Mulheres e caça às bruxas: da Idade Média aos dias atuais | Silvia Federici
Silvia Federici | Foto: DeliriumNerd
Ao falar de caça às bruxas imagina-se fogueiras queimando acerca de centenas de anos atrás em um povoado bem distante, com pessoas ao redor do fogo assistindo a incineração de uma ou mais mulheres acusadas de bruxaria por serem aliadas ao diabo. São cenas que parecem estar bem longínquas do século 21, e ainda relacionadas somente ao combate contra o mundo sobrenatural. No entanto, através do livro “Mulheres e Caça às Bruxas: da Idade Média aos Dias Atuais” a autora Silvia Federici apresenta a interligação da caça às bruxas à eliminação das mulheres do sistema capitalista e as consequências disso para as suas vidas. O livro de título original “Witches, witch-hunting, and women” é a obra mais recente da autora, lançado no Brasil em 2019 pela editora Boitempo, estando dividido em duas partes no mesmo volume: Revisitando a acumulação primitiva do capital e a caça às bruxas na Europa; Novas formas de acumulação de capital e a caça às bruxas em nossa época. Silvia Federici é escritora, professora e intelectual militante de tradição feminista marxista autônoma, nascida na Itália em 1942, mudou-se para os Estados Unidos no fim da década de 1960, onde foi cofundadora do Coletivo Internacional Feminista e contribuiu para a Campanha por um salário para o trabalho doméstico. Em 1965 concluiu a graduação em filosofia. Atualmente é professora emérita na universidade de Hofstra, em Nova York. Suas outras obras são: Calibã e a Bruxa (Elefante, 2017) e O Ponto Zero da Revolução (Elefante, 2019), além de artigos sobre feminismo, colonialismo e globalização.
Para Silvia Federici os motivos que levaram ao surgimento da caça às bruxas ocorrida no fim do século XIV indo até meados do século XVIII, tendo maior intensidade entre os séculos XVI e XVII, foram multicausais, ou seja, não se pode dizer que os processos de cercamentos intensificados no século XV na Inglaterra, o surgimento da medicina ou questões religiosas foram os únicos culpados pela perseguição contra às mulheres. No entanto, a autora atribui todas as causas “subjacentes ao desenvolvimento das relações capitalistas”, assim na primeira parte do seu livro ela examina os acontecimentos do passado para o leitor visualizar a caça às bruxas sendo uma ação do Estado atrelado a igreja no combate à presença ativa das mulheres no mundo capitalista, sendo este o grande contribuinte ao aumento da violência contra elas durante os séculos subsequentes a seu surgimento.
Embora a caça às bruxas não tenha ocorrido somente na Inglaterra, mas em vários outros países da Europa, incluindo a França, Espanha, Itália e Alemanha, Federici usa os cercamentos da Inglaterra para explicar este acontecimento, pois segundo ela “estes demostram mais claramente como a comercialização da terra e o crescimento das relações monetárias afetou, de forma diferente, mulheres e homens.” (FEDERICI, 2019, p.48). Quando os proprietários de terras e outros membros abastados da sociedade privatizaram suas terras colocando fim aos direitos consuetudinários deixaram a população de agricultores desamparados dos seus meios de sobrevivência, entre eles estavam as mulheres. Justamente em áreas onde ocorreram os cercamentos houveram os mais sangrentos processos de bruxaria da Inglaterra. Bem como as áreas em que estavam havendo uma reformulação das relações econômicas e sociais em decorrência da prata trazida das colônias na América do Sul, causando o aumento no preço dos grãos e demais produtos agrícolas, desta forma intensificava-se cada vez mais as desigualdades.
As maiores atingidas por essas mudanças foram as mulheres mais velhas que viviam sozinhas, sem filhos ou maridos, ficando-as desamparadas ao fim dos seus direitos consuetudinários. A situação delas tornou-se mais degradante após a Reforma, sendo proibida a caridade, de modo a não poderem sobreviver nem mesmo de esmolas. Passaram então a serem consideradas um estorvo à sociedade produtiva e acumulativa de bens, não podendo oferecer força de trabalho e muito menos gerar futuros trabalhadores, e ainda representando a maioria na população europeia. De acordo com os estudos do professor Emérito de História e Estudos Religiosos da Universidade de Virginia, H.C Erick Midelfort, no século XVI houveram acentuadas mudanças demográficas na Europa, produzindo o número cada vez maior de mulheres sozinhas. A Reforma trousse o fechamento de inúmeros conventos deixando 20% de delas sem nunca terem casado e 10% a 20% de viúvas. Outro fator contribuinte para serem a maioria se deu por sobreviveram mais comparadas aos homens durante o período da peste, se dando a maior parte de suas mortes somente em decorrência do parto. Diante deste cenário haviam várias mulheres desamparadas pela figura masculina do pai, filho ou marido. Assim tornavam-se sujeitos marginalizados, rendendo a “feminização da pobreza”. Parte-se daí a caracterização da bruxa existente até os dias de hoje, sendo mulheres velhas, pobres, sujas, rabugentas e sozinhas, a elas ainda eram acometidos crimes fáceis de serem executados pela sua falta de força física, como os incêndios de plantações e mortes de animais.
Para Silva Federici estas mulheres não eram vítimas, mas pessoas divergentes às ordens estabelecidas, eram contrárias ao sistema, e resistentes às condições injustas que lhes eram impostas. Mesmo sendo proibida a caridade continuavam a pedir dinheiro e alimentos, sempre encaradas a modos inconvenientes, reagiam falando palavras ofensivas contra aqueles que lhes negavam ajuda, entretanto “atitudes como essas poderiam ser ressentimentos nascidos da raiva pela injustiça sofrida, uma forma de rejeitar a marginalização.” (FEDERICI, 2019, p.52)
Não bastava ser velha para receber a acusação de bruxaria. A autora explica que muitas das acusadas haviam tido condutas consideradas erradas, quando jovens foram mulheres promíscuas, libertinas, mães solteiras, curandeiras e parteiras possuidoras de popularidade. Para Federici estas mulheres não eram acusadas de bruxaria por seus feitiços e remédios medicinais realmente surtirem efeito, mas poque elas faziam parte do lado contrário ao novo poder. Além de serem pobres também compunham o corpo de revoltosos contra os cercamentos, a propriedade privada, a repressão sexual e ao controle de nascimentos imposto pelo Estado. Quando puniam às “bruxas” acabavam punindo os compactuantes dos mesmos pensamentos. Por estes motivos historiadores e historiadoras também desconsideram à elas somente a definição de vítimas, preferindo enxergá-las como resistentes, “A bruxa foi a comunista e a terrorista de sua época, quando foi necessário um mecanismo ‘civilizador’ para produzir uma nova “subjetividade’ e uma nova divisão sexual do trabalho em que a disciplina capitalista da mão de obra viria a se apoiar.” (FEDERICI, 2019, p.72)
Colocadas às margens da sociedade, sem fonte de renda ou o amparo da figura masculina algumas mulheres recorriam a prostituição para poderem se manter. Entretanto, essa atitude foi interpretada a existência de um pacto diabólico, pois considerava-se haver a facilidade de arrancarem dinheiro dos homens, muitos deles chegavam a dizer terem sido vítimas de seus encantamentos. Mesmo quando não se envolvia a prostituição, mas relações sem o casamento, a sexualidade feminina era vista intimamente atrelada ao diabo. Apesar desta ser uma questão religiosa, no século XVI e XVII quando a caça à as bruxas foi mais intensa, os julgamentos eram conduzidos por magistrados leigos pagos pelos governos municipais, e não por membros da igreja. Segundo a autora, relacionar a figura da mulher rebelde ao sobrenatural foi de suma importância para executar toda a violência contra as mulheres durante o período da caça às bruxas, afinal quando se queimava a “bruxa” na fogueira a população interpretava aquilo não sendo um ato contra ser humano político possuidor de posicionamento social, mas sim contra o sobrenatural que continuava a ser tão temido e repulsivo, diz mais: “Nunca, ao longo da história, as mulheres foram submetidas a tão grande agressão, organizada internacionalmente, aprovada pelas leis, abençoada pelas religiões.” (FEDERICI, 2019, p.70)
Ainda em sua primeira parte do livro Silvia Federici continua a explicar o que verdadeiramente o sistema capitalista significou para o mundo feminino. Para ela assim como a colonização da América e o extermínio dos povos indígenas no “novo mundo”, a caça às bruxas também foi um “acontecimento que preparou o caminho para o surgimento do mundo capitalista moderno.” (FEDERICI, 2019, pg.40). Ao mesmo modo dos negros e indígenas as mulheres acusadas de bruxaria sofreram drasticamente com o novo sistema econômico, levando a avaliar se realmente houve um desenvolvimento, ou somente o acumulo de riqueza nas mãos de alguns. Desta forma, africanos escravizados e indígenas da América eram “parentes próximos” das bruxas europeias, todos “tiveram suas terras comuns confiscadas, vivenciaram a fome produzida pela mudança para agricultura comercial e viram suas resistências serem perseguidas como sinal de um pacto diabólico.” (FEDERICI, 2019, p.41).
O desenvolvimento do capitalismo gerou o desenvolvimento de conflitos sociais e transformações radicais desde os modos de produção à questões particulares dos indivíduos, como a reprodução e comportamentos adequados para cada gênero, “o capitalismo foi uma contrarrevolução não apenas sufocando com sangue as novas demandas por liberdade, mas virando o mundo de cabeça para baixo com a criação de um sistema de produção que exigia uma concepção diferente de trabalho, riqueza e valor que fosse útil às formas mais intensas de exploração.” (FEDERICI, 2019, p.64) Esse novo sistema forjou um novo indivíduo impondo a disciplina dos corpos, estabelecendo a batalha contra aquele que pudesse interromper a geração de mão de obra, ou seja, contra aquelas conhecedoras de ervas abortivas. Em seguimento as novas estruturas houve o rompimento aos antigos costumes produtivos, ocorrendo o fim das terras comunais e a ação da caridade, por esta prática acreditava permitir a entrada do sujeito ao céu. O mundo mágico que resistiu até mesmo a cristianização durante a Idade Média foi duramente atacado, pois representava o poder não condizente a nova realidade, devendo então ser exorcizado, era “a racionalização do mundo natural – precondição de uma disciplina de trabalho mais organizada e da revolução científica- passava pela destruição da “bruxa”. (FEDERICI, 2019, p.65 a 66)
O capitalismo invadiu a vida das mulheres criminalizando a sua liberdade sexual, “a nascente classe capitalista precisou desprezar a sexualidade e o prazer feminino.” (FEDERICI, 2019, p.67). Seus corpos teriam duas funções, serem o instrumento para a reprodução da força de trabalho e a satisfação das necessidades dos homens, às não obedientes a isso foram perseguidas, humilhadas, julgadas e mortas. Para haver o estabelecimento do capitalismo na Europa, enquadrado a um sistema patriarcal, antes precisava haver a degradação do corpo feminino, surgindo então a nova feminilidade. Esta significava ser dócil, submissa, subserviente, reclusa ao trabalho doméstico – tido como improdutivo- e assexual, ou seja, a nova feminilidade significava ser destituída da liberdade.
A autora dedica o último capítulo da primeira parte, intitulado de “Sobre o significado de ‘gossip’, para abordar sobre a rivalidade gerada entre as mulheres. Em português a palavra significa fofoca, porém não teve sempre esse significado, o termo depreciativo foi aplicado para destruir a sociabilidade feminina que “prevaleceu durante a Idade Média”. Antes gossip era destinado à denominação das madrinhas ou acompanhantes no parto, nomeando a parceria existente entre às mulheres. A partir do século XVI a situação delas foi tão deteriorada que até mesmo essas relações foram atacadas. As conversas de mulheres eram tidas como fúteis e irrelevantes, acreditavam haver a união somente para conspirarem contra os homens ou falarem da vida alheia, enquanto deixavam de lado as suas atividades domésticas e cuidados aos seus maridos. A partir desse mesmo século o número de mulheres acusadas de bruxaria aumentou consideravelmente, muitas eram agredidas por seus companheiros por quaisquer sinais de enfrentamento, eles poderiam lhes aplicar castigos físicos fazendo o uso das “scold bridle” ou “ducking stool”. Elas também foram levadas aos tribunais e multadas pelo simples fato de falarem demais, recebendo o termo de rabugentas, esperava-se e exigia-se delas o silêncio e obediência. Tendo ainda seus poderes e amizades enfraquecidos não somente por as ridicularizarem chamando-as de fofoqueiras e desocupadas, mas por fazerem mulheres sob tortura denunciarem umas às outras, sendo suas próprias mães, irmãs filhas e amigas.
Encerrando a primeira parte a autora traz um dos motivos pelos quais as mulheres tornaram-se os principais alvos da caça às bruxas, visto que os homens também eram mortos por associações, entretanto compunham um número bem pequeno. Este motivo não se deu unicamente por representarem a maioria da população, e sim em virtude de serem as “tecelãs de memórias”, principalmente as mais velhas, pois lembravam dos seus direitos consuetudinários, das tradições, e mais ainda, das liberdades que lhes foram tomadas, por meio de suas conversas transmitiam isso umas às outras, incitando mais mulheres a se revoltarem contra as injustiças impostas. Tendo em vista estes motivos, Federici considera a rotulação por fofoca de toda essa troca de conhecimentos e comunicação entre mulheres como forma de continuar a degradá-las, perpetuando os estereótipos e misoginia criados pelos inquisidores, demonólogos, alguns magistrados e maridos.
Na segunda parte do livro, “Novas formas de acumulação de capital e a caça às bruxas em nossa época”, Silvia Federici começa citando o Primeiro Tribunal Internacional de Crimes contra às Mulheres, realizado em Bruxelas em março de 1976, onde mulheres de quarenta países se reuniram para debater sobre as violências realizadas contra os corpos femininos, citando as esterilizações compulsórias, estupros, agressões físicas, prisões em hospitais psiquiátricos e o feminicídio. A autora demonstra que a violência desmedida cometida contra às mulheres não acabou mesmo com o fim da caça às bruxas ou da colonização, apenas foram adotados novos métodos e perpetuados alguns já existentes, pois elas continuam tendo seus corpos invadidos. Federici aborda alguns acontecimentos para dar exemplos da continuidade desta violência. Nos anos de 1920 a 1930 a promiscuidade feminina foi associada a doença mental, em 1950 havia a realização da lobotomia em mulheres com depressão causando um retardo mental, mesmo assim não era visto como prejudicial por não interferir no desenvolvimento de atividades domésticas, em 1960 mulheres pobres ou que exerciam a sua sexualidade livremente sofreram esterilizações compulsórias. Para Federici a violência contra às mulheres continua sendo algo institucionalizada, pois de certa forma é liberada pelo Estado ao permitir as Forças Policiais a cometerem atrocidades contra elas em países da América Latina e África, havendo o envolvimento até mesmo do Banco Mundial através do seu financiamento às atividades mineradoras.
Se em alguns países as violências contra às mulheres somente possuem traços análogos àquelas cometidas durante a perseguição às bruxas, na Índia e em países da África a partir de 1990 a caça às bruxas voltou a acontecer seguindo até os dias atuais. Ocorrendo principalmente em regiões afetadas pelas negociações comerciais e privatizações de terras, nestes lugares a população tornou-se bipolarizada, em vista tanto das questões econômicas, e também pelo aumento da aids e ampliação da pobreza, problemas estes acometidos às “bruxas”. Os homens também são mortos devidos as acusações de bruxaria por serem considerados cumplices caso às defenda, mas as mulheres são a grande maioria. Até mesmo as crianças sofrem acusações, sendo mortas ou abandonadas nos “campos de bruxas”, somente em Gana chegou a haver cerca de 3 mil mulheres exiladas nesses locais. Estas, do mesmo modo das antigas europeias, são mulheres mais velhas que se recusam a venderem as suas terras, para seus parentes são o empecilho e usurpadoras. As idosas são a maioria a oferecem resistências ao fim das terras comunais e suas vendas ao Banco Mundial, este por sua vez considera a “terra como patrimônio morto” até ser submetida a atividades comerciais. Em decorrência a isso a autora coloca novamente a culpa sob o capitalismo, ele sempre “incita a violência contra às mulheres”.
Do mesmo modo da antiga Europa, as populações africanas são influenciadas por questões religiosas, onde seitas evangelizadoras pentecostais e sionistas fazem pregações sobre a presença de satã entre as comunidades, sendo estes os motivos das mortes e doenças. O mais impactante é a contribuição da mídia para a perseguição, por meio das programações da rádio e televisão relatam o comportamento das bruxas e os meios para identificá-las. Existem até mesmo profissionais para fazerem a perseguição, são os chamados “caçadores de bruxas”, além de se orgulharem do título em muitos dos casos são ignorados pela polícia. Eles chegam nas comunidades a procura de suas “presas” as levando até o público, as agridem brutalmente e depois ateiam fogo nelas ainda vivas. Através de dados estatísticos de 1912 Federici afirma ter ocorrido cerca de 100 assassinatos no Quênia, enquanto de 1991 a 2001 foram aproximadamente 23 mil mortes em toda a África. Em um dado mais atual, no Distrito de Gonja, região de Gana, a senhora Akua Denteh de 90 anos foi espancada até a morte em novembro de 2020. Os números são tão alarmantes que foi declarado o dia 10 de agosto como Dia Mundial Contra a Caça às Bruxas.[2]
Embora a atual caça às bruxas na África seja ocasionada por motivos semelhantes ao passado, ainda assim possui rupturas no cenário, sendo uma delas a diferença da participação exigida pelas mulheres na sociedade. Se antes elas eram confinadas ao trabalho doméstico para a geração de mão de obra e satisfação do marido, atualmente exige-se cada vez mais essas presenças no mundo do trabalho para a geração de lucros, e se antes a existência dos filhos era obrigatória, e evitá-los era causa de morte, agora a gravidez passa a ser considerada um empecilho devendo então ser evitada, por isso as esterilizações compulsórias. Por meio disto a autora apresenta que “a integração das mulheres na economia global é um processo violento” (FEDERICI, 2019, p.99) e até mesmo exaustivo, pois ainda se exige e determina-se às mulheres trabalhem fora de casa, porém continuando a desempenharem as atividades domésticas e a existirem de forma realizada e completa a partir da companhia de um homem.
No fim da segunda parte do livro Silvia Federici explica que a caça às bruxas na África não deve ser relacionada a regressão no tempo, afinal os grupos étnicos africanos não possuíam conhecimentos da prática da bruxaria antes da era colonial. Assim a caça às bruxas “representa uma reação à crise social produzida pela restruturação neoliberal das políticas econômicas da África”. (FEDERICI, 2019, p.115), onde os Estados Unidos, Canadá e União Europeia fazem a destruição das políticas locais, atacando as terras comunais, e executando a recolonização do continente. Isso comprova porque justo as mulheres mais velhas que se recusam a venderem suas terras, e ainda tidas como um escoadouro de riquezas” são as mais atacadas, e os financiadores da caçada são homens mais jovens, em muito dos casos parentes das vítimas, eles consideram essas idosas “indivíduos inúteis, que monopolizam de forma egoísta os recursos que a juventude poderia usar.” (FEDERICI, 2019, p.129).
Finalizando a segunda parte a autora cita ações que poderiam pôr fim a essa violência cometida contra às mulheres africanas. Para ela as feministas deveriam contribuir através de investigações e análises das condições sociais produtoras da caça às bruxas, assim saberiam combate-la, podendo também expor às sociedades os motivos pelos quais as doenças existem em demasiada intensidade, estando relacionadas ao colapso do sistema de saúde e não em detrimento a relações com o satã. Um ponto fundamental é envolver a política nessas violências, afinal a caça às bruxas é uma violação contra os direitos humanos ocasionadas por questões econômicas, porém camufladas em meio a crenças religiosas. Outra ação eficaz, segundo Federici, seriam mulheres dos países africanos se organizarem da mesma forma das indianas quando em 1990 houve o aumento do número de entre maridos que assassinavam suas esposas para poderem se casar novamente e receber outro dote. Elas foram as ruas juntamente em companhia de professores e professoras fazendo protestos pacíficos e manifestações na frente da casa dos assassinos. Essas táticas podem ser realizadas contra os caçadores de bruxas, onde na hora de executarem suas vítimas primeiro as ridicularizam chamando-as de “vaginas estéreis” satisfazendo-os graças aos prestígios recebidos. Ao concluir o seu livro Silvia Federici afirma a existência da caça às bruxas, independentemente do tempo e espaço ao qual ocorreu, como a opressão dos revoltosos contra as novas formas de poder e controle. Assim entende-se a caça às bruxas sendo um mecanismo de controle e educação de comportamento dos corpos, estando em linha de frente os corpos femininos.
Por meio da leitura do livro compreende-se a caça às bruxas sendo uma ação do Estado amparado pela igreja ao combate a todas as práticas divergentes do novo poder instaurado, ou seja, o sistema capitalista, ao invés de ser a luta contra o sobrenatural. Entende-se ainda a caça às bruxas como um crime altamente misógino que destituiu às mulheres de suas vivências, as condicionando a espaços subalternos da sociedade, fazendo delas os principais alvos, isto também é apresentado nos estudos de Jeffrey B. Russo e Brooks Alexander, historiadores e autores do livro “A história da bruxaria” reeditado em 2019, eles informam que de meados do século XIV ao século XVIII cerca de 110 mil pessoas foram torturadas sob a acusação de bruxaria, 40 a 60 mil foram mortas, as mulheres representavam cerca de 85%. Enquanto hoje na África o número de mortes por acusações de bruxaria supera aqueles da Europa. A leitura faz visualizar as mulheres reais existentes por trás da figura da bruxa, estas foram oprimidas, humilhadas, violadas, degradadas, deturpadas e por fim queimadas até restarem delas somente as cinzas. Ainda nos dias atuais, aquelas que insistem em oferecer resistências ao sistema excludente continuam sendo mortas, não é por acaso estar presente na última página do livro a imagem de Marielle [3] contendo o seguinte questionamento: “Quem mandou matar Marielle Franco?”. Ler “Mulheres e caça às bruxas: da Idade Média aos dias atuais” é importante para revisitar a história e descobrir o nome bruxa sendo um termo taxativo dado justamente às mulheres as quais não se submetiam à submissão, estudar a caça às bruxas e expandir os conhecimentos adquiridos é escancarar o machismo encoberto que fez as mulheres serem vistas ao longo dos anos como histéricas, quando na verdade sempre foram históricas.[4]
3 Marielle Francisco da Silva, foi eleita Vereadora do Rio de Janeiro pelo partido PSOL, era uma mulher negra, feminista e gay. Compunha o grupo das minorias e as representava. Foi assassinada no dia 14 de março de 2018 juntamente com seu motorista Anderson Pedro Gomes quando carro em que estavam foi atingido por 13 tiros. O livro mulheres e caça às bruxas foi publicado no Brasil no dia 14 de setembro de 2019, mesmo dia em que se faria um ano e meio do assassinato. Em 14 de março de 2021 farão três anos das mortes, e até hoje a pergunta não obteve resposta. “Quem mandou matar Marielle?”
Notas
2. MULLER, Charlote. SANDERSON, Seta. Caça às bruxas: Um problema que persiste no século 21. DW Made for Minds, 2020. Disponível em: < https://www.dw.com/pt-br/ca%C3%A7a-%C3%A0s-bruxas-um-problema-que-persiste-no-s%C3%A9culo-21/a-54520254>. Acesso em: 06 de mar. de 2021.
4. Frase presente em cartazes de manifestações da luta das mulheres.
3. Marielle Francisco da Silva, foi eleita Vereadora do Rio de Janeiro pelo partido PSOL, era uma mulher negra, feminista e gay. Compunha o grupo das minorias e as representava. Foi assassinada no dia 14 de março de 2018 juntamente com seu motorista Anderson Pedro Gomes quando carro em que estavam foi atingido por 13 tiros. O livro mulheres e caça às bruxas foi publicado no Brasil no dia 14 de setembro de 2019, mesmo dia em que se faria um ano e meio do assassinato. Em 14 de março de 2021 farão três anos das mortes, e até hoje a pergunta não obteve resposta. “Quem mandou matar Marielle?”
Karolaine da Silva Oliveira – Licencianda em História pela Universidade Federal do Acre (UFAC), 8° período. Bolsista do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica (PIBIC) no projeto “Representações dos povos indígenas do Acre nas plataformas digitais brasileiras”, voluntária no Programa de Residência Pedagógica na área de Licenciatura em História, e integrante do grupo de pesquisa “O Processo de Construção do Docente em História: possibilidades e desafios da formação inicial e da formação continuada do fazer-se historiador em sala de aula”, na linha de pesquisa “Estágio Supervisionado do Ensino de História”. E-mail: karolainysilva417@gmail.com
FEDERICI, Silvia. Mulheres e caça às bruxas: da Idade Média aos dias atuais. São Paulo: Boitempo, 2019. 158 p. Resenha de: OLIVEIRA, Karolaine. Caça às bruxas: a contribuição do capitalismo para o aumento da violência contra as mulheres. Das Amazônias. Rio Branco, v.4, n.1, p.215-223, 2021. Acessar publicação original [IF].