de França, que a enfoca a partir das construções de memória e representação em “Casas como máquinas de lembrar: patrimonialização e musealização na Casa de Dona Yayá”. A autora contextualiza o percurso de Sebastiana Freire e o tratamento dispensado à sua trajetória feminina, durante sua vida e após. Utilizando como método o diálogo com a obra Cem anos de solidão, Mayra analisa as sobreposições discursivas que se apoiam na arquitetura da Casa de Dona Yayá em São Paulo, problematizando as relações de gênero e de classe.
Inês Gouveia e Priscila Faulhaber abordam as questões de gênero a partir da trajetória pessoal e profissional da museóloga paulista Waldisa Rússio: uma museóloga social”, as autoras consideram os aspectos contextuais, enfatizando também a dimensão de classe social, para analisar como a museóloga foi capaz de articular (coletivamente) uma concepção política da Museologia e dos museus, sobretudo nos anos 1970 e 1980, ultrapassando limites impostos à atuação das mulheres.
Karlla Kamylla Passos aborda as relações de discriminação que ocorrem em museus a partir do seguinte recorte, expresso no título do seu artigo: “Episódios de machismo cotidiano na educação museal: marcadores de gênero e sexualidade na relação entre museus e mulheres”. A autora também observa a discrepância entre a predominância numérica e a prevalência de representação no cotidiano do trabalho das equipes. Além da análise contextual, recolhe e problematiza as evidências desse processo, por meio de entrevistas com educadoras que atuam em diferentes estados do Brasil. Com isso, entre outros aspectos, ocasiona uma mirada a respeito do “ar do tempo”, um termômetro de aspectos centrais a respeito de debates que perpassam o feminismo e que, por muitos motivos, também interessa à Museologia e aos museus.
Com o intuito de afirmativamente valorizar a trajetória de mulheres que tiveram participação ativa na vida museal do país, Ana Carolina Gelmini de Faria e Daphne Victoria Telles Guterres da Silva contextualizam a atuação de Christina Balbão, situando o protagonismo do seu trabalho no Museu de Arte do Rio Grande do Sul. Conforme o título, “Christina Balbão: uma intelectual mediadora no campo dos museus”, as autoras se propõem a situar a sua trajetória no campo das artes e a interpretar as suas contribuições.
Concluindo o dossiê, com o intuito de colaborar com as reflexões sobre o papel das mulheres no campo da Museologia e na atuação em museus, apresentamos um conjunto de depoimentos, elaborado a partir de onze perguntas respondidas por mulheres que atuam em diversas áreas, desde as políticas públicas até o setor privado, da educação à conservação, curadoria de exposições e gestão de instituições.
Ao longo do século XX, as mulheres ampliaram sua participação na dimensão pública da vida. Os textos e depoimentos que este dossiê reúne também dão diferentes perspectivas dessa ampliação de espaço, que se observa pelo prolongamento dos estudos formais, pela inserção certificada na atuação profissional e como resultado da conquista de direitos, fruto da luta das feministas. A presente coletânea possibilita refletirmos sobre isso de modo retrospectivo e prospectivo.
Reconhecendo e enfatizando a dimensão coletiva do trabalho museal – nos museus, nas universidades ou no âmbito das políticas públicas –, é patente que a atuação das mulheres não deve seguir sendo ofuscada. É patente que esse esforço precisa se dar também a respeito da participação e da valorização mais especificamente de mulheres negras, indígenas, mulheres com deficiência e LGBTQIAPN+, conjuntamente e com impacto para demais sujeitos, grupos, povos, comunidades e classes oprimidas. Assim, vale dizer que a baixa representação e correspondência com essas pessoas diretamente neste dossiê não exprime uma escolha das organizadoras, considerando o empenho em convidar e atrair textos de pesquisadoras diversas, correspondendo à chamada pública de artigos. Há que se considerar, no entanto, que tais classificações sociais impactam as condições concretas de produção e circulação intelectual dessas pesquisadoras, já tão solicitadas por este campo que tem uma necessidade represada de ser afetado por suas críticas e apontamentos quanto aos privilégios que estruturam as opressões. Os Anais do Museu Histórico Nacional e nós, organizadoras do presente dossiê, estaremos abertas e atentas para aprofundar esse debate.
O Dossiê Mulheres e Museus propôs-se a reunir algumas das contribuições que, de maneira cada vez mais diversa e numericamente presente, estão sendo feitas a respeito do papel da mulher em nosso campo. A constituição de um conjunto de referências para o debate e de exemplos que reconhecem o protagonismo feminino nos museus e na Museologia, porém, não dá conta de solucionar os anos de invisibilização e os efeitos do machismo estrutural, ainda marco da sociedade contemporânea, cujas consequências são também sentidas em nossa área. Desejamos um excelente proveito para as leitoras (que provavelmente se identificarão com os artigos), mas sobretudo para os leitores (que precisam também aprender, por esforço próprio e consciente, a se identificar na reprodução do machismo estrutural). Agradecemos a todas as autoras e entrevistadas e a todas as pessoas envolvidas no trabalho consistente e valoroso de editoração dos Anais do Museu Histórico Nacional.
Nota
1 Apenas para situar algumas referências, cf.: LOPES, Maria Margaret. “Bertha Lutz e a importância das relações de gênero, da educação e do público nas instituições museais”. Musas – Revista Brasileira de Museus e Museologia. Rio de Janeiro, 2006; CARVALHO, Vânia Carneiro de. Gênero e artefato: o sistema doméstico na perspectiva da cultura material – São Paulo: 1870-1920. São Paulo: Edusp; Fapesp, 2008; SILVA, Joana Angélica Flores. A representação das mulheres negras nos museus de Salvador: uma análise em branco e preto. Dissertação de mestrado em Museologia. Salvador: Universidade Federal da Bahia, 2015; OLIVEIRA, Ana Cristina Audebert Ramos de. “Colecionismo a partir da perspectiva de gênero”. Revista Museologia & Interdisciplinaridade, v. 7, n. 13, p. 15-30, 2018.
Organizadores
Fernanda Castro
Inês Gouveia – Doutora em Museologia e Patrimônio (PPGPMUS-UNIRIO/MAST), mestra em Memória Social (PPGMSUNIRIO) e historiadora (UERJ). Docente no Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo (IEB-USP). Atua no campo da museologia e do patrimônio com especial interesse em direito à memória e representação da diversidade cultural. Email: inescgouveia@usp.br https://orcid.org/0000-0003-4783-9033
Lilian Amaral
Referências desta apresentação
CASTRO, Fernanda; GOUVEIA, Inês; AMARAL, Lilian. Mulheres, museus e Museologia. Anais do Museu Histórico Nacional. Rio de Janeiro, v. 56, p. 1-4, 2022. Acessar publicação original [DR/JF]
Décima sexta edição. Esta edição foi publicada em 2023 visando o ajuste de publicações em…
Décima sétima edição. Esta edição foi publicada em 2023 visando o ajuste de publicações em…
Vigésima segunda edição. N.03. 2023 Edição 2023.3 Publicado: 2023-12-19 Artigos Científicos Notas sobre o curso de…
Publicado: 2024-06-19 Artigo original A rota dos nórdicos à USPnotas sobre O comércio varegue e o…
Quem conta a história da UFS, de certa forma, recria a instituição. Seus professores e…
Publicado: 2023-06-30 Edição completa Edição Completa PDF Expediente Expediente 000-006 PDF Editorial História & Ensino 007-009…
This website uses cookies.